Na calçada
da estação ferroviária se estende uma fila de rapazes. O rosto imerso num saco
preto de plástico, cheiram cola no final da tarde. Um deles, cambaleando, senta
na amurada e deixa o corpo tombar para trás. Tenta fitar o céu, mas não
consegue. Um homem forte, o corpo todo tatuado, estapeia-o na intenção de
reanimá-lo. Bate com força na sua cara, até sangrar. O rapaz continua inerte,
revirando os olhos. O homem tatuado torna a bater e por fim desiste.
O capitão Nicodemus
assiste impotente àquela cena. Tinha ido comprar umas passagens e descansa na
mesma amurada. Bebe cerveja. Já deve ser a sexta garrafa que bebe na tarde.
Onde passa abastece a mochila com cerveja. Conhece-as de cor, pelo nome, teor
alcoólico, lugar de origem. Está num país estrangeiro, sem farda, sem
autoridade, e não pode mais que um turista comum. Disfarçando a raiva que vai
tomando conta dele, fala para o tio, sentado ao lado, sobre a solução para o
que chama de lixo humano. Odeia os párias. Melhor fazer como os militares
argentinos da ditadura: entorpecer com injeção e atirá-los de avião no mar,
semelhantes a bebês dormindo. Ou resolver como o coronel Lamartine, seu
conterrâneo, afogando os ladrões no Guaíba. O coronel ficava até a hora em que
podia ver as luzes de Porto Alegre boiando no olho morto do bandido. – No tempo
dele a cidade dormia de portas abertas – lembrava, gabando aquelas
providências.
Quando criança Nicodemus frequentou a escola
armado com canivete e gostava de acompanhar o avô nas diligências policiais.
Comprazia-se em ver a cara dos mortos. De manhã, ao acordar, indagava:
- Vovô Lima, hoje tem defunto?
Suspeito de participar de grupo de extermínio,
respondeu a processo por ter matado um pixote:
- Foi você quem roubou minha bicicleta? –
inquiriu o capitão. Um tiro ecoou dentro da viatura quando o menino magro e
amarelo, algemado no banco de trás, respondeu com a voz arrastada e o olhar
perdido de drogado:
- Fui eu.
O homem do corpo cheio de tatuagem movimenta-se
agora na calçada da estação, para um lado e para outro. Tira de dentro da
camisa um crucifixo de madeira, que ostenta no ar. Aponta-o para os quatro
pontos cardeais, dando a entender com o gesto que Cristo é o maior de todos,
poderoso, senhor de todos os mundos. Parece alucinado. Na outra mão, porém,
traz uma faca e a ameaça, logo entendida:
- Dinero o la vida!
O tio do capitão, um senhor idoso, prudentemente
enfia a mão no bolso. Ao erguer a carteira vê que o homem tatuado não tem mais
força para segurá-la. Como o seu companheiro de drogas, ele também vai tombar
sobre a amurada, com a boca sujando a grama de sangue.
Tio e sobrinho se
enfiam rápido na estação do metrô, ao lado, e saltam na parada mais perto do
hotel. Nicodemus conta que por sorte tinha comprado o punhal horas antes, numa
casa de artigos militares, no bairro judeu.
- Nunca vi aço tão bom – diz sorrindo no
bar, torcendo uma das pontas do bigode ralo, entre um chope e frango com salsa.
– Foi uma estocada só – acrescentou.
Demétrio
Diniz
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