Em "O Som
ao Redor", primeiro longa de ficção do crítico e cineasta pernambucano
Kleber Mendonça Filho, as tensões e contradições sociais do Brasil se
materializam nos barulhos que cada camada da sociedade é capaz de fazer.
O que nos
define é o som que somos capazes de produzir, e não aquele que somos obrigados
a ouvir. É nesse sentido que se dão a luta de classes e o abismo social.
Premiado em
diversos festivais - Roterdã, Rio, Gramado, entre outros - "O Som ao
Redor" foi escolhido pelo jornal norte-americano "The New York
Times" como um dos melhores filmes do ano passado, sendo definido, na
crítica no periódico, como "revelador".
Não é para
menos. O diretor, que também assina o roteiro, capta com sagacidade as
contradições de uma sociedade que vive sob os resquícios de um sistema
opressivo e desigual e resiste a superar o coronelismo.
O cenário é
Recife, mas poderia ser qualquer centro urbano brasileiro devorado por prédios
e especulação imobiliária, onde o Estado parece não ter mais função e a
sociedade civil toma para si algumas das obrigações do governo, como a
segurança.
A chegada de
um grupo de profissionais da área, liderado por Clodoaldo (interpretado com
perfeição por Irandhir Santos), traz a desestabilização da ordem, na qual o
rico proprietário Francisco (W. J. Solha, de "Era uma Vez Eu,
Veronica") exerce o mando como uma espécie de poderoso chefão do bairro.
De certa
forma, Francisco simboliza todos aqueles "coronéis" típicos de um
antigo Nordeste, que mandam e desmandam, passando por cima de tudo, afinal, têm
o dinheiro e, consequentemente, o poder. Uma cena, que poderia ser quase banal,
é a prova e o símbolo desse poder que tudo ignora e desafia, quando o
personagem, em um passeio noturno, entra no mar exatamente onde há uma placa
onde se lê: "Cuidado: área sujeita a tubarões".
Francisco
começa a dividir responsabilidades com seus descendentes. O mais indicado é o
neto mais velho, João (Gustavo Jahn, de "Os Residentes"), agente
imobiliário que começa um namoro com Sofia (Irma Brown).
O mais
revelador sobre o personagem é a peculiar relação dele com sua empregada. Há
uma autêntica amizade entre eles - ele nem se importa quando os netos pequenos
dela tomam conta de sua casa. Mas quais os limites dessa liberdade?
Outra camada
da sociedade que aparece no filme é representada por Bia (Maeve Jinkings), mãe
de família classe média, dona de casa cujo maior problema, além do calor
infernal, é o cachorro que não para de latir na casa ao lado. Ela vive no mesmo
bairro de Francisco e sua família. Mas uma clara delimitação social impede que
as narrativas se cruzem de verdade.
O que funciona
como elo entre as classes são os seguranças, que, paradoxalmente, aumentam a
vulnerabilidade de todos. Eles ficam ali, bem na esquina, o tempo todo, dia e
noite, observam a vida dos moradores da rua, quem entra, quem sai, a que horas
chegam. Também tomam conta da casa de quem viaja, ficam com a chave para regar
as plantas, mas também desfrutar da cama e das bebidas às escondidas.
E o que querem
essas pessoas? Do que são capazes? É aí, já no final, que as fotos iniciais
fazem todo sentido, e o ressentimento de classe ganha força.
Como se
antecipa a partir do título do longa, o som - cujo desenho é assinado por
Pablo Lamar, e o som direto por Nicolas Hallet e Simone Dourado - tem um papel
preponderante na narrativa: é um personagem.
O filme sugere
até um exercício: preste atenção aos sons que você é capaz de emitir, e também
naqueles que você ouve todos os dias. Qual a implicação social que existe em
cada um deles?
Os ruídos que
produzimos, diz "O Som ao Redor", revelam quem somos. Aqueles que
ouvimos, onde e como vivemos. É nesse plano - no embate entre os dois - que se
materializam as contradições sociais de nosso país.
É
uma percepção e um viés bastante original para abordar um assunto tão antigo
quanto a vida em sociedade. E assim, Kleber Mendonça Filho fez uma obra-prima,
um filme que tem muito a dizer sobre o estado de coisas contemporâneo do país.
Fonte: cinema.uol.com.br, por Alysson Oliveira
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