Imagem: Google
Sabia que a casa estava morrendo, condenada. O tempo, consumido em
várias gerações, pesava como um câncer, corroendo o mármore, selando portas,
deixando um rastro de ferrugem nos metais. Do vestíbulo à cozinha expandia seus
domínios. Forte, a casa gemia, lançava ruídos como um animal contorcido estala
as vértebras na agonia.
Até os fantasmas que outrora habitavam as zonas de penumbra, abandonavam
o sítio em despedida. E à noite, no quarto recolhido, esquecia o arrastar das
chinelas de Monsieur, os suspiros prolongados de Mademoiselle, o ranger da
cadeira de rodas de Madame.
Incontáveis noites passara em vigília, captando sons, identificando-os,
fazendo-os vizinhos e amigos por nuances que somente um ouvido enfermiço pode
perceber. E no escutar noturno, a mão que se afundava no corpo em busca de
prazer, que aninhava na concha o amor solitário e repetido, quedava inerte,
junto à outra no peito em oração. Depois, o sono envolvia a quietude.
Até o dia em que as chinelas de Monsieur silenciaram no armário, a
cadeira de Madame estacionou no fundo do corretor e os suspiros de Mademoiselle
extinguiram-se na distância. Estavam sós, ele e a casa em agonia.
Podia sentir sob os pés os alicerces minados como ossos atingidos.
Embatida por levas de gerações, a casa resistia, enquanto o mal, forte,
inflexível, nutrido por lembranças – telas, mármores, baixelas enverdecidas no
abandono do repasto – o mal crescia. Restos de um tempo nobiliárquico e
perdido: as botas de montaria do Monsieur, a bengala encastoada de Madame.
Pelas pedras da parede vertia um choro: a casa, combalida, se esvaía.
E se na resistência ao mal, a casa estremecia, vibravam os cristais
cantando a música perdida. E à noite, no sarau, a morte era o único conviva.
Às vezes, no aconchego do leito, saciado o amor no linho do lençol,
ensaiava cantigas de infância, no afã de encontrar o tempo esquecido. Nulo
esforço, pois não mais se ouvia: cerrava os olhos do corpo, as portas da
memória; deixava-se embalar pela lenta agonia. Amanhã, talvez, com sol e à
força de querer, a casa deixaria. Hoje não, que ainda resta tempo e espaço a
serem preenchidos.
Mas quando a noite incorporou-se ao sono e o
silêncio instalou-se mais forte nos domínios, compreendeu que era tardia a
fuga: último varão, cúmplice final da casa em agonia enrodilhou-se no leito
quando as paredes ruíram, abrigando-o para sempre, como berço ou ataúde.
Carlos
Carvalho, in Calendário do medo
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