O diretor John
Ford já foi descrito como o maior cineasta dos Estados Unidos. Além das
inúmeras e de incontestáveis premiações em dezenas de conceituados festivais
internacionais, o homem que se descrevia como “sou um fazedor de faroestes”,
possui uma carreira extremamente diversificada e cheia de elementos que remetem
ao modo primário de fazer cinema no Ocidente.
Os
temas delimitados por Ford, bem como a forma de retratar personagens, roteiros
e não sobrecarregar em movimentos de câmera pautaram todo o modo fílmico
do meio-oeste dos Estados Unidos e, por muitos anos, algumas das principais
obras cinematográficas da Europa.
Por
colaborar tanto para escrever a “cartilha dos filmes”, os colegas
norte-americanos sempre o consideraram o melhor de uma geração. Além de quatro
Oscar como diretor — “O Delator”, “Como Era Verde o Meu Vale”, “Depois do
Vendaval” e “Vinhas da Ira”, Ford ensinou a muitos que ficavam atrás das
câmeras a fazerem o menor “barulho visual” possível.
O
resultado eram filmes montados com planos secos, objetivos e diretos, uma
característica que prevaleceu por décadas no subconsciente daqueles que sentavam
na cadeira de diretor. O paradigma visual criado por Ford só foi rompido mais
de quatro décadas depois, com o início da Nouvelle Vague e do “cinema de
autor”, em especial, o criado na França no início da década de 1960.
Além
da estética tradicional, também saiu da mente do “cowboy” muitos dos conceitos
que prevalecem e são imitados até hoje no roteiro e na montagem de personagens:
figuras como o herói salvador e carrancudo que comanda uma cavalaria ou um
grupo de amigos durões, ignorantes, mas bem intencionados, a prostituta de
coração de ouro que é mais benevolente que 99% da cidade e o médico bêbado que
é surpreendido no meio da noite com um parto ou uma cirurgia de emergência.
Também
veio da imaginação de John Ford a inserção no cinema do conceito quase
rousseauniano de focar no embate — físico e cultural — do homem
branco e o indígena. Muitos filmes do americano mostram o conflito entre
o nativo e o colonizador, um efeito colateral da migração para o Oeste em busca
do eldorado da Califórnia, Texas e o Novo México.
Ford,
como grande cineasta que era, percebeu que havia sido injusto com os indígenas
e se aproximou deles para fazer em 1947 o filme “Sangue de Heróis”, mais
conhecido como “Fort Apache”, em que o foco é a crueldade dos colonizadores aos
lhes roubarem terras. O último filme da era de faroeste de John Ford também
segue linha similar e é “Crepúsculo de uma Raça” — no
original, “Chevene Autumn”, de 1964 — uma história emocionante em que os
personagens Doc Holliday e Wyatt Earp mostram como todo um povo foi devastado
pela ganância e a truculência do explorador.
Mas,
a primeira empreitada bem sucedida de Ford e — inclusive, a que lhe deu o
pioneiro Oscar e reconhecimento internacional como grande diretor — não
veio do faroeste ou dos relatos de vida do meio-oeste. Saiu de uma fase
importante, e mesmo assim, pouco explorada da história do diretor que tem uma
filmografia especialmente longa com mais de 90 filmes, sendo 10% deles como
ator.
Trata
do momento em que Ford foi estudar e retratar o modo de vida irlandês e como
aquela cultura foi especialmente importante para a formação do povo
norte-americano.
No
filme “O delator” — no original “The Informer” — a influência de Ford
vem do cinema alemão, tão sugestivo e substancial na década de 1930 com filmes
como “Aurora”, de Murnau, e “M”, uma obra pouco conhecida, mas síntese da
estética de Fritz Lang.
Ambientado
na Irlanda, o filme de Ford contém um profundo comentário moral e religioso. O
conteúdo sociológico de “O Delator, talvez o mais cristalizado da extensíssima
filmografia de Ford, também é visto, de forma muito mais diluída, nas
principais obras cinematográficas futuras do diretor americano .
Com
baixo orçamento e filmado em apenas 17 dias, o roteiro de “O Delator” tem uma
proposta muito pouco comercial e cheio de simbolismos, neblinas e sombras. Uma
das características mais abundantes da história é a multiplicidade de linhas de
pensamento e personagens que acabam por confundir o espectador.
O
esqueleto base do filme é o cinema “noir" e conta a história
de Gypo (Victor McLaglen), um homem assombrado pelo passado — e pelo
presente — além de uma paixão pouco ortodoxa: uma loira que se prostitui e
cheia de pendências psicológicas com a vida.
Fora
a direção superior à média de Ford, o filme dança entre trechos completamente
empolgantes e absolutos vales de qualidade. Até os 37 minutos dos 90 totais, a
curva é ascendente com destacados méritos para a trilha sonora com o compositor
Max Steiner. Gypo caminha cabisbaixo pelas ruas, contra a luz em uma alameda
adornada por estátuas de anjos. É como se eles apontassem diretamente para o
protagonista com a interjeição: esse é o traidor!
O
primeiro ato do filme é fortemente carregado pelas influências expressionistas
e a densidade do cinema alemão. O roteiro sai de cena para dar lugar às imagens
muito bem captadas pela fotografia de Joseph H. August. São elas que
mostram o que o espectador precisa saber sobre Gypo: ele ama Katie (Margot
Grahame), tem um temperamento explosivo — conforme nos é mostrado numa
luta risível — e é um completo intransigente.
Talvez,
um dos mais improdutivos resultados do filme descende do roteiro capega de
Dudley Nichols — e estranhamente premiado com um Oscar — e da pressa
nas filmagens empreendidas pelo estúdio a John Ford.
O
enredo está assentado em uma história repetitiva que o faz enfadonho mesmo em
trechos em que o filme teria todos os elementos para se tornar interessante: o
é, por exemplo, quando Gypo busca o IRA (sigla em inglês para Exército
Republicano Irlandês) e é rejeitado no grupo paramilitar por sua baixa
capacidade intelectual.
É
evidente, porém, que o “O Delator” tem seus méritos. Um deles é a técnica
sofisticada de George Hively com a montagem paralela para convergir inúmeras
histórias múltiplas e simultâneas em uma única linha de pensamento.
O
trabalho de John Ford também brilha. É dele a ideia das metáforas que tornam a
história católica ao ponto de classifica-las como um embate cristão no estilo
Jesus e Judas — vide a citação bíblica inicial, sobre o arrependimento no
Evangelho de São Mateus — e a condução de atores medianos como Victor
McLaglen — que bem dirigido por Ford, ganhou o Oscar de melhor ator no ano
de 1936 — para cenas antológicas, como o momento que Gypo deita-se em
posição fetal em um canto escuro.
É um filme para entender um
momento pouco conhecido de um ótimo diretor. John Ford é um artista que soube
pensar vários momentos históricos e retratá-los com absoluta qualidade nas
telas de cinema.
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