Carta
a uma jovem que, estando em uma roda em que dava aos presentes o tratamento de
“você”, se dirigiu ao autor chamando-o de “o senhor”:
Senhora
–
Aquele
a quem chamastes senhor aqui está, de peito magoado e cara triste, para vos
dizer que senhor ele não é, de nada nem ninguém. Bem o sabeis, por certo, que a única nobreza do plebeu está em não querer
esconder sua condição e esta nobreza tenho eu. Assim, se entre tantos senhores
ricos e nobres a quem chamáveis “você” escolhestes a mim para tratar de
“senhor”, é bem de ver que só poderíeis ter encontrado essa senhoria nas rugas
de minha testa e na prata de meus cabelos. Senhor de muitos anos, eis aí, o território
onde eu mando é no país do tempo que foi. Essa palavra “senhor”, no meio de uma
frase, ergueu entre nós dois um muro frio e triste.
Vi
o muro e calei. Não é de muito, eu juro, que me acontece essa tristeza; mas
também não era a vez primeira. De começo eram apenas os “brotos” ainda mal
núbeis que me davam senhoria; depois assim começaram a me tratar as moças de
dezoito a vinte, com essa mistura de respeito, confiança, distância e desprezo
que é o sabor dessa palavra melancólica. Sim, eu vi o muro; e, astuto ou
desanimado, calei. Mas havia na roda um rapaz de ouvido fino e coração cruel;
ele instou para que repetísseis a palavra; fingistes não entender o que ele
pedia e voltastes a dizer a frase sem usar nem “senhor”, nem “você”. Mas o
danado insistiu e denunciou o que ouvira e que, no embaraço de vossa
delicadeza, evitáveis repetir. Todos riram, inclusive nós dois. A roda era
íntima e o caso era de riso.
O
que não quer dizer que fosse alegre; é das tristezas que rimos de coração mais
leve. Vim para casa e como sou um homem forte, olhei-me ao espelho; e como
tenho minhas fraquezas, fiz um soneto. Para vos dar o tom, direi que no fim do
segundo quarteto eu confesso que às vezes já me falece valor “para enfrentar o
tédio dos espelhos”; e no último terceto digo a mim mesmo: “Volta, portanto, a
cara e vê de perto – a cara, a tua cara verdadeira – ó Braga envelhecido,
envelhecido.”
Sim,
a velhice é coisa vil; Bilac o disse em prosa, numa crônica, ainda que nos
sonetos ele almejasse envelhecer sorrindo. Não sou Bilac; e nem me dá consolo,
mas, tristeza pensar que as musas desse poeta andam por aí encanecidas e
murchas, se é que ainda andam e já não desceram todas à escuridão do túmulo.
Vivem apenas, eternamente moças e lindas, na música de seus versos, cheios de
sol e outras estrelas. Mas a verdade (ouvi, senhora, esta confissão de um
senhor ido e vivido, ainda que mal e tristemente), a verdade não é o tempo que
passa, a verdade é o instante. E vosso instante é desgraça, juventude e
extraordinária beleza. Tendes todos os direitos; sois um belo momento da
aventura do gênero humano sobre a terra. Detrás do meu muro frio eu vos saúdo e
canto. Mas ser senhor é triste; eu sou, senhora, e humildemente, o vosso servo
– RB.
Rubem
Braga, in 200 crônicas escolhidas
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