sexta-feira, 22 de março de 2013

O São Bernardo está pronto - Carta de Graciliano à esposa Heloísa de Medeiros Ramos


Ló: Vi agora um envelope para você nas mãos do Múcio e lembrei-me de lhe mandar um bilhete. Recebi sua carta de 28, cheias de coisas doces, que agradeço. Apresente ao nosso amigo Tatá os meus sentimentos por causa dos quatro bolos que levou. Isto por aqui continua na mesma estopada, com muita poeira e muito calor. Para quebrar a monotonia, a velha Iaiá enterrou-se ontem. Morreu anteontem, de ruindade. Os parentes já estão fazendo questão pra voar nos troços que ela deixou. D. Heloísa recebeu carta sua. Disse-me o Chico que você pede à mulher dele para me fiscalizar. Não é possível, que ela não vive comigo. Clélia e Múcio continuam carcamanizados, um no francês, outro no italiano. Júnio também. Apareceu um periquito número 3. Esse meu filho tem um gosto esquisito para os periquitos. Por que será? O S. Bernardo está pronto, mas foi escrito quase todo em português, como você viu. Agora está sendo traduzido para o brasileiro, um brasileiro encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que existissem. Além do que eu conhecia, andei a procurar muitas locuções que vou passando para o papel. O velho Sebastião, Otávio, Chico e José Leite me servem de dicionários. O resultado é que a coisa tem períodos absolutamente incompreensíveis para a gente letrada do asfalto e dos cafés. Sendo publicada, servirá muito para a formação, ou antes para a fixação, da língua nacional. Quem sabe se daqui a trezentos anos eu não serei um clássico? Os idiotas que estudaram gramática lerão S. Bernardo,  cochilando, e procurarão nos monólogos do seu Paulo Honório exemplos de boa linguagem. Está aí uma página cheia de 'S. Bernardo', Ló. É uma desgraça, não é? Tanta letra e tanto tempo para encher linguiça! Mas isso prova que a minha atenção está virada para os meus bonecos e que não tenho vagar para pensar nas fêmeas do Pernambuco Novo. E adeus por hoje. Beijos em Lulu e em Tatá. Lembranças a tudo. Abrace-se. Ainda não tive tempo de escrever a carta para o Tatá.
Graciliano. 1º de novembro de 1932. (P. Dos Índios).
Graciliano Ramos, in Cartas

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