Em seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel de
Literatura em 2007, Doris Lessing fez uma série de comentários sobre a
importância da tradição literária e da memória na vida e no trabalho de um
escritor. Lá pelas tantas, do alto de sua experiência, ela comenta um aspecto
às vezes negligenciado: a importância de preservar o espaço da escrita na vida
pessoal.
Lessing diz que é frequente perguntarem aos autores
sobre seu processo criativo, se escrevem à mão ou no computador, se têm alguma
mania ou disciplina, mas a questão essencial, de acordo com ela, é: “Você
conseguiu encontrar um espaço, aquele espaço vazio que deveria ter à sua volta
enquanto escreve?” Ela define esse espaço como “um modo de escuta, de atenção”,
que será preenchido pelas vozes dos personagens, pelas ideias. É sobre isso,
diz Lessing, que os autores conversam entre si: “Você encontrou esse espaço?
Está conseguindo preservá-lo a todo custo?”
Lembrei desse texto dias atrás, na Festa Literária
Internacional de Paraty, quando tive a oportunidade de tomar algumas xícaras de
café com o ensaísta John Jeremiah Sullivan, cujo excelente “Pulphead” acaba de
ser publicado no Brasil. Falamos sobre blues, sobre as manifestações que estão
ocorrendo no Brasil, sobre nossos livros anteriores e, finalmente, sobre o que
estávamos escrevendo agora. Ele está tentando não perder o rumo de um livro de
não ficção no qual trabalha há dois anos; eu ainda estou tentando voltar à
ficção depois de meses de divulgação do meu último romance e de esforços para
concluir todas as traduções e trabalhos que deixei de entregar no prazo por
causa dos meses dedicados à conclusão desse mesmo romance.
“Você encontrou esse espaço? Está conseguindo
preservá-lo a todo custo?”
Sempre imagino que caras como o Sullivan têm essa
questão resolvida em suas vidas. Ele deve pensar o mesmo de outros autores. A
verdade é que, na vida contemporânea, a batalha pela proteção desse espaço
vazio da criação se tornou um novo tipo de guerra, interminável e contra um
inimigo onipresente. Poucos autores — talvez somente os mais reclusos
temperamentos — escapam dela.
Não vou fingir que não estou vendo a ironia da
situação: dois autores na Flip, numa das poucas brechas entre as mesas,
entrevistas, conversas com leitores, festas de editoras e instâncias de interação
social voluntária ou forçada, compartilhando a nostalgia de um isolamento
perdido ou que jamais tiveram, pensando no que poderiam estar escrevendo
naquele exato momento caso estivessem em casa ou no escritório, milagrosamente
livres de incertezas, limitações, dispersão doméstica e miasmas de
procrastinação. Também não vou transformar o resto desta coluna numa diatribe
contra os eventos literários e a espetacularização da figura do escritor,
embora haja uma série de ameaças sérias nesta segunda, que vão do fomento à
indulgência e autoindulgência ao esvaziamento do caráter fabular da ficção
literária, passando por questões mercadológicas (promoção e autopromoção
vis-à-vis qualidade e recepção da obra et cetera).
Para além dos inegáveis benefícios para a difusão e
o debate da literatura, os eventos literários celebram o prazer da nossa
relação com os livros e o compartilhamento da leitura, ao mesmo tempo em que
servem ao mercado. Nada disso exclui necessariamente o rigor intelectual, o
desenvolvimento de juízo crítico e a sobriedade introspectiva de uma leitura
envolvida.
Mas nenhum autor pode perder de vista o risco
ressaltado por Lessing: “Você ainda tem seu espaço? Sua alma, aquele lugar
íntimo e necessário onde suas vozes podem conversar com você, onde consegue
sonhar? Oh, agarre firme, não solte!” Há autores capazes de preservar esse
espaço vazio na turbulência da cena literária, dos deslocamentos geográficos e
do convívio social extremo. Há até mesmo aqueles que extraem energia criativa
disso e depois escrevem em saguões de aeroporto e nos breves intervalos entre
os compromissos. Há autores que gostam de falar, ou ao menos não se importam.
Mas para
muitos — suspeito que seja a maioria — o espaço vazio ainda requer afastamento
e alguma medida de abnegação. No meu caso, falar em público (e se expor a
lentes) pode ser muito desgastante. Não sou intelectual. Só sei falar sobre o
que escrevi, e mesmo isso soa como uma espécie de indiscrição imprecisa. Falta
pathos à minha trajetória como autor e à porção de vida pessoal que estou
disposto a compartilhar nesse tipo de ocasião — o meio para transcender isso
são os livros, é a ficção, a literatura. Amplificação, disfarce, fantasia;
também a descrição amorosa de tudo que parece ser exterior a mim, mas me afeta.
Para prosseguir é necessário desaparecer um pouco. “Oh, agarre firme, não
solte!” Exposição e sossego. Vaidade e doação. E por aí vai. É uma longa
fileira de gangorras nesse parquinho.
Daniel Galera, in oglobo.globo.com/cultura
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