“A nossa moral é a cristalização de um
movimento interior completamente diferente dela! Nada do que dizemos faz
sentido. Pensa numa frase qualquer, ocorre-me, por exemplo, esta: ‘Numa prisão
deve imperar o arrependimento!’. É uma frase que se pode pronunciar com a
melhor das consciências, mas ninguém a toma à letra, senão estávamos a pedir o
fogo do inferno para os encarcerados! Como é que a entendemos então? Há com
certeza muito poucos que saibam o que é o arrependimento, mas todos dizem onde
ele deve imperar. Ou então pensa em algo de exaltante: como é que isso se
mistura com a moral? Quando é que estivemos com o rosto tão mergulhado no pó
que isso nos faça sentir a bem-aventurança do arrebatamento? Ou então toma à
letra uma expressão como ‘ser assaltado por um pensamento’: no momento em que sentisses
no corpo um tal contato já estarias no limiar da loucura! Cada palavra quer
então ser lida na sua literalidade para não degenerar em mentira, mas não
podemos tomar nenhuma à letra, sob pena de o mundo se transformar num manicômio!
Há uma qualquer grande embriaguez que se eleva daí sob a forma de uma obscura
recordação, e de vez em quando imaginamos que todas as nossas experiências são
partes soltas e destruídas de uma antiga totalidade que um dia se foi completando
de maneira errada”.
Robert
Musil, in O Homem sem Qualidades
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