sexta-feira, 8 de junho de 2012

A história do beco

Davam para o beco fundos de quintal, pela maior parte de varas de marmeleiro, e era ao fundo barrado por um estaleiro de barcos pequenos. Era o tempo em que apareciam almas do outro mundo e, sendo o beco onde mais se davam as aparições, ficou com a indicação de Beco das Almas.
Tinha mesmo um aspecto mal-assombrado, de noite, pelas velas que os parentes iam acender ao pé das cercas, justamente no local teriam sido vistos seus mortos.
Havia na cidade uma velhinha devota das almas que, toda boquinha da noite, a cabeça coberta por um pano preto, ia acender uma vela e depositar uma rosa branca no meio do beco, pelo descanso das almas penadas. Em seguida, ajoelhada no local, rezava suas preces. Com o tempo, e por isso, veio-lhe o outro nome – Dona Maria do Beco.
A velhinha dava o cavaco, e era porque também havia na cidade uma mulher com o mesmo nome do batismo, e a mesma alcunha bem antes dela, a velhinha, e que, mais nova, costumava levar seus homens para dentro do beco.
Até o vigário da paróquia, nas suas homilias, pedia ao povo fiel que lhe poupasse, a Dona Maria dos Anjos, o nome civil de Dona Maria do Beco, o duvidoso apelido, isto de confundi-la com a outra. Não lhe ficava bem, até pelo respeito que se lhe devia à idade, extensivo à honrada família, filhos e netos, noras e genros. Não lhe fizessem tanta maldade.
Um dia morreu Maria do Beco, a primeira dona do nome, e noite não havia em que não lhe aparecesse a alma dentro do beco, e com gestos obscenos, entre gargalhadas devassas mostrando as duas presas de ouro que tinha em vida.
Não demorou, e o Beco das Almas passou a ser chamado por outro nome o Beco de Maria. O que, para a grande maioria de habitantes, soava como agressão aos brios da decência da cidade, era uma mulher de vida depravada enquanto vida mortal tivera neste mundo.
Indicava-se que a prefeitura bem poderia encontrar um jeito de salvar a cidade dessa mancha vergonhosa, que seria espalhada adiante pelos de fora, naturalmente contando a origem desse nome, para vergonha da cidade – de povo honrado e temente a Deus.
Foi o caso que o prefeito, de acordo com os reclamos honestos do seu povo, se decidiu por estimular construções ali nos fundos de quintal, a prefeitura contribuiria quando pudesse, de modo que a fisionomia de beco desaparecesse sob a forma de rua ou travessa, com nome oficial inaugurado em placa. Os quintais, todos, ofereciam terreno para tanto, largura e fundo. Realizado em pouco semelhante propósito, com adesão do vigário, do delegado, dos figurões da cidade enfim, hoje o Beco das Almas, depois ultrajado como Beco de Maria, ostenta a dignidade de Travessa Dona Maria dos Anjos, qualquer coisa assim a título de compensação da ofensa, mas sem maldade, à boa velhinha devota das almas.
José Nicodemos, in Outras Palavras, Jornal de Fato

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