Errata: onde o Antigo Testamento diz o que diz, deve dizer aquilo
que provavelmente seu principal protagonista
me confessou:
Pena que Adão fosse tão burro. Pena que
Eva fosse tão surda. E pena que eu não soube me fazer entender.
Adão e Eva eram os primeiros seres
humanos que nasciam da minha mão, e reconheço que tinham certos defeitos de
estrutura, construção e acabamento. Eles não estavam preparados para escutar,
nem para pensar. E eu... bem, eu talvez não estivesse preparado para falar.
Antes de Adão e Eva, nunca tinha falado com ninguém. Eu tinha pronunciado belas
frases, como "Faça-se a luz", mas sempre na solidão. E foi assim que,
naquela tarde, quando encontrei Adão e Eva na hora da brisa, não fui muito
eloquente. Não tinha prática.
A primeira coisa que senti foi assombro.
Eles acabavam de roubar a fruta da arvore proibida, no centro do Paraíso. Adão
tinha posto cara de general que acaba de entregar a espada e Eva olhava para o
chão, como se contasse formigas. Mas os dois estavam incrivelmente jovens e
belos e radiantes. Me surpreenderam. Eu os tinha feito; mas não sabia que o
barro podia ser tão luminoso.
Depois, reconheço, senti inveja. Como
ninguém pode me dar ordens, ignoro a dignidade da desobediência. Tampouco posso
conhecer a ousadia do amor, que exige dois. Em homenagem ao principio de
autoridade, contive a vontade de cumprimentá-los por terem-se feito subitamente
sábios em paixões humanas.
Então, vieram os equívocos. Eles
entenderam queda onde falei de voo. Acharam que um pecado merece castigo se for
original. Eu disse que quem desama peca: entenderam que quem ama peca. Onde
anunciei pradaria em festa, entenderam vale de lágrimas. Eu disse que a dor era
o sal que dava gosto a aventura humana: entenderam que eu os estava condenando,
ao outorgar-lhes a gloria de serem mortais e loucos. Entenderam tudo ao
contrário. E acreditaram.
Ultimamente ando com problemas de
insônia. Ha alguns milênios custo a dormir. E gosto de dormir, gosto muito,
porque quando durmo, sonho. Então me transformo em amante ou amanta, me queimo
no fogo fugaz dos amores de passagem, sou palhaço, pescador de alto mar ou
cigana adivinhadora da sorte; da árvore proibida devoro até as folhas e bebo e
danço até rodar pelo chão...
Quando acordo, estou sozinho. Não tenho
com quem brincar, porque os anjos me levam tão a sério, nem tenho a quem
desejar. Estou condenado a me desejar. De estrela em estrela ando vagando,
aborrecendo-me no universo vazio. Sinto-me muito cansado, me sinto muito
sozinho. Eu estou sozinho, eu sou sozinho, sozinho pelo resto da eternidade.
Eduardo Galeano, in O
livro dos abraços
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