Entre
os números que contam a grandeza do município de Cachoeiro de Itapemirim há
este, de espantar o leitor distraído: 25 379 pios de aves anualmente. Não, a
prefeitura não espalhou pela cidade e distritos equipes de ouvidores
municipais, encarregados de tomar nota cada vez que uma avezinha pia. Trata-se
de pios feitos por caçadores. E quem os faz é uma família de caçadores de
ouvido fino – os Coelho, cujas três gerações moram na mesma e linda ilha, onde
o rio se precipita naquele encachoeirado, ou cachoeiro, que deu nome à cidade.
Trata-se de um artesanato sutil; não lhe
basta a perícia técnica de delicados torneiros que faz, desses pios
bem-acabados, pequenas obras de arte; exige sensibilidade que há de estar
sempre aguçada. Direis que é uma arte assassina; e na verdade, incontáveis
milhares de bichos do Brasil e da América do Sul já morreram por acreditar, em
um momento de fome ou de amor, naqueles pios imaginados entre os murmúrios de
Itapemirim.
Dizem que os Coelho, fazem até, em
segredo, pios para caçar mulher. Famosa caçada é essa, em não raro é o caçador
a presa da caça. Não sei. Ainda que eu seja Coelho pela parte de mãe, devo ser
de outro ramo, visto que nunca me deram um pio desses. Nem quero.
De minha família acho que saí mais ao
segundo tio. Quinca Cigano, nascido na lavoura mas vivido pelos caminhos, e que
vivia de barganhar. Barganhava uma coisa por outra, e depois mais outra: e não
sei o que arrumava, que depois de muito andar pelo mundo, voltava sempre ao
Cachoeiro, tendo apenas de seu um cavalo magro e triste. Chegava sempre de
noite, como um ladrão; e, como um ladrão, dava a volta por cima do morro e
ficava parado, no escuro, atrás da tela da cozinha, esperando. Quando minha mãe
ia à cozinha fazer o último café, Quinca Cigano, lá do escuro, murmurava seu
nome. Ela se assustava; mas ele logo dizia, com sua voz que a poeira dos
caminhos e a cachaça das vendinhas faziam cada vez mais rouca: “É Quinca”.
Entrava; recebia, calado, comida para ele
e seu cavalo. Tomava um banho, dormia – e de manhã cedo, de roupa limpa e barba
feita, estava na sala de visitas conversando com meu pai. Movendo lentamente
sua cadeira de balanço, meu pai lhe dava um cigarro de palha, e perguntava:
“Então, Quinca?” Ele dizia que ia voltar para a família, para o sítio;agora
queria derrubar aquela mata que dava para o sítio do Sobreira, formar um
cafezal; ia fazer uma manga maior para os porcos; e comentava o preço do arroz
e a queda das chuvas. Meu pai o ouvia, muito sério. Sabia que Quinca era
sincero naquele momento; e também que alguns dias depois ele sumiria outra vez
pelo mundo, no trote do seu cavalo, o cigano solitário.
Feito Quinca Cigano, eu também só tenho
caçado brisas e tristeza. Mas tenho outros pesos na massa de meu sangue. Estou
cansado; quero parar, engordar, morrer. Que os Coelho da ilha me arranjem um
pio, não para caçar mulher, mas para caçar sossego. Deve ser um pio triste, mas
tão triste que, a gente piando ele, só escute depois, nesse mato inteiro, um
grande silêncio, o silêncio de todos os bichos tristes. Eu não quero, como
Quinca Cigano, sair pelo mundo caçando passarinho verde. Passarinho verde não
existe; e quem disse que viu, ou ensandeceu ou mentiu.
Rubem
Braga, in A borboleta amarela (Crônicas)
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