Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e
papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo,
aplicando-se em ideias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se
pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você,
milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de
repente sob olhares à sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso,
faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo
“ciao” ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda um
pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em
casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era
conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer,
por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida
e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos,
tirando a roupa do corpo como se tirasse a importância das coisas, pondo-se
enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o pudor (o seu
pudor, bem entendido), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória,
toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome depois com sua
nudez no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um
salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de
grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o
espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto
se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda
como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda
não precipitado), e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede
languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem
se larga na vida, e vá fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os
olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de
se sentir embalado pelo mundo.
Raduan
Nassar, in Menina a caminho
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