sexta-feira, 21 de setembro de 2012

As pessoas, os escritores


“O escritor William Faulkner tinha boas lembranças de seu emprego num bordel. “Para um artista, é o melhor lugar”, declarou, “Têm-se liberdade econômica, um teto em cima e quase nada para fazer, salvo cuidar de umas escriturações simples e ir mensalmente pagar à polícia local. O lugar é quieto durante as manhãs, o melhor momento do dia para a literatura. E há bastante vida social à noite, o que afasta o tédio.
Hilda Hilst mudou-se para um sítio isolado, onde escrevia durante o dia, e aguardava a visita de discos voadores ao anoitecer. Para Ernest Hemingway, os melhores lugares eram os hotéis. “Basta uma cama, uma boa mesa e um quarto limpo.” Françoise Sagan exigia apenas que o lugar fosse bastante iluminado. Caio Fernando Abreu não escrevia sem uma rosa amarela e uma foto de Virginia Woolf à sua frente. Balzac escreveu a sua Comédia Humana trancado secretamente em um quarto minúsculo, fugindo de credores. Nelson Rodrigues criava seus personagens em meio ao burburinho frenético das redações de jornal. Anton Tchekhov elaborava a maior parte de seus contos entre consultas médicas e diagnósticos. Clarice Lispector escrevia com a sua Olivetti no colo, entre os filhos e os afazeres domésticos. Gustave Flaubert fazia dos corpos de suas amantes sólidos apoios para a pena e os papéis.
Dorothy Parker levava seis meses para escrever um conto. Primeiro imaginava-o do início ao fim, só depois se sentava para escrever frase a frase. Ela nunca tinha o primeiro esboço porque não conseguia escrever cinco palavras sem modificar sete, como dizia. Dorothy Canfield Fisher comparava a redação de um primeiro rascunho a uma descida de esqui por uma encosta íngreme, que ela não tinha a certeza de ser bastante hábil para realizar: “Eu escrevia tão depressa quanto o meu lápis permitia, indicando palavras inteiras com os meus rabiscos”. Frank O’Connor preferia escrever o que lhe viesse à cabeça, ou ao papel, sem julgamentos. Acreditava que no emaranhado de ideias apareceria o contorno principal da sua história. William Styron confessava ter uma necessidade neurótica de melhorar cada parágrafo, até mesmo cada frase, à medida que escrevia, o que tornava o ato de reescrever interminável. Françoise Sagan levava no máximo três dias revisando cada novela. A maior parte do tempo era dedicada a eliminar vícios literários: “Adjetivos, advérbios e toda palavra que lá estivesse apenas para produzir efeito”. Georges Simenon era da mesma opinião. “Corto tudo que for muito literário”, declarou uma vez em uma entrevista, “Se me deparo com uma bela frase, por exemplo, elimino-a”. A beleza para ele era na maioria das vezes apenas decorativa. Julio Cortázar achava por bem desconfiar sempre dos seus textos, se não “corremos o risco de nos tornarmos cegos como aquelas mães que julgam os seus filhos os mais belos e inteligentes de todos, e assim esperam que o mundo inteiro faça”. Clarice Lispector não relia os seus livros depois de entregá-los à editora. “Tenho náuseas”, dizia.
William Faulkner não era contra a técnica, mas achava que ela muitas vezes assumia em demasiado o comando da imaginação artística, antes que o próprio escritor pudesse deitar-lhe a mão. “O trabalho assim não é mais do que uma questão de ajustar os tijolos uns sobre os outros. Já que o escritor provavelmente sabe cada palavra que virá até o fim antes de escrever a primeira.” Difícil tarefa de manter a vivacidade dentro de uma forma, ele considerava. “O objetivo de todo artista é deter o movimento, que é a vida, por meios artificiais, e conservá-lo fixo, de modo que, cem anos depois quando um estranho o fitar, ele se mova novamente.” Henry Miller descobriu com o tempo que a sua melhor técnica era não ter técnica nenhuma. “Jamais achei que deveria aderir a qualquer maneira de tratar um tema. Permaneço aberto e flexível, pronto para seguir a direção dos ventos ou das correntes de pensamento.” Truman Capote buscava manter um domínio estilístico e emocional sobre o que escrevia. Para ele, uma história poderia ser arruinada por causa de um ritmo equivocado de uma frase ― principalmente se for na parte final, ou por um erro na divisão dos parágrafos ou de pontuação. “A arte de escrever possui leis de perspectiva, luz e sombra, assim como a pintura e a música. Se a gente nasce conhecendo-as, ótimo. Se não, devemos aprendê-las e depois readaptá-las para que se ajustem a nós.” Katherine Anne Porter buscava como escritora uma visão singular para os acontecimentos. “É aí que começa o trabalho, com as consequências dos atos, não com os atos em si mesmos. É nas reverberações, nas implicações que o artista trabalha.”
Henry Miller um dia cortou o cordão umbilical com a literatura. “Abandonei as influências e resolvi escrever partindo de minha experiência, daquilo que eu sabia e sentia. E isso foi a minha salvação.” Deixou de ser um literato para ser um escritor, como ele disse. “Abandonei as ideias e os conceitos em prol da vitalidade.” Em busca da pulsação vital da palavra escrita, muitos escritores equivocadamente olham mais para fora ― para aquilo que chamam de realidade ― do que para dentro ― para aquilo que chamam de sonho ou imaginação, lamentou Paul Valéry. “Lançar mão da realidade é uma espécie de embuste”, considerava Françoise Sagan, “A arte deve colher a realidade de surpresa”. Para a escritora, a arte não deveria inculcar o real como sendo uma preocupação. “Nada é mais irreal que certos romances chamados realistas ― e que não passam de pesadelos. É possível conseguir ― se num romance certa verdade sensorial ― o verdadeiro sentimento de um personagem ― eis tudo. A ilusão da arte por certo é fazer com que se acredite que a grande literatura é muito ligada à vida, mas exatamente o oposto é que é verdadeiro. A vida é amorfa; a literatura, formal.” Ernest Hemingway considerava a busca da vitalidade, e não da realidade, a sua saga literária. “De todas as coisas que se sabe e das que não se sabe, a gente faz algo através de nossa invenção, que não é uma representação, mas é algo inteiramente novo e mais verdadeiro do que qualquer coisa verdadeira e viva. A gente lhe dá vida. Pelo tempo que dura uma leitura, e pelo tempo que a leitura ressoar em alguém, lhe dá imortalidade. Eis aí por que se escreve.”
Por Cláudia Lage, No jornal Rascunho, na edição de março de 2009 (a partir do substantivoplural.com.br).

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