“Dois
ingressos”, pedi me abaixando um pouco, espiando as tristes feições que me
atendiam. Sabia que eu estava absolutamente sozinho, mas não me contive,
repeti: “Dois ingressos”. Na verdade não me importava com o filme em cartaz.
Apenas deixei que o vento batesse no que me restava de cabelo, e fiquei ali,
esperando que a moça me entregasse os bilhetes para o filme sobre o qual eu nem
vagamente ouvira falar. Uma criança, claro, me puxava pela calça para que eu
comprasse suas pastilhas de hortelã. Dizem que na eternidade todas as coisas
vão se conectar umas às outras sem que nenhuma pese demais, ou seja, sem que
nada chame muito a atenção sobre si para que tudo possa se encadear
indefinidamente, um papo assim. Pois foi nisso que fui pensar no momento em que
aguardava os bilhetes. A criança vendedora de pastilhas já não estava por ali.
Entrei.
Dormi. Acordei com o filme pelo meio. Dois corpos se beijavam dentro de um
carro. Depois uma batalha esquisita entrava. Numa época anterior à
possibilidade histórica de um carro. Depois... depois uma sombra azeitonada
cochichava ao meu ouvido um torvelinho de sílabas com uma fenda voraz em certo
trecho de toda a confusão; cochichava o que não sou doido de reproduzir, pois
venho desenhando em mim um homem com a mania férrea de se manter na mansidão do
que pensa aparentar. Mas...mas em que ponto mesmo eu ia tocar?
Ah,
precisava dormir um pouco mais. A música na tela era um tanto militar, como se
saísse de um tranco de guerra, de algo que de sonífero tinha apenas um
instrumento calado, constantemente a postos, preparado para entrar...
Aliás,
o que eu queria era mesmo uma pausa momentânea diante de tanta erupção sem a
guarda dos fatos... Compreende ou prefere se afastar? Mas espera!, espera... O
que eu queria era voltar a antes da sessão, eu com as mãos sobre o mármore frio
da bilheteria, pedindo calmamente dois ingressos, em plena vigência de uma
sesta impossível, com aquela baboseira sobre o rigor da eternidade na cabeça,
lembro... Duas, duas e meia da tarde... Ah, não sei porque volto ao plano
inicial na calçada, em frente ao orifício por onde a mão passava com o dinheiro
e voltava com as entradas; só sei, vocês verão, que não tenho aonde chegar – é
isso...
Então
me levantei, fui ao banheiro do cinema. Exatamente assim: me levantei, fui ao
banheiro do cinema, justamente nessa ordem quase demencial ao panorama da hora,
e soube pelo espelho que eu caçoava de mim. Língua, dentes, orelhas, tudo, tudo
já não se continha em si, já expunha um outro mundo onde criaturas como ele...
ele, ele sim, que se olhava no espelho de um cinema sujo e malcheiroso, esse
que nunca ninguém mais viu, inclusive eu, se eu ainda fosse um pronome
utilizável aqui onde já nem me encontro – mas calma!, pois eu dizia... dizia
que inclusive eu de fato nunca mais vira aquele homem que se olhava no espelho
do banheiro do cinema, a reparar que toda aquela massa orgânica até então coesa
já caçoava irremediavelmente de sua própria pele, de seu próprio desconsolo
até, uma vez que o tal desconsolo já não tinha realidade que o pudesse
sustentar, sustentar para na primeira oportunidade poder eliminá-lo num afago
quem sabe, num beijo de morte talvez, enfim!, deixa pra lá...
“Dois ingressos”, repeti. “Dois
ingressos”, murmurei o mantra esfarrapado saindo do cinema – ali, bem ali
naquela esquina onde eu já não podia entrar...
João
Gilberto Noll, in Revista Cult 147
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