Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que
está lendo e diz:
- Chega! Houve um desastre de trem na França, um
acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na Índia. Você acredita nisso
que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem
unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do
mundo.
Veja por exemplo aqui: em um subúrbio, um sapateiro matou a mulher que o traía.
Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos
que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenha conteúdo
jornalístico. Vejamos a história desse crime "Durante os três primeiros
anos o casal viveu imensamente feliz..." Você sabia disso? O jornal nunca
publica uma nota assim:
"Anteontem, cerca de 21 horas, na rua Arlinda,
no Méier, o sapateiro Augusto Ramos, de 28 anos, casado com a senhora Deolinda
Brito Ramos, 23 anos de idade, aproveitou-se de um momento em que sua consorte
erguia os braços para segurar uma lâmpada para abraçá-la alegremente, dando-lhe
beijos na garganta e na face, culminando em um beijo na orelha esquerda. Em
vista disso, a senhora em questão voltou-se para o seu marido, beijando-o
longamente na boca e murmurando as seguintes palavras: "Meu amor", ao
que ele retorquiu: "Deolinda". Na manhã seguinte Augusto Ramos foi
visto saindo de sua residência às 7:45 da manhã, isto é, dez minutos mais tarde
do que o habitual, pois se demorou, a pedido de sua esposa, para consertar a
gaiola de um canário-da-terra de propriedade do casal".
A impressão que a gente tem, lendo os jornais -
continuou meu amigo - é que "lar" é um local destinado
principalmente, à pratica de "uxoricídio". E dos bares, nem se fala. Imagine
isto:
"Ontem, certa de 10 horas da noite, o
indivíduo Ananias Fonseca, de 28 anos, pedreiro, residente à rua Chiquinha, sem
número, no Encantado, entrou no bar "Flor Mineira", à rua Cruzeiro,
524, em companhia de seu colega Pedro Amância de Araújo, residente no mesmo
endereço. Ambos entregaram-se a fartas libações alcoólicas e já se dispunham a
deixar o botequim quando apareceu Joca de tal, de residência ignorada, antigo
conhecido dos dois pedreiros, e que também estava visivelmente alcoolizado.
Dirigindo-se aos dois amigos, Joca manifestou desejo de sentar-se à sua mesa,
no que foi atendido. Passou então a pedir rodadas de conhaque, sendo servido
pelo empregado do botequim, Joaquim Nunes. Depois de várias rodadas, Joca
declarou que pagaria toda a despesa. Ananias e Pedro protestaram, alegando que
eles já estavam na mesa antes. Joca, entretanto insistiu, seguindo-se uma
disputa entre os três homens, que terminou com a intervenção do referido
empregado, que aceitou a nota que Joca lhe estendia. No momento em que trouxe o
troco, o garçom recebeu uma boa gorjeta, pelo que ficou contentíssimo, o mesmo
acontecendo aos três amigos que se retiraram do bar alegremente, cantarolando
sambas. Reina a maior paz no subúrbio Encantado, e a noite bastante fresca,
tendo dona Maria, sogra do comerciante Adalberto Ferreira, residente à rua
Benedito, 14, senhora que sempre foi muito friorenta, chegando a puxar o
cobertor, tendo depois sonhado que seu netinho lhe oferecia um pedaço de
goiabada".
E meu amigo:
- Se um repórter redigir essas duas notas e
levá-las a um secretário de redação, será chamado de louco. Porque os jornais
noticiam tudo, tudo, menos, uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a
vida...
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