Um
autor célebre, calculando os bens e os males da vida humana, e comparando as
duas somas, achou que a última ultrapassa muito a primeira, e que tomando o
conjunto, a vida era para o homem um péssimo presente. Não fiquei surpreendido
com a conclusão; ele tirou todos os seus raciocínios da constituição do homem
civilizado. Se subisse até ao homem natural, pode-se julgar que encontraria
resultados muito diferentes; porque perceberia que o homem só tem os males que
se criou para si mesmo, o que à natureza se faria justiça. Não foi fácil
chegarmos a ser tão desgraçados. Quando, de um lado, consideramos o imenso
trabalho dos homens, tantas ciências profundas, tantas artes inventadas, tantas
forças empregadas, abismos entulhados, montanhas arrasadas, rochedos quebrados,
rios tornados navegáveis, terras arroteadas, lagos cavados, pantanais
dissecados, construções enormes elevadas sobre a terra, o mar coberto de navios
e marinheiros, e quando, olhando do outro lado, procuramos, meditando um pouco
as verdadeiras vantagens que resultaram de tudo isso para a felicidade da
espécie humana, só nos podemos impressionar com a espantosa desproporção que
reina entre essas coisas, e deplorar a cegueira do homem, que, para nutrir o
seu orgulho louco, não sei que vã admiração de si mesmo, o faz correr
ardorosamente para todas as misérias de que é suscetível e que a benfazeja
natureza havia tomado cuidado em afastar dele.
Os
homens são maus, uma triste e contínua experiência dispensa a prova;
entretanto, o homem é naturalmente bom, creio havê-lo demonstrado. Que será,
pois, que o pode ter depravado a esse ponto, senão as mudanças sobrevindas na
sua constituição, os progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu? Que se
admire quanto se queira a sociedade humana, não será menos verdade que ela
conduz necessariamente os homens a se odiarem entre si à proporção do crescimento
dos seus interesses, a se retribuir mutuamente serviços aparentes, e a se fazer
efetivamente todos os males imagináveis. Que se pode pensar de um comércio em
que a razão de cada particular lhe dita máximas diretamente contrárias àquelas
que a razão pública prega ao corpo da sociedade, e em que cada um tira os seus
lucros da desgraça do outro? Não há, talvez, um homem abastado ao qual os seus
herdeiros ávidos, e muitas vezes os seus próprios filhos, não desejem a morte,
secretamente. Não há um navio no mar cujo naufrágio não constituísse uma boa
notícia para algum negociante; uma só casa que um devedor de má fé não quisesse
ver queimada com todos os documentos; um só povo que não se regozijasse com os
desastres dos vizinhos. É assim que tiramos vantagens do prejuízo dos nossos
semelhantes, e que a perda de um faz quase sempre a prosperidade do outro. Mas,
o que há de mais perigoso ainda é que as calamidades públicas são a expectativa
e a esperança de uma multidão de particulares: uns querem as moléstias, outros,
a mortalidade; outros, a guerra; outros, a fome.
(...)
O homem selvagem, quando acabou de comer, está em paz com toda a natureza, e é
amigo de todos os seus semelhantes. Se, algumas vezes, tem de disputar o seu
alimento, não chega nunca ao extremo sem ter antes comparado a dificuldade de
vencer com a de encontrar noutro lugar a sua subsistência; e, como o orgulho
não se mistura ao combate, ele termina por alguns socos. O vencedor come e o
vencido vai procurar fortuna noutra parte, e tudo está pacificado. Mas, no
homem da sociedade, é tudo bem diferente; trata-se, primeiramente, de prover ao
necessário, depois, ao supérfluo. Em seguida, vêm as delícias, depois as
imensas riquezas, e depois súditos e escravos. Não há um momento de descanso. O
que há de mais original é que, quanto menos as necessidades são naturais e
prementes, tanto mais as paixões aumentam, e o que é pior, o poder de as
satisfazer. De sorte que, após longas prosperidades, depois de haver devorado
muitos tesouros e desolado muitos homens, o meu herói acabará por tudo
arruinar, até que seja o único senhor do universo. Tal é, abreviadamente, o
quadro moral, senão da vida humana, pelo menos das pretensões secretas do
coração de todo homem civilizado.
Comparai, sem preconceitos, o estado do
homem civilizado com o do homem selvagem, e investigai, se o puderdes, como
além da sua maldade, das suas necessidades e das suas misérias, o primeiro
abriu novas portas à miséria e à morte. Se considerardes os sofrimentos do
espírito que nos consomem, as paixões violentas que nos esgotam e nos desolam,
os trabalhos excessivos de que os pobres estão sobrecarregados, a moleza ainda
mais perigosa à qual os ricos se abandonam, uns morrendo de necessidades e
outros de excessos; se pensardes nas monstruosas misturas de alimentos, na sua
perniciosa condimentação, nos alimentos corrompidos, nas drogas falsificadas,
nas velhacarias dos que as vendem, nos erros daqueles que as administram, no
veneno do vasilhame no qual são preparadas; se prestardes atenção nas moléstias
epidêmicas oriundas da falta de ar entre multidões de seres humanos reunidos,
nas que ocasionam a nossa maneira delicada do viver, as passagens alternadas
das nossas casas para o ar livre, o uso de roupas vestidas ou despidas sem
precauções, e todos os cuidados que a nossa sensualidade excessiva transformou
em hábitos necessários, e cuja negligência ou privação nos custa imediatamente
a vida ou a saúde; se puserdes em linha de conta os incêndios e os tremores de
terra que, consumindo ou derrubando cidades inteiras, fazem morrer os
habitantes aos milhares; em uma palavra, se reunirdes os perigos que todas
essas causas acumulam continuamente sobre as nossas cabeças, sentireis como a
natureza nos faz pagar caro o desprezo que temos dado às suas lições.
Jean-Jacques
Rousseau, in Discurso Sobre a Origem da Desigualdade
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