Uma vez fomos ao Cinema Apolo.
Sendo matinê de domingo, esperávamos um bom filme
de mocinho. Comíamos bala café-com-leite e batíamos na cabeça dos outros com
nossos gibis. Quando as luzes se apagaram, aplaudimos e assobiamos; mas depois
que o filme começou, fomos ficando apreensivos.
O mocinho, que se chamava James Cagney, era
baixinho e não dava em ninguém. Ao contrário: cada vez que encontrava o bandido
– um sujeito alto e bigodudo chamado Sam – levava uma surra de quebrar os
ossos. Era murro, e tabefe, e chave-inglesa, e até pontapé na barriga. James
Cagney apanhava, sangrava, ficava de olho inchado – e não reagia.
A princípio estávamos murmurando, e logo batendo os
pés. Não tínhamos nenhum respeito, nenhuma estima por aquele fracalhão
repelente.
James Cagney levou uma vida atribulada. Muito cedo
teve de trabalhar para se sustentar. Vendia jornais na esquina. Os moleques
tentavam roubar-lhe o dinheiro. Ele sempre se defendera valorosamente. E agora
sua carreira promissora terminava daquele jeito! Nós vaiávamos, sim, nós não
poupávamos os palavrões.
James Cagney já andava com medo de nós. Deslizava
encostado às paredes. Olhava-nos de soslaio. O cão covarde, o patife, o
traidor.
Três meses depois do início do filme ele leva uma
surra formidável de Sam e fica estirado no chão, sangrando como um porco. Nós
nem nos importávamos mais. Francamente, nosso desgosto era tanto, que por nós
ele podia morrer de uma vez – a tal ponto chegava nossa revolta.
Mas aí um de nós notou um leve crispar de dedos na
mão esquerda, um discreto ricto de lábios.
Num homem caído aquilo podia ser considerado um
sinal animador.
Achamos que, apesar de tudo, valia a pena trabalhar
James Cagney. Iniciamos um aplauso moderado, mas firme.
James Cagney levantou-se. Aumentamos um pouco as
palmas – não muito, o suficiente para que ele ficasse de pé. Fizemos com que
andasse alguns passos. Que chegasse a um espelho, que se olhasse, era o que
desejávamos no momento.
James Cagney olhou-se no espelho. Ficamos em
silêncio, vendo a vergonha surgir na cara partida de socos.
- Te vinga! – berrou alguém. Era desnecessário:
para bom entendedor nosso silêncio bastaria, e James Cagney já aprendera o
suficiente conosco naquele domingo à tarde no Cinema Apolo.
Vagarosamente ele abriu a gaveta da cômoda e pegou
o velho revólver do pai. Examinou-o: era um quarenta e cinco! Nos assobiávamos
e batíamos palmas. James Cagney botou o chapéu e correu para o carro. Tínhamos
feito de James Cagney um novo homem. Correspondíamos aprovadoramente ao seu
olhar confiante.
Descobriu Sam num hotel de terceira. Subiu a escada
lentamente. Nós marcávamos o ritmo de seus passos com nossas próprias botinas.
Quando ele abriu a porta do quarto, a gritaria foi ensurdecedora.
Sam estava sentado na cama. Pôs-se de pé. Era um
gigante. James Cagney olhou para o bandido, olhou para nós. Fomos forçados a
reconhecer: estava com medo. Todo o nosso trabalho, todo aquele esforço de
semanas fora inútil. James Cagney continuava James Cagney. O bandido tirou-lhe
o quarenta e cinco, baleou-o no meio da testa: ele caiu sem um gemido.
- Bem feito – resmungou Pedro, quando as luzes se
acenderam. – Ele merecia.
Foi o nosso
primeiro crime. Cometemos muitos outros, depois.
Moacyr Scliar, in Histórias sobre ética
Nenhum comentário:
Postar um comentário