Vocês não acreditam, mas também este cronista
costuma ir ao Banco, e não só para pagar contas de luz, gás, telefone. Vai
conversar com o Gerente - um gerente simpático, desses que não coçam a orelha
quando a gente propõe uma reforma de título. Mas quem sou eu para pleitear
tamanha mercê? Procuro o Gerente para conversar sobre amenidades, e ele me ouve
com paciência e atenção. Até me conta coisas de seu filho, o Escritor. O
Escritor tem três anos e escreve literalmente em todas as paredes da casa.
Fareja livros com gravuras e sem gravuras e aprende coisas que eu,
possivelmente, ignoro. A curiosidade intelectual do Escritor é insaciável.
Assim fazemos do Banco, sem prejuízo dos interesses bancários (pois o Gerente é
uma fera para trabalhar no meio das maiores apoquentações), um lugar de grato
repouso.
Ontem o gerente estava tão assoberbado de clientes,
papéis, telefonemas, recados, que não tive coragem de me aproximar. Fiquei à
espera na poltrona, ao lado de dois rapazes que também esperavam. Esperavam e
conversavam sobre política, inflação, Copa do Mundo.
– E como vai teu velho?
– Meu velho? Respondeu o outro. – Aquele vai sempre
bem. Melhor do que eu, você e todo mundo.
– Qual a última dele?
– Não tem última. Todas são novas e contínuas. Aos
sessent’anos – sessenta e lá vai fumaça – nada, corre, entra em pelada, monta,
joga vôlei e só não rema porque não encontra companheiros com a mesma fibra,
para disputar regata. Enquanto isso, fuma e bebe.
– E... no resto?
– No resto ele é ainda de goleada. Parece mentira,
mas as mulheres adoram o Velho, e ele capricha para dar conta do serviço.
– Quantas vezes ele já casou?
– Perdi a conta. Quatro ou cinco, se não me engano.
Ou seis. O extraordinário é que nenhuma das ex se queixa dele, todas que
conheço continuaram suas amigas e, de um modo ou outro, dão a entender que o
desempenho dele é cem por cento. Sabe de uma coisa?
– Sei. Você tem inveja dele.
– Tenho. Pra que mentir? Meu primeiro casamento não
deu certo, o segundo menos ainda. Então desisti, agora sou free-lancer.
Mas com o Velho é diferente. Todos os casamentos funcionaram.
– Então, por que acabaram?
– O Velho tem uma teoria que casamento não pode
esfriar, vira rotina. Antes que isto aconteça, ele passa uma conversa manhosa
na gatona – é especialista em gatonas – e o último episódio da novelinha é
vivido sem choro nem briga. Um sábio.
– Um mestre.
– É como eu costumo chamá-lo. Ele responde que não
tirou diploma e que todo mundo se for habilidoso, tira de letra. Tem dia que
chego a me preocupar: “Mestre, olha essas coronárias!” Ele ri, não dá confiança
em responder. “Mestre, não tem medo de negar fogo?” Aí então nem se dá ao
trabalho de me olhar; faz que não ouviu. O Nuno, meu irmão mais velho – irmão
de pai e mãe, do primeiro casamento -, fica besta de ver tanta resistência, e
diz que o Velho não existe, que nosso pai é Energia Cósmica em pessoa.
– E teus outros irmãos?
– Os outros? Deixe ver... Somos quatorze irmãos,
espalhados no mundo. Todos adoram o Velho, aliás o Nuno também. Falei quatorze,
mas só Deus sabe quantos haverá por aí, desconhecidos da gente. Nem o Velho sabe.
– Algum de vocês puxou a ele na vitalidade?
– Uns fazem força, não creio que consigam. Esse
negócio não comporta imitação. Ou bem que o cara nasceu com alegria de viver e
gozar a vida, ou nasceu sem isso, e não tem vitamina que ajude. Claro que
sempre há margem para performances individuais brilhantes, e o
normal é a gente ser bem-sucedida – até certo ponto, o ponto X. Mas o Velho
excede a marcação. Nunca vi ninguém tão identificado com o mundo, a mulher, as
coisas agradáveis da vida. Sem contar vantagem – isso é importante. Não se
vangloria de nada. Vive plenamente.
– Quer dizer que ele dá nó até em pingo d’água?
– Não faz outra coisa. Bem, vou indo. Nosso amigo
Gerente ainda não se desvencilhou daquele cara, e eu prefiro voltar depois.
– Espera mais um pouco.
– Não posso. Tenho de ir a um batizado.
– Essa não!
– O Velho está
me esperando. Me escolheu para padrinho do seu rebento mais novo. Tenho um
irmãozinho de dois meses, não te contei ainda? Ciao.
Carlos Drummond de Andrade, in Boca de luar
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