Não
se deixa prova em branco, qualquer estudante sabe disso. O vazio nada rende, é
zero na certa, e denota não apenas desconhecimento do assunto em questão, mas
também falta de empenho e imaginação. Preencher o vazio com algo que demonstre
esforço e inteligência pode até proporcionar ao aluno uma nota razoável. Ao se
exercitar no que batizei de ars embromatoria (a arte de embromar), o aluno
testa a sensibilidade do professor, que, se de fato sensível e sensato, só não
irá recompensá-lo se a algum disparate (a inclusão do hino do Palmeiras numa
redação sobre a imigração no Brasil, por exemplo) somar-se um aluvião de erros
de ortografia e concordância verbal, como recém aconteceu numa prova do Enem.
Quando estudante,
exercitei-me na ars embromatoria com notável galhardia - façanha considerável
levando-se em conta que estudei no exigentíssimo Colégio Pedro II. No então
denominado terceiro ano ginasial, surpreendido pelo tema sorteado para a
dissertação de uma prova de Geografia, "O fundo do mar", ponto de
atroz aridez reduzido na minha memória a um arquipélago de termos vagos com os
quais não saberia montar duas frases com um mínimo de sentido, não recolhi as
velas. Salpicando uma "era mesozoica" aqui, uma "planície
abissal" ali, um "talude continental" acolá, enchi duas ou três
folhas de papel almaço com uma divagação sobre a riqueza dos oceanos que
aprendera devorando Vinte Mil Léguas Submarinas, de Jules Verne. Arranquei um
7, a nota mais alta da turma.
Lembrei-me desse
episódio escolar não por causa do Enem, mas de uma reminiscência do jornalista
Edward Jay Epstein, publicada na última New York Review of Books. Em setembro
de 1954, Epstein estudava na Universidade de Cornell, onde Vladimir Nabokov ensinava
russo e literatura europeia. Era o "121". O professor Nabokov só
identificava os alunos pelos números de seus assentos na sala. Não queria
intimidades e era durão com eles (ir ao banheiro no meio da aula, só com
atestado médico); e se os proibia de identificar-se com qualquer personagem das
leituras selecionadas, liberava-os de conhecer-lhes o contexto histórico. Os
romances, dizia, são obras de pura ficção, cujo único propósito é encantar o
leitor.
Porque
preferencialmente articuladas em torno de personagens e situações da obra em
foco, em suas provas os leitores de orelhada dançavam feio. Epstein, que nunca
havia lido Anna Karenina, gelou ao saber que teria de "descrever a estação
de trem em que Anna e Vronski se viram pela primeira vez". Para não deixar
o teste em branco, descreveu a estação que conhecia da versão para o cinema,
estrelada por Vivien Leigh e dirigida por Julien Duvivier. Nos mínimos detalhes
- muitos dos quais, descobriu depois, não existiam no romance.
Gélida e brumosa,
com gente agasalhada da cabeça aos pés e operários atravessando as linhas do
trem, o chefe da estação com seu gorro colorido, a premonitória morte de um
agulheiro esmagado por uma composição que recuava - só isso guardei do primeiro
encontro de Anna e Vronski, na estação de trem de Moscou, tal como Tolstoi, e
não Duvivier, o descreveu. Ah, sim, e os brilhantes olhos cinzentos de Anna que
tão intensamente chamaram a atenção do futuro amante. Que nota o professor
Nabokov me daria por essa descrição?
Ao
"121" ele deu a nota máxima. Encantado com a ars embromatoria do
pupilo, ainda por cima o convidou para seu conselheiro cinematográfico. Epstein
passou a assistir a quatro filmes no meio da semana, dos quais dava conta ao
professor, que só então escolhia o que ia ver na noite de sexta-feira. Epstein
ainda era pago por isso.
Se eu fosse
professor de literatura, tentaria implantar aqui - se é que já não implantaram
- o método Nabokov de avaliação. Como ele, só permitiria, nas provas, o uso de
um dicionário. Apenas o aluno, com seus conhecimentos, sua memória, sua
imaginação, e mais nada, submetido ao desafio de demonstrar que leu a obra
abordada ou que é capaz de sair pela tangente de forma criativa, na corda bamba
da ars embromatoria.
Já que o objetivo
maior de todo professor é obrigar os alunos a mergulharem nos livros abordados
em aula, certos testes tentariam de propósito dificultar ou mesmo inviabilizar
a segunda opção. Não é tarefa difícil; basta ser específico, evitar
generalidades, aludir a situações particulares. Como cascatear uma redação que
nos obrigasse a descrever, por exemplo, o homônimo cão de Quincas Borba ou a
redação do jornal em que Isaías Caminha trabalhava ou o encontro de G.H. com a
barata se não lemos - ou lemos na diagonal - os respectivos romances de Machado,
Lima Barreto e Clarice Lispector?
Tampouco de
oitiva ou colando no Google pelo celular poderíamos descobrir, no afã de uma
prova, como Macunaíma se cura de um sarampão, de quem é o sangue que o padre
Nando encontra no ossuário de Quarup e onde Paulo Simões, o anti-herói de
Pessach: A Travessia, de Carlos Heitor Cony, celebra seu aniversário de 40
anos.
A quem interessar
possa, Quincas Borba é um cão de tamanho médio, pelo cor de chumbo, malhado de
preto; a redação do matutino de Recordações do Escrivão Isaías Caminha tem uma
sala pequena, mais comprida que larga, com duas filas paralelas de mesas
minúsculas, ocupadas pelos redatores e repórteres; G.H. depara com a barata
dentro de um armário e custa um bocado a se livrar dela; Macunaíma cura o
sarampão com a água milagrosa de um curandeiro chamado Bento; o sangue
encontrado pelo padre Nando pertence a Levindo, atingido por um tiro numa
manifestação contra o usineiro Zé Quincas; Paulo Simões "festeja" o
aniversário na casa dos pais, onde ganha de presente três comprimidos de
cianureto.
Fim do recreio.
Sérgio Augusto, in www.estadao.com.br, de 06/04/2013
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