quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A céu aberto


Na calçada da estação ferroviária se estende uma fila de rapazes. O rosto imerso num saco preto de plástico, cheiram cola no final da tarde. Um deles, cambaleando, senta na amurada e deixa o corpo tombar para trás. Tenta fitar o céu, mas não consegue. Um homem forte, o corpo todo tatuado, estapeia-o na intenção de reanimá-lo. Bate com força na sua cara, até sangrar. O rapaz continua inerte, revirando os olhos. O homem tatuado torna a bater e por fim desiste.
O capitão Nicodemus assiste impotente àquela cena. Tinha ido comprar umas passagens e descansa na mesma amurada. Bebe cerveja. Já deve ser a sexta garrafa que bebe na tarde. Onde passa abastece a mochila com cerveja. Conhece-as de cor, pelo nome, teor alcoólico, lugar de origem. Está num país estrangeiro, sem farda, sem autoridade, e não pode mais que um turista comum. Disfarçando a raiva que vai tomando conta dele, fala para o tio, sentado ao lado, sobre a solução para o que chama de lixo humano. Odeia os párias. Melhor fazer como os militares argentinos da ditadura: entorpecer com injeção e atirá-los de avião no mar, semelhantes a bebês dormindo. Ou resolver como o coronel Lamartine, seu conterrâneo, afogando os ladrões no Guaíba. O coronel ficava até a hora em que podia ver as luzes de Porto Alegre boiando no olho morto do bandido. – No tempo dele a cidade dormia de portas abertas – lembrava, gabando aquelas providências.
Quando criança Nicodemus frequentou a escola armado com canivete e gostava de acompanhar o avô nas diligências policiais. Comprazia-se em ver a cara dos mortos. De manhã, ao acordar, indagava:
- Vovô Lima, hoje tem defunto?
Suspeito de participar de grupo de extermínio, respondeu a processo por ter matado um pixote:
- Foi você quem roubou minha bicicleta? – inquiriu o capitão. Um tiro ecoou dentro da viatura quando o menino magro e amarelo, algemado no banco de trás, respondeu com a voz arrastada e o olhar perdido de drogado:
- Fui eu.
O homem do corpo cheio de tatuagem movimenta-se agora na calçada da estação, para um lado e para outro. Tira de dentro da camisa um crucifixo de madeira, que ostenta no ar. Aponta-o para os quatro pontos cardeais, dando a entender com o gesto que Cristo é o maior de todos, poderoso, senhor de todos os mundos. Parece alucinado. Na outra mão, porém, traz uma faca e a ameaça, logo entendida:
- Dinero o la vida!
O tio do capitão, um senhor idoso, prudentemente enfia a mão no bolso. Ao erguer a carteira vê que o homem tatuado não tem mais força para segurá-la. Como o seu companheiro de drogas, ele também vai tombar sobre a amurada, com a boca sujando a grama de sangue.
Tio e sobrinho se enfiam rápido na estação do metrô, ao lado, e saltam na parada mais perto do hotel. Nicodemus conta que por sorte tinha comprado o punhal horas antes, numa casa de artigos militares, no bairro judeu.
- Nunca vi aço tão bom – diz sorrindo no bar, torcendo uma das pontas do bigode ralo, entre um chope e frango com salsa. – Foi uma estocada só – acrescentou.
Demétrio Diniz

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