A primeira frase da crônica é quase sempre a mais
difícil, mas quando as palavras aparecem no papel, a mão que segura a caneta
fica mais leve e envereda para um lugar desconhecido...
Mas basta surgir um inseto para mudar toda a
história: o movimento da mão é interrompido pelo intruso, que voa em círculos e
zoa com insistência, uma picada no pescoço ou no braço pode acabar com a
alegria de escrever uma crônica, mesmo sabendo que vou reescrevê-la quatro ou
sete vezes; talvez seja melhor espantá-lo com uma revista, ou esperar que ele
se canse de girar e zumbir como um louco nesse espaço pequeno.
Pode ser uma fêmea, não sei precisar o sexo dos
insetos; não é varejeira, nem abelha ou besouro comum, tem um olhar estranho, e
as asas ambarinas revelam uma delicada trama geométrica, que lembra uma teia de
aranha.
Deixo a caneta na mesa, pego ao acaso uma revista
e tento afugentar o intruso: que ele nos deixe em paz, eu e a ideia da crônica,
a mão direita e as palavras, a razão e a emoção, mas o maldito parece zombar de
tudo isso e descai do teto numa investida ousada que roça minha testa. Agora
está claro que ele quer me perturbar, não há mais silêncio, já me
desconcentrou, apagou a ideia da crônica e me deixou como um idiota, segurando
uma revista de arquitetura com belos projetos em Guarulhos e no Rio, Artigas e
Reidy, os olhinhos cor de ferrugem, patas pretas e um ferrão de fogo, se esse
pequeno monstro me picar, adeus à crônica e à leitura de Gogol.
Apago a lâmpada, talvez ele se acalme na
penumbra, às vezes a claridade é nociva e a opacidade, necessária. Mal consigo
enxergá-lo, é apenas uma serpentina escura dançando no espaço, sigo os
movimentos desse voo bêbado e hostil, tento entender meu inimigo e perdoá-lo,
antes que a revista o golpeie e ele caia no chão, e logo uma pisada sem piedade
e um chute para o pequeno jardim.
Acho que me entendeu, pois voa em silêncio,
afasta-se de mim, procura em vão a luz da lâmpada e depois ronda a porta
estreita, ali perto da romãzeira florida e da liberdade.
O voo lento pode ser uma trégua, e, pensando bem,
o inseto não é tão ameaçador assim; recordo o trançado do desenho das asas,
agora os olhinhos perderam o brilho, o ferrão é invisível na penumbra. De
repente, um voo rápido em espiral, e a três palmos do assoalho ele se equilibra
no ar, helicóptero perfeito, e uns segundos depois navega na horizontal até um
dos cantos do quarto, onde se refugia numa caixa de papelão.
Acendo a lâmpada, me aproximo da caixa e vejo meu
ex-inimigo no centro de uma fotografia antiga. Quieto, ferrão e asas
recolhidos, repousa no rosto de uma mulher ainda jovem, que sorri para a lente
do fotógrafo. Pego com cuidado a foto, saio do quarto e, com um sopro, o inseto
some na tarde morna.
Minha mãe me abraça numa manhã de 1960: nós dois
aninhados no banco da Praça da Matriz, aonde me levara para ver o aviário e
conversar com os pássaros. Lembro-me de que ela morreu há quatro anos, e devo
essa lembrança ao inseto estranho e sentimental, que me roubou a ideia de uma
crônica, mas me deu outra.
Agora,
quando já escurece, é pegar a caneta e escrever a primeira frase, quase sempre
a mais difícil...
Milton Hatoum, in
www.oestadao.com.br
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