terça-feira, 1 de maio de 2012

Firmina



Firmina detinha a chave do cemitério, uma chave preta, grande e enferrujada que nenhum menino queria ver, e vivia de pequenas quantias que lhe dava a família do morto.
Recebia pouco ou quase nada dos enterros pobres de rede. Fazendo as contas, eram os anjinhos, nos seus caixões cor de rosa ou azuis, que remediavam a sua velhice de pernas tortas. Vindos de todos os cantos daquele sertão miserável de moscas e espinhos, obrigavam o sacristão a bater o sino todos os dias – o repique fino e ligeiro acompanhando os cortejos dos inocentes até a entrada do cemitério.
Ouvia-se em qualquer casa do povoado o reco-reco do serrote, o martelo do carpinteiro pregando as tábuas do caixão. Imaginava-se a plaina aparando a madeira encontrada nos arredores, ainda fresca e perfumada. Diante desses e outros anúncios da morte, os parentes tomavam o cuidado em batizar cedo as crianças, para que não ficassem errando no outro mundo, perdidas no limbo.
Morriam sedentas, os lábios ressecados pela febre. O choro, que no começo era alto, esgoelado, ia aos poucos se aquietando, até silenciar entre gemidos e convulsões. Era a hora em que apareciam as moscas, ninguém sabe de onde, e pousavam insistentes nos olhos roídos. Depois vinham as flores e as meninas, que chegavam inquietas com sombrinhas estampadas e vestidos de laço.
Firmina não se importava com esse morticínio, pois carecia dos anjos para viver. Pela manhã, sem nada para comer, circulava a praça da cidade, o xale puído nos ombros. Cantava baixinho, para ela mesma, a cantiga de louvor de sua preferência – “Meu anjo de asa, meu São Serafim, você vai pro céu, num galho de alecrim”-, requerendo a Deus mais enterro.
Voltava da bodega com um cacho de banana colado ao peito, apoiando-se na bengala de mulungu cheia de nós. Quebrado o jejum, sentava-se num tamborete. Que era o único móvel da casa, e rezava e terço. De olhos cerrados, apenas os lábios se moviam.
Nunca se soube das intenções de sua reza. Para alguns pedia os cortejos, mas para dona Deolinda que envelheceu com a ingenuidade de uma moça, Firmina rogava favores para as almas. O mais provável é que nos embaçamentos da velhice e nos limites da precisão, andasse misturando os motivos.
Com o tempo foi ficando sozinha, isolada, até o dia em que morreu entrevada, e foram necessários cinco homens para estica-la no caixão da prefeitura.
Demétrio Vieira Diniz, in Sob o céu de Natal

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