quinta-feira, 8 de março de 2012

O visconde partido ao meio

O visconde Medardo di Terralba, em temerária arremetida contra a ímpia artilharia de turcos, leva um tiro de canhão no peito. O destemido mas inexperiente defensor da cristandade sofre sérias avarias, sobrando-lhes apenas uma metade do corpo, felizmente intacta. Graças ao entusiasmo dos médicos que o socorrem, Medardo sobrevive, embora partido ao meio. À mutilação física do senhor de Terrralba seguem-se conseqüências indesejáveis em seu comportamento, causando grandes desgostos aos moradores de seus domínios. Mas quando os camponeses já estavam se acostumando às idiossincrasias do visconde, eis que ressurge a outra metade, para grande confusão e maior transtorno geral. Se meio visconde já incomodava, tanta gente, o que dizer das duas metades contraditórias de Medardo di Terralba?
Na entrevista reproduzida na apresentação deste livro, Ítalo Calvino diz que buscou escrever uma história para divertir a si mesmo e aos outros, e que divertir é uma das funções sociais da literatura. Sem dúvida, atingiu o alvo em cheio: as páginas inicias, que descrevem os horrores imaginários do campo de batalha da guerra entre cristãos e turcos do século XVII, são hilariantes em seu humor delirantemente macabro. Elas definem o tom impiedoso e sarcástico que domina todo o livro e envolve quase todos os personagens. Assim, temos o carpinteiro Pedroprego, cujas complexas forcas e elaborados instrumentos de tortura são verdadeiras obras-primas; o doutor Trelawney, que tem pavor de doenças e se dedica a caçar fogos-fátuos; os leprosos, que vivem irresponsavelmente felizes numa eterna orgia; Ezequiel, o velho calvinista que esta sempre gritando “peste e carestia”, e seu filho Esaú, ansioso para cometer todos os pecados mortais; e, sobretudo o visconde dimezzato, com uma metade divertidamente má e outra insuportavelmente boa, ambas atazanando a vida de todos.
Mas a brincadeira, como sempre acontece nas obras de Calvino, serve de véu para encobrir a discussão de temas mais sérios, e a ironia converte-se em um convite ao leitor para que medite sobre questões importantes da existência humana. Autor plenamente consciente de seus objetivos e instrumentos de trabalho, ele afirmou a respeito desse Visconde partido ao meio: “O homem contemporâneo é dividido, mutilado, incompleto, hostil a si mesmo. Marx o chama de “alienado”, Freud, de “reprimido”; um estado de harmonia foi perdido, aspiramos a uma nova totalidade. Este é o núcleo ideológico-moral que eu queria conscientemente trazer para a história”. Assim, o que está em pauta, apesar das aparências, não é a eterna luta entre o bem e mal, mas a busca de uma integridade que supere as mutilações impostas pela nossa sociedade. O visconde Medardo di Terralba é o verdadeiro ancestral do homem contemporâneo.
Ítalo Calvino. O visconde partido ao meio – tradução Nilson Moulin

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