Uma noite
— eu tinha dezessete anos — Otávio de Faria e eu fomos tocando a pé da Galeria
Cruzeiro até a Gávea, onde ficava minha casa, na rua Lopes Quintas. Não era
infrequente fazermos isso, à base da conversa. Era um hábito da amizade entre o
calouro e o veterano da Faculdade de Direito do Catete, aquele passeio noturno
povoado das sombras de Nietzsche e da pantomima de Chaplin. Lembro-me que à
meia-noite, bem alto, na estrada de Órion, brilhava uma lua como nunca vi mais
cheia, a cabeleira solta, os seios nus, o olhar de louca a me varar o peito de
súplicas e doestos.
Era tal o
mistério dessa noite que agora mesmo, escrevendo na minha sala noturna, sinto
os cabelos se me içarem de leve, como se fosse sentir novamente sobre eles a mão
macia da lua cheia.
Deixei
Otávio de Faria no seu bonde de volta e subi Lopes Quintas, rumo a casa. O
sossego era perfeito, total o sono do mundo. Só, às vezes, subitamente, dos
espaços descia um braço de vento que varria as folhas secas da rua e empinava
papéis velhos como hipocampos. Transpus, ansiado,
a distância familiar que me levava para
alguma coisa que sentia vir mas não sabia o que era. Em casa, galguei rápido as
escadas para o meu quarto no primeiro andar, e fui sentar-me ofegante à
escrivaninha antiga, a mesma que tenho hoje, a mesma que suportou na infância o
peso da minha ambição de ser poeta. A janela estava aberta, e em sua moldura a
lua viera se postar, os olhos cravados em mim.
Não sei
como foi, mas sei que foi diferente de tudo o que sentira antes. Meus ouvidos,
como conchas, pareciam recolher os ruídos mais longínquos do mar que
estilhaçava em mim. Ouvi o sopro da noite, o cair das folhas, o germinar das plantas
que buliam fora, na mata próxima ao Corcovado, e ali perto, no jardim. Pombas
vazaram do meu coração, deixando--me dentro, a se debater, a grande ave inimiga
que me feria com suas asas querendo sair também, fugir, voar para longe. Senti-me
sem peso, sem dimensão, sem matéria. Meu ser volatilizou-se para a lua,
transformado ele próprio em substância lunar. E comecei a escrever como nunca
dantes, liberto de métrica e rima, algo que era eu mas que era também diferente
de mim; algo que eu tinha e de que não participava, como um fogo-fátuo a
crepitar da minha carne em agonia.
Linha por
linha, como psicografado, o poema — o meu primeiro poema — começou a brotar de
mim.
O
ar está cheio de murmúrios misteriosos...
Vinicius de Moraes, trecho de O Aprendiz de Poesia, in Para uma Menina
com uma Flor
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