“O fanatismo é para a superstição o que o delírio é
para a febre, o que é a raiva para a cólera. Aquele que tem êxtases, visões,
que considera os sonhos como realidades e as imaginações como profecias é um
entusiasta; aquele que alimenta a sua loucura com a morte é um fanático. (...)
O mais detestável exemplo de fanatismo é aquele dos burgueses de Paris que
correram a assassinar, degolar, atirar pelas janelas, despedaçar, na noite de
São Bartolomeu, os seus concidadãos que não iam à missa. Há fanáticos de sangue
frio: são os juízes que condenam à morte aqueles cujo único crime é não pensar
como eles. Quando uma vez o fanatismo gangrenou um cérebro a doença é quase
incurável. Eu vi convulsionários que, falando dos milagres de S. Páris, sem
querer se acaloravam cada vez mais; os seus olhos encarniçavam-se, os seus
membros tremiam, o furor desfigurava os seus rostos e teriam morto quem quer
que os houvesse contrariado.
Não
há outro remédio contra essa doença epidêmica senão o espírito filosófico que,
progressivamente difundido, adoça enfim a índole dos homens, prevenindo os
acessos do mal porque, desde que o mal fez alguns progressos, é preciso fugir e
esperar que o ar seja purificado. As leis e a religião não bastam contra a
peste das almas; a religião, longe de ser para elas um alimento salutar, transforma-se
em veneno nos cérebros infeccionados.
(...)
As leis são ainda muito impotentes contra tais acessos de raiva; é como se
lêsseis um aresto do Conselho a um frenético. Essa gente está persuadida de que
o espírito santo que os penetra está acima das leis e que o seu entusiasmo é a
única lei a que devem obedecer. Que responder a um homem que vos diz que
prefere obedecer a Deus a obedecer aos homens e que, consequentemente, está certo de merecer o
céu se vos degolar?
De
ordinário, são os velhacos que conduzem os fanáticos e que lhes põem o punhal
nas mãos: assemelham-se a esse Velho da Montanha que fazia - segundo se diz -
imbecis gozarem as alegrias do paraíso e que lhes prometia uma eternidade
desses prazeres que lhes havia feito provar com a condição de assassinarem
todos aqueles que ele lhes apontasse. Só houve uma religião no mundo que não
foi abalada pelo fanatismo, é a dos letrados da China. As seitas dos filósofos
estavam não somente isentas dessa peste como constituíam o remédio para ela:
pois o efeito da filosofia é tornar a
alma tranquila e o fanatismo é incompatível com a tranquilidade. Se a nossa
santa religião tem sido frequentemente corrompida por esse furor infernal, é à
loucura humana que se deve culpar”.
Voltaire, in Dicionário Filosófico
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