Quando a memória da gente é boa, pululam as aproximações históricas ou
poéticas, literárias ou políticas. Não é preciso mais que andar, ver e ouvir.
Já uma vez me aconteceu ouvir na rua um dito vulgar nosso, em tão boa hora que
me sugeriu uma linha do Pentateuco, e achei que esta explicava aquele, e da
oração verbal deduzi a intenção íntima. Não digo o que foi, por mais que me
instiguem; mas aqui está outro caso não menos curioso, e que se pode dizer por
inteiro.
Já lá vão vinte anos, ou ainda vinte e dois. Foi na
rua de São José, entre onze horas e meio dia. Vi a alguma distância parado um
homem de opa, creio que verde, mas podia ser encarnada. Opa e salva de prata,
pedinte de alguma irmandade, que era muito comum naqueles anos, tão comum que
não me chamaria a atenção, se não fossem duas circunstâncias especiais.
A primeira é que o pedinte falava com um pequeno,
ambos esquisitos, o pequeno falando pouco, e o pedinte olhando para um lado e
outro, como procurando alguma coisa, alguém, ou algum modo de praticar alguma
ação. Depois de alguns segundos foram andando para baixo, mas não deram muitos
passos; cinco ou seis, e vagarosos; pararam, e o velho – o pedinte era um velho
– mostrou em cheio o seu olhar espalhado e inquisidor.
Não direi o assombro que me causou a vista do
homem. Já então ia mais perto. Cara e talhe, era nada menos que o porteiro de
um dos teatros dramáticos do tempo, S. Pedro ou Ginásio; não havia que duvidar,
era a mesma fisionomia 0bsequiosa de todas as noites, a mesma figura do dever,
sentada à porta da platéia, recebendo os bilhetes, dando as senhas, calada,
sossegada, já sem comoção dramática, tendo gasto o coração em toda a sorte de
lances durante anos eternos.
Ao vê-lo agora, na rua, de opa, a pedir para alguma
igreja, assaltou-me a lembrança destes dois versos célebres:
Le matin catholique et le soir idolâtre,
Il dine de l'eglise et soupe du
théâtre.
Ri-me naturalmente deste ajuste de coisas; mas
estava longe de saber que o ajuste era ainda maior do que me parecia. Tal foi a
segunda circunstância que me chamou a atenção para o caso. Vendo que pedinte e
porteiro constituíam a mesma pessoa, olhei para o pequeno e reconheci logo que
era filho de ambos, tal era a semelhança da fisionomia, o queixo bicudo, o
jeito dos ombros do pai e do filho . O pequeno teria oito ou nove anos. Até os
olhos eram os mesmos: bons, mas disfarçados.
É ele mesmo, dizia eu comigo; é ele mesmo, “Le
matin catholique”, de opa e salva, contrito, pede de porta em porta a esmola
dos devotos, e o sacristão que lhe dê naturalmente a porcentagem do serviço;
mas logo à tarde despe a opa de seda velha, enfia o paletó de alpaca, e lá vai
ele para a porta do deus Memo: “et le soir idolâtre”.
Enquanto eu pensava isto, e ia andando, resolveu
ele afinal alguma coisa. O pequeno ficou ali mesmo na calçada, olhando para
outra parte, e ele entrou num corredor, como quem vai pedir alguma esmola para
as bentas almas. Pela minha parte fui andando; não convinha parar, e a
principal descoberta estava feita. Mas ao passar pela porta do corredor, olhei
insensivelmente para dentro, sem plano, sem crer que ia ver qualquer coisa que
merecesse ser posta em letra de impressão.
Vi meia calva do pedinte, meia calva só, porque ele
estava inclinado sobre a salva, fazendo mentalmente uma coisa, e fisicamente
outra. Mentalmente nunca soube o que era; talvez refletia no concílio de
Constantinopla, nas penas eternas ou na exortação de S. Basílio aos rapazes.
Não esqueçamos que era de manhã: “'Le matin catholique”. Fisicamente tirava
duas notas da salva, e passava-as para o bolso das calças. Duas? Pareceram-me
duas; o que não posso dizer é se eram um ou dois mil réis; podia ser até que
cada uma tivesse o seu valor e fossem três mil réis, ao todo; ou seis, se uma
fosse de cinco e outra de um. Mistérios tudo; ou, pelo menos, questões
problemáticas, que o bom senso manda não investigar, desde que não é possível
chegar a uma averiguação certa. Lá vão vinte anos bem puxados.
Fui andando e sorrindo de pena, porque estava
adivinhando o resto, como o leitor, que talvez nasceu depois daquele dia; fui
andando, mas duas vezes voltei a cabeça para trás. Da primeira, vi que ele
chegava à porta e olhava para um lado e outro, e que o pequeno se aproximava;
da segunda, vi que o pequeno metia o dinheiro no bolso, atravessava a rua,
depressa, e o pedinte continuava a andar, bradando: “Para a missa...”
Nunca pude saber se era a missa das Almas ou do
Sacramento, por não ter ouvido o resto e não me lembrar também se a opa era
encarnada ou verde. Pobres almas, se foram elas as defraudadas! O certo é que
vi como esse obscuro funcionário da sacristia e do teatro realizava assim mais
que textualmente esta parte do dísstico: “Il dine l'église et soupe du
théâtre”.
De noite fui
ao teatro. Já tinha começado o espetáculo; ele lá estava sentado no banco,
sério, com o lenço encarnado debaixo do braço e um maço de bilhetes na mão,
grave, calado, e sem remorsos.
Machado de Assis, in A Quinzena, de Vassouras, n°
7, 01/06/1886
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