Se o homem estivesse
realizado com seu modo de viver urbano e confortável, não viveria sonhando com
a paz de cabanas
O mundo mudou. E não estou falando isso
porque o papa Bento XVI renunciou. Nem porque o próximo papa talvez seja negro,
como dizem, o que seria um claro indício de mudança nos hábitos do mundo. Nem
porque o Brasil agora tem como presidente uma mulher, que insistem em chamar
feiamente de “presidenta”. Não. “O mundo mudou” porque está sempre mudando. E
sempre estará, até que um dia chegue o seu alardeado fim (se é que chegará).
Mas quando um homem de meia idade (qual
será a inteira?) afirma “o mundo mudou”, o que está verdadeiramente querendo
dizer? Que assiste ao nascimento de uma outra era, quiçá. Que vê o mundo
passando por uma transformação profunda, como há muito não se via, fazendo a
distância de uma década parecer um século.
Hoje vivemos “protegidos” por muitos
cuidados e paparicos, sempre sob a forma de “serviços”, e desde que você tenha
dinheiro para usá-los, claro. Carro quebrou na marginal? Relaxe, o guincho da
seguradora virá em minutos resgatá-lo. Tem dificuldade de locomoção? Espere, a
empresa aérea disporá de uma cadeira de rodas para levá-lo ao terminal. Surgiu
uma goteira no seu chalé em plenas férias de verão? Calma, o moço que conserta
telhados está correndo para lá agora.
Vai ficando para trás um outro mundo – de
iniciativas, de gestos solidários, de amizade, de improvisação (sim, “quem não
improvisa se inviabiliza”, eu diria, parafraseando Chacrinha). Estamos criando
uma geração que não sabe bater um prego na parede, trocar um botijão de gás,
armar uma rede. Tá, o leitor agora se pergunta do outro lado: “Quem precisa
disso neste mundo cheio de confortos?”...
É, talvez ninguém precise de fato. Mas
tenho o orgulho e a vaidade bestas de ter em meu “currículo” a habilidade de
fazer “boca de lobo”, por exemplo. Explico: quando a rede – rede de dormir,
aquela que o pensador italiano Domenico de Masi considera a maior invenção
humana – é longa demais, mais longa que o espaço reservado para armá-la, então
damos um nó engenhoso que faz com que o punho da rede diminua, fazendo-a caber
naquele espaço.
Parece ser de uma inutilidade sem fim
estar aqui falando de redes e improvisações e imaginando um amigo indo ao
encontro do outro para resgatá-lo no trânsito engarrafado do fim da tarde...
Mas, se o homem contemporâneo estivesse tão plenamente realizado com seu modo
de viver urbano e confortável, não viveria sonhando com a paz de cabanas e
chalés, com férias perfeitas perto do mar azul de Alagoas, onde poderia ver
tevê a cabo mas sem sair da rede (a de dormir, não a internet); nem viveria
maldizendo os prestadores de serviços que lhe impõem castigos e humilhações,
toda vez que atrasam a entrega ou adiam infinitas vezes a colocação da cortina da
sala.
É, o mundo mudou sim. E
não adianta dirigir nossas lamúrias a Deus, ocupado demais com as muitas
goteiras do mundo e as dezenas de motoboys atropelados na avenida Rebouças. Só
nos resta o telefone do SAC, onde gastaremos nossa bílis com impropérios ao
vento; ou o site da loja de eletrodomésticos onde ninguém tem nome (que saudade
dos Reginaldos, Edmilsons e Velosos!). Ligaremos para falar com a nossa própria
solidão, a nossa dependência do mundo dos serviços e a nossa incapacidade de
viver com real simplicidade, soterrados por senhas, protocolos e pendências
vãs. Nem Kafka poderia sonhar com tal mundo.
Zeca Baleiro, in www.istoe.com.br
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