Ló: Vi agora um envelope para você nas mãos do
Múcio e lembrei-me de lhe mandar um bilhete. Recebi sua carta de 28, cheias de
coisas doces, que agradeço. Apresente ao nosso amigo Tatá os meus sentimentos
por causa dos quatro bolos que levou. Isto por aqui continua na mesma estopada,
com muita poeira e muito calor. Para quebrar a monotonia, a velha Iaiá
enterrou-se ontem. Morreu anteontem, de ruindade. Os parentes já estão fazendo
questão pra voar nos troços que ela deixou. D. Heloísa recebeu carta sua. Disse-me
o Chico que você pede à mulher dele para me fiscalizar. Não é possível, que ela
não vive comigo. Clélia e Múcio continuam carcamanizados, um no francês, outro
no italiano. Júnio também. Apareceu um periquito número 3. Esse meu filho tem
um gosto esquisito para os periquitos. Por que será? O S. Bernardo está
pronto, mas foi escrito quase todo em português, como você viu. Agora está
sendo traduzido para o brasileiro, um brasileiro encrencado, muito diferente
desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com
uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem
suspeitava que existissem. Além do que eu conhecia, andei a procurar muitas
locuções que vou passando para o papel. O velho Sebastião, Otávio, Chico e José
Leite me servem de dicionários. O resultado é que a coisa tem períodos
absolutamente incompreensíveis para a gente letrada do asfalto e dos cafés.
Sendo publicada, servirá muito para a formação, ou antes para a fixação, da
língua nacional. Quem sabe se daqui a trezentos anos eu não serei um clássico?
Os idiotas que estudaram gramática lerão S. Bernardo,
cochilando, e procurarão nos monólogos do seu Paulo Honório exemplos de
boa linguagem. Está aí uma página cheia de 'S. Bernardo', Ló. É uma desgraça,
não é? Tanta letra e tanto tempo para encher linguiça! Mas isso prova que a
minha atenção está virada para os meus bonecos e que não tenho vagar para
pensar nas fêmeas do Pernambuco Novo. E adeus por hoje. Beijos em Lulu e em
Tatá. Lembranças a tudo. Abrace-se. Ainda não tive tempo de escrever a carta
para o Tatá.
Graciliano. 1º de novembro de 1932. (P. Dos
Índios).
Graciliano
Ramos, in Cartas
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