Podemos distinguir duas
espécies de cólera: uma que é muito súbita e se manifesta muito no exterior, mas mesmo assim tem pouco efeito e
pode facilmente ser apaziguada; e outra que inicialmente não aparece tanto,
porém corrói mais o coração e tem efeitos mais perigosos. Os que têm muita
bondade e muito amor são mais sujeitos à primeira. Pois ela não provém de um
ódio profundo, e sim de uma súbita aversão que os surpreende, porque, sendo
levados a imaginar que as coisas devem desenrolar-se da forma como julgam ser a
melhor, tão logo acontece de forma diferente; eles ficam admirados e
frequentemente se ofendem com isso, mesmo que a coisa não os atinja
pessoalmente, porque, tendo muita afeição, interessam-se por aqueles a quem
amam, da mesma forma que por si mesmos. Assim, o que para outra pessoa seria
apenas motivo de indignação é para eles um motivo de cólera. E como a
inclinação que têm para amar faz que tenham muito calor e muito sangue no
coração, a aversão que os surpreende não pode impelir para este tão pouca bile
que isso não cause inicialmente uma grande emoção no sangue. Mas tal emoção
pouco dura, porque a força da surpresa não se prolonga e porque, tão logo
percebem que o motivo que os contrariou não devia emocioná-los tanto,
arrependem-se disso.
A
outra espécie de cólera, em que predominam o ódio e a tristeza, não é tão aparente
no início, a não ser talvez fazendo o rosto empalidecer. Mas pouco a pouco a
sua força é aumentada pela agitação que um ardente desejo de vingar-se excita
no sangue, que, estando misturado com a bile que é impelida da parte inferior
do fígado e do baço para o coração, excita nele um calor muito áspero e muito
picante. E, assim como as almas mais generosas são as que sentem mais
reconhecimento, assim as que têm mais orgulho, e que são mais baixas e mais fracas, são as que mais se
deixam arrebatar por essa espécie de cólera; pois as injúrias parecem tanto
maiores quanto mais o orgulho faz que nos estimemos; e também na medida em que
mais estimamos os bens que elas arrebatam, os quais tanto mais estimamos quanto
mais fraca e mais baixa tivermos a alma, porque eles dependem de outrem.
René Descartes, in As Paixões da Alma
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