segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O Livro e a Ausência de Livro em Tutaméia, de Guimarães Rosa


“Só o amor em linhas gerais infunde simpatia e sentido à história, sobre cujo fim vogam inexatidões, convindo se componham; o amor e seu milhão de significados. [...] Ele queria conversar com uma mulher [...] queria entender o avesso do passado entre ambos, estudadamente, metia-se nessa música, imagem rendada; o que a música diz é a impossibilidade de haver mundo, coisas. ― Inútil… a lucidez ― está-se sempre no caso da tartaruga e Aquiles. [...] Estava sem óculos; não refabulava. Era o homem ― o ser ridente e ridículo ― sendo o absurdo o espelho em que a imagem da gente se destrói. [...] De dia, de fato, tiveram de romper a porta, havido alvoroço. Na cama jazendo imorais os corpos, os dois, à luz fechada naquele quarto. A morte é uma louca? ― ou o fim de uma fórmula. Mas todos morrem audazmente ― e é então que começa a não-história.”
ROSA, João Guimarães. Palhaço da boca verde. In: Tutaméia: terceiras estórias. 8. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.169-173.
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“O Livro e a Ausência de Livro em Tutaméia, de Guimarães Rosa”, por Daisy Turrer
Prólogo
“A hipótese de Guimarães Rosa, em Tutaméia, de que ‘o livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber‘, sintetiza o percurso deste livro, abrindo, ela mesma, os dois campos distintos que envolvem o livro como abrigo da escrita —realidade de papel e impresso que circunscreve e veicula a palavra — e o livro imaterial, incircunscrito — que, ao contrário, é desabrigo da escrita, a nascente de todos os livros. Assim, o trajeto que se faz aqui é o do esvaecimento do objeto em direção à concretude virtual: tentativa de trabalhar os textos de Tutaméia em sua disseminação, contornando as suas margens — os prefácios, o itinerário da obra, a pré-publicação de seus textos em revistas e jornais; uma leitura de um “que-livro”, um ensaio de livro, antes de se tornar uma publicação organizada pelo autor, que reuniu os textos dispersos para a primeira edição em 1927. É ainda Guimarães Rosa que nos lança, pela própria escrita do livro Tutaméia, para fora do livro, para o que lhe é exterior. Instiga-nos, dessa forma, a uma leitura também paradoxal, que consiste em buscar, no livro, o que nele não está narrado em letra de fôrma impressa, para se tentar capturar, de viés, o movimento de vir a ser da escrita: Tutaméia: terceiras estórias ou Terceiras estórias: Tutaméia, um livro em devir…”

“Daisy Turrer fala, neste livro e em todo seu trabalho, do infinito nascimento da obra, nunca de sua morte ou ruína, atendo-se a um processo repetido de mantê-la em estado de constante irrupção. A repetição, no entanto, não é pela mecânica, mas se faz pelo talhe da diferença, pelo corte ou recorte do novo no real: no que se deixa escavar, ferir ou marcar-se de pontas, traços que se fazem e desfazem numa assinatura, que é aquilo que farásignum, no ponto tenso de um nascimento que não pára de nascer, mas não é um renascer.
Esse eterno exercício ou fazer-se da obra afasta indefinidamente seu fim, na imobilidade permanente de uma arte que se confunde com a arte de talhar a vida e reinventar seus signos.
Assim, o contato da artista plástica com o texto literário é feito com mãos e olhos, com o tato, com as cores, capaz assim de ver e fazer ver na página branca o lugar de um ponto que se faz com a ponta do estilete, do buril ou daquele que já anuncia seu nascimento, o berceau. Todo esse processo se produz no ponto preciso entre a folha e a lâmina invisível que a sustenta e é esta precisão que marca o texto e a tela de Daisy Turrer.
A precisão é a marca poética desse fazer ininterrupto, incompleto, insistente, em seu refazer contínuo, numa insatisfação que justamente aponta para o desejo de uma perfeição nunca atingida, mas causa da obra sempre renovada.
Assim, ler, escrever, criar são gestos inacabados para o artista da palavra, do desenho, da cor ou do som, pois o que fica na página é o rastro de seu traço, em constante formação, em permanente intermitência. Um gesto sempre fora do sentido, sempre prestes a perder-se na amplitude branca da ausência de um sentido que não pára de apagar-se e irromper.
Se na raiz mesmo da palavra sentido há um viajar, um tender a, tomar direção, podemos ver que Daisy e Guimarães Rosa fazem sua antiperipléia, paradoxal no ir e vir ao mesmo tempo, atrás de um sentido em fuga e também paradoxalmente ponto fixo e móvel da criação sempre por vir .”
Ruth Silviano Brandão

TURRER, Daisy. O livro e a ausência de livro em Tutaméia, de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

Sueli Aduan, da coluna Ofício de Escrever, in www.imaginariopoetico.com.br

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