domingo, 19 de agosto de 2012

Sobre nossa moral

“A nossa moral é a cristalização de um movimento interior completamente diferente dela! Nada do que dizemos faz sentido. Pensa numa frase qualquer, ocorre-me, por exemplo, esta: ‘Numa prisão deve imperar o arrependimento!’. É uma frase que se pode pronunciar com a melhor das consciências, mas ninguém a toma à letra, senão estávamos a pedir o fogo do inferno para os encarcerados! Como é que a entendemos então? Há com certeza muito poucos que saibam o que é o arrependimento, mas todos dizem onde ele deve imperar. Ou então pensa em algo de exaltante: como é que isso se mistura com a moral? Quando é que estivemos com o rosto tão mergulhado no pó que isso nos faça sentir a bem-aventurança do arrebatamento? Ou então toma à letra uma expressão como ‘ser assaltado por um pensamento’: no momento em que sentisses no corpo um tal contato já estarias no limiar da loucura! Cada palavra quer então ser lida na sua literalidade para não degenerar em mentira, mas não podemos tomar nenhuma à letra, sob pena de o mundo se transformar num manicômio! Há uma qualquer grande embriaguez que se eleva daí sob a forma de uma obscura recordação, e de vez em quando imaginamos que todas as nossas experiências são partes soltas e destruídas de uma antiga totalidade que um dia se foi completando de maneira errada”.
Robert Musil, in O Homem sem Qualidades

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