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Não me podes negar um fato, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior
do que o do beneficiado. Que é o benefício? É um ato que faz cessar certa
privação do beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vez
cessada a privação, torna o organismo ao estado anterior, ao estado
indiferente. Supõe que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer
cessar o incômodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o
organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o
ato. Não havendo nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque
ela não é uma planta aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é
certo, conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este fato,
aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu caminho,
explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra fórmula, pela privação
continuada na memória, que repercute a dor passada e aconselha a precaução do
remédio oportuno.
Não
digo que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes, persistir
a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição mais ou menos intensa; mas
são verdadeiras aberrações, sem nenhum valor aos olhos de um filósofo.
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Mas, repliquei eu, se nenhuma razão há para que perdure a memória do obséquio
no obsequiado, menos há de haver em relação ao obsequiador. Quisera que me
explicasses este ponto.
-
Não se explica o que é de sua natureza evidente, retorquiu o Quincas Borba; mas
eu direi alguma coisa mais. A persistência do benefício na memória de quem o
exerce explica-se pela natureza mesma do benefício e seus efeitos.
Primeiramente, há o sentimento de uma boa ação, e dedutivamente a consciência
de que somos capazes de boas ações; em segundo lugar, recebe-se uma convicção
de superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos meios; e
esta é uma das cousas mais legitimamente agradáveis, segundo as melhores
opiniões, ao organismo humano. Erasmo, que no seu Elogio da Loucura escreveu algumas coisas boas, chamou a atenção
para a complacência com que dois burros se coçam um ao outro. Estou longe de
rejeitar essa observação de Erasmo; mas direi o que ele não disse, a saber, que
se um dos burros coçar melhor o outro, esse há-de ter nos olhos algum indício
especial de satisfação.
Por que é que uma mulher bonita olha
muitas vezes para o espelho, senão porque se acha bonita, e porque isso lhe dá
uma certa superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos bonitas ou
absolutamente feias? A consciência é a mesma cousa; remira-se a miúdo, quando
se acha bela. Nem o remorso é outra coisa mais do que o trejeito de uma consciência
que se vê hedionda.
Machado
de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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