Gramática? Sintaxe? Semântica? Não. Pode esquecer! Isso não existe no universo enigmático do escritor Zé Urbano. Não como nós conhecemos estruturalmente o nosso idioma. Não há possibilidade de se fazer comparações. Talvez, numa vã tentativa, um perigoso paralelo com “Memórias Sentimentais de João Miramar”, mas não, sem contar que Oswald de Andrade era um louco (ou quase isso). Epa! Loucura. Pode estar aí o liame, o fio de seda que pode nos mostrar um caminho interpretativo mais seguro. Essa mania dos “normais” (que se acham os tais) de ter certeza do tipo de chão que pisam. Por falar em chão, em Zé Urbano ele é movediço. O escritor apenas nos mostra um caminho, mas ele é sinuoso e muito traiçoeiro e há que se cuidar das minas que estão espalhadas no percurso e muito bem camufladas.
Irônica, debochada, e (por que não?) escatológica. Em seu livro intitulado “ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ” (pasmem, mas nem tanto), a “poética” de Zé Urbano é impactante, desafiadora e a obra poderia ser iniciada com uma breve advertência: “decifra-me se puderes!”. É como se recebêssemos um alfabeto inteiro para criarmos uma nova língua, partindo do zero absoluto. E Zé Urbano parece ser de outro mundo, de outro planeta ou de uma dimensão paralela para a qual o livro é apenas uma porta de acesso. Ah! Se Stephen King lesse mais do que escreve, provavelmente ficaria feliz em encontrar Zé Urbano. Terminamos o livro e nos vem à mente uma pessoa, meio-moleque daqueles que fedem vergamota (talvez o autor) rindo de nós, longe do nosso alcance (inteligentemente), exibindo um dedo em riste. Mas não nos irritamos, nem tampouco nos indignamos, apenas rimos. Talvez, rimos da nossa teimosa incapacidade de nos deixar levar pelo texto. Rimos da nossa pequenez como leitores ainda presos ao passado, incapazes de bem compreender o presente, quanto mais o futuro. E o “non-sense” (tão na moda) nos vem como explicação, mas é apenas estilístico e só nos ajuda realmente como um último recurso para descobrirmos o tamanho da nossa limitação. Zé Urbano está aí para nos mostrar que há um mundo inteiro, completamente diferente, muito além daquele percebido pelo nosso limitado ângulo de visão. Falei demais? Então, que tal curtir um pouco do próprio Zé Urbano, retratando o seu mal, pois, segundo ele mesmo: “...sofro de biscoitos ininteligíveis.” (p.98, in “As Momescas Cabriolagens do Mundo” – 2005).
“ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ (2005)
Himgróla, qomo qontinuar?
Sobrelhevêm as respostas aos borbolhetônes:
Morderei pãopãoqueijoqueijo
Sempre que a me convinher
Mastigarei Abcdefghijklmnopqrstuvwxyz
Incluindo alfa beta e cetéras
E assim brótarãolhesestes vérsínios
Tais quais qe lhes agradem e agradem e adragem.
Á annos ñao páÁÁra de rodar o wellocípe na garagem
Use carpas na estiagem
Feche boca na mastigagem
Atemsão clace repete comigo
ABCDEF é: Abequidef – ABEQUIDEF!
GHIJKL é: Guíjcle – GUÍJCLE!
MNOP é: Minópe – MINÓPE!
QRSTUVW é: Cristúve – CRISTÚVE!
XYZ é: Csíz – CSÍZ!
TODOS! Abcdefghijklmnopqrstuvwxyz. RÁPIDO!
ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ
MAIS RÁPIDO!
ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ
ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ” (p.122)
“... Sinco! Sei, seis! Sete!
Sente o impacto da pedra na cabeça!
É dramático,
É impressionante,
Refiro-me a Dante,
Já leu, monstrão nojentaço?
Não? Sim? Não? Sim?
Sim! Sim! Sim! Sim!
Beterrabas transgêêêêêêêêêênicaaaaaas!!!!” (in “A mil” – 2008 – p. 118)
“Eu conheço a Heloísa
vive cheia de coriza
mas ela nunca me avisa
quando vai soltar um escarro.” (p.92 in “Heloísa” – 2002)
“Hoje em dia
Eu passeava antigamente
Quase chegando
Ao ponto de partida” (p.11 in “Pequeno Enigma de Einstein”)
E por aí vai. Trata-se de um livro desafiador. Para leitores acostumados com o que a boa literatura nos apresenta. Não digo que agradará a todos, mas como já disse Nelson Rodrigues: “Toda a unanimidade é burra.” Vale, isto sim, ler e tirar sua própria conclusão. Quem sabe não começamos a olhar o mundo com outros olhos, mesmo que sejam vesgos ou... furados.
O livro “ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ”, de Zé Urbano é de 2009, publicado pela editora Ibis Libris, Rio de Janeiro. Zé Urbano é o pseudônimo de Gustavo Jobim.
Fonte: leialivrosresenhas.blogspot.com
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