Nem
o homem feliz de Maiakovsky nem o homem liberto de Paulo Mendes Campos, resolvi
imaginar outra improbabilidade. Digamos que aparecesse agora, justo aqui no
Brasil, no Rio de Janeiro, mais exatamente, bem aí na sua frente, um homem que
só tivesse certezas.
O
homem que só tinha certezas quase nunca usava ponto de interrogação, e em seu
vocabulário não constavam as expressões: talvez, quiçá, quem sabe, porventura.
Parece
que foi de nascença. Ele já teria vindo ao mundo assim, com todas as certezas
junto, pulou a fase dos por quês e nunca soube o que era curiosidade na vida.
Na escola, era uma sensação. Mas não ligava muito pra isso não. E cresceu
achando muito natural viver derramando afirmações pela boca. Tinha resposta pra
tudo, o homem que só tinha certezas, mas o maior orgulho do homem eram as
certezas mais duvidosas que ele tinha. A certeza de que o mais fraco ia vencer,
de que as coisas iam melhorar, de que o desenganado ainda teria muitos anos
pela frente.
A
notícia espalhou-se rapidamente. Como ele vivia no meio de pessoas, e pessoas
vivem cheias de dúvidas, logo começaram a pedir sua opinião para os mais
diversos assuntos, os triviais e os de grande importância, e ele, certo de que
podia viver muito bem de suas certezas, virou um consultor. Pendurou em sua
porta uma placa onde estava escrito "Consultor de tudo" e o negócio
foi crescendo aos pouquinhos. Devido ao boca-a-boca favorável de clientes e a
um único anúncio no rádio, passou a atender, sem nenhum exagero, milhares de
pessoas por dia, até que limitou o número de consultas diárias para
quatrocentos e oitenta, um minuto e meio por pessoa, o que era mais do que
suficiente para uma resposta certa desde que a pergunta não fosse muito longa.
Chegava
gente do país inteiro e depois de outros continentes, pessoas comuns, pessoas
ilustres, todas elas indecisas, mas cada pessoa só tinha direito a uma pergunta
por consulta, o que as deixava mais indecisas ainda. Certa vez uma moça chegou
na dúvida se devia perguntar primeiro sobre o amor ou o trabalho, no que o
homem respondeu, sobre o amor, é claro, senão você não vai conseguir trabalhar
direito, e deu por encerrada a consulta. O homem que só tinha certezas
aconselhou um garoto tímido a tomar quatro cervejas, encorajou um político
receoso a aprovar um projeto esquisitíssimo que se destinava a melhorar a vida
dos homens, avisou a uma senhora preocupada com os anos que no caso dela nada
melhor do que beijos na boca, desentorpeceu um rapaz doente de amor por uma
mulher que gostava de outro, convenceu o ministro da fazenda de que ou o
dinheiro era pouco, ou eram muitos os homens, ou ele estava louco, ou alguém
tinha se enganado nas contas.
Não
demorou muito para se tornar capa de todas as revistas e personagem assíduo dos
programas de TV. Para cada pergunta havia uma só resposta certa e era essa que
ele dava, invariavelmente, exterminando aos pouquinhos todas as dúvidas que
existiam, até que só restou uma dúvida no mundo: será que ele não vai errar
nunca? Mas ele nunca errava, e já nem havia mais o que errar, uma vez que não
havia mais dúvidas.
Num
mundo que só tinha certezas, o homem que só tinha certezas virou apenas mais um
homem no mundo. Melhor assim, ele pensava, ou melhor, tinha certeza.
Um dia aconteceu um imprevisto, e o homem
que só tinha certezas, quem diria, acordou apaixonado. Para se assegurar de que
aquela era a mulher certa para ele, formulou cento e vinte perguntas, que ela
respondeu sem vacilar, mandou fazer mapas do céu, exames de sangue, contagem de
triglicerídeos, planilhas complicadíssimas e finalmente apresentou a moça à sua
mãe e ao seu cachorro. Os dois se amaram noites adentro, foram a Barcelona,
tiraram fotos juntos, compraram álbuns, porta-retratos, garfos, facas, um
escorredor de pratos, tiveram filhos e tal, e, desde então, por alguma razão
desconhecida, o homem que só tinha certezas foi perdendo todas elas, uma por
uma. No início ainda tentou disfarçar, por via das dúvidas, quem sabe era um
mal passageiro? Mas as dúvidas multiplicavam-se como praga (dúvidas se
multiplicam?), espalharam-se pelo mundo, e agora, meu Deus? Deus existe? Existe
sim. Ou será que não? Ele não estava bem certo.
Adriana
Falcão
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