Júlio
Cano, um dos maiores homens que já existiram e cuja glória nada sofreu, nem
mesmo por ter nascido neste século, teve uma longa discussão com Caio Calígula.
Como ele se retirasse, o novo Faláride lhe disse: “Para que não te iludas nem
ao menos com uma vã esperança, ordenei que te executem.” “Agradeço-te,
excelente príncipe”, respondeu Cano. Não sei qual era seu pensamento, porque
essas palavras podem ser vários sentidos: queria ele ultrajar o príncipe e
mostrar toda a crueldade de uma tirania sob a qual a morte era um benefício? Ou
censurava-lhe o absurdo de obrigar todos os dias a agradecerem-lhe, aqueles
cujos filhos ele matara, assim como aqueles de quem confiscara a fortuna? Ou enfim
via ele na morte uma libertação, que aceitava com prazer? Qualquer que seja a
resposta, ela provém de uma grande alma.
Dir-se-ia:
Caio Calígula podia depois disso ordenar que o deixassem viver. Mas cano não
tinha este receio: sabia-se que desde que ele dera semelhantes ordens, Calígula
manteria sua palavra. Acreditarias tu que os dez dias que decorreram até seu
suplício, Cano os passou sem nenhuma inquietude? Na verdade, não parece
verossímil o que este grande homem disse, o que fez e a tranquilidade que
manteve. Ele jogava o “jogo dos ladrões”, quando o centurião, passando com um
grupo de condenados, o convidou a se levantar e a segui-lo: então ele contou
seus pontos e disse a seu adversário: “Atenção! Depois de minha morte, não
digas que ganhaste!” Depois, fazendo um sinal ao centurião: “Tu serás
testemunha – disse-lhe – de que eu tenho a vantagem de um ponto.” Crê tu que
Cano dava tanta importância ao seu jogo? Ele zombava do carrasco. Seus amigos estavam
consternados em perder um tal homem. “Por que esta tristeza? – disse-lhes
- Vós vos perguntais se a alma é
imortal; eu irei sabe-lo agora mesmo.” E até ao último instante ele não cessou
de procurar a verdade e de perguntar à sua própria morte a solução do grande
problema. Seu filósofo o acompanhava; já o aproximavam do túmulo, onde cada dia
eram oferecidos sacrifícios a César, nosso deus; “Em que pensas neste momento,
Cano? – perguntou-lhe o filósofo. – Em que disposição de espírito te encontras?”
“Tenho – respondeu Cano – a intenção de observar neste instante tão breve se
vou sentir minha alma elevar-se.” E ele prometeu, caso descobrisse alguma
coisa, tornar a voltar, a fim de instruir seus amigos sobre sorte das almas.
Eis a tranquilidade no meio da
tempestade! Não é digno de imortalidade este homem que procura na sua própria
morte uma prova da verdade; que nos últimos momentos de vida interroga sua alma
exalante, e que não satisfeito de instruir-se até a morte, quer que a morte
mesma lhe ensine alguma coisa? Pessoa alguma jamais filosofou por tão longo
tempo. Não abandonemos depressa demais este grande homem, do qual não se pode
falar a não ser com veneração; sim, nós transmitiremos teu nome até a
posteridade mais afastada, ilustre vítima, cuja morte ocupa um tão grande lugar
entre os crimes de Calígula!
Sêneca, in Da
tranquilidade da alma
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