Cada
criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora,
outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem ficar de
boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o
charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um
homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um
simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a
polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um
tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida,
como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma
laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e
casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência
inteira. (...) Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a
mesma...
- Não?
- Não, senhor; muda de natureza e de
estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o
Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell.
São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza
mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos,
foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de
irmandade, suponhamos.
Machado
de Assis, in O Espelho
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