quinta-feira, 26 de abril de 2012

Segredos de liquidificador


Rebelde, romântico, escandaloso, tímido, debochado, doce, ácido, sincero, aprendiz; travesso, boêmio, praiano, irreverente, solidário, egoísta, sensível, despudorado; burguês antiburguês, índio americano, viciado em amar errado. Anjo e sedutor, pão e vinho, silêncio e berro. Samba, blues, bossa, fossa, rocknroll. Exagerado. Na identidade, Agenor; entre os amigos, Caju. Mas foi pelo codinome Cazuza que ficou marcado na história da música brasileira. De sua vida fez sua obra e com ela manteve-se vivo. Através de suas composições mostrou sua cara, desenhou uma geração, pintou um país.
Ao som da canção “Codinome Beija-flor”, de repente, uma imagem salta para encher-se de significados e organizar o presente trabalho. Paradoxal e enigmática, a metáfora “segredos de liquidificador”10 possibilita diversas leituras. A princípio, quando são ditos segredos de liquidificador, o que se quer é trazer calor para uma “orelha fria”, fazê-la entender que o bom do amor não deve ser contido, indolor nem aguado. A aceitação desse segredo decerto é dilacerante, turbulenta e trituradora. E explode seu escarcéu internamente e em silêncio.
Passando a uma atmosfera ainda mais sensual, é possível chegar a duas situações. A primeira diz respeito àquilo que é dito ao “pé do ouvido” na hora do sexo – os íntimos sussurros que acabam sendo escutados pelo prédio inteiro. A segunda – explicada pelo próprio Cazuza – evoca a língua que gira acelerada mergulhando no ouvido, em um gesto intensamente erotizado, embora temperado por um ar de brincadeira de criança travessa. Tais explicações deixam a imagem ainda mais deliciosa. E mais cazuzeana.
Todavia, esgarçando as possibilidades de interpretação, chegamos a uma visão ainda mais ampla da imagem. Veja-se que o liquidificador é o utensílio doméstico que converte – de forma bastante barulhenta – determinado conjunto de ingredientes em uma mistura silenciosa. Às vezes, até, elementos que parecem não combinar unificam-se sob a mesma cor, instigando através do paladar o interesse pela misteriosa receita. Mas afinal, não é da própria poesia que se está falando? Todo poeta/compositor bate dentro de si elementos biográficos, interesses artísticos, posicionamentos ideológicos, diálogos musicais e literários. A poesia é sempre um mistério, é sempre uma mistura. E, por vezes, a chave daquele está na descoberta desta. É preciso penetrar surdamente no reino das palavras.
Rafael Barbosa Julião, in Segredos de liquidificador: um estudo das letras de Cazuza. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas. Faculdade de Letras – UFRJ, Rio de Janeiro.

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