terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Cara de Peixe

O nome de batismo de “Cara de Peixe” era João Amistrônio dos Santos Silva. João porque nascera na madrugada de 23 para 24 de junho; Amistrônio porque aquele era o ano de 1969 e o menino somente viria a ser batizado mais de um mês após o seu nascimento, depois que a Apolo XI já havia pousado na Lua e o nome Neil Armstrong tinha ficado conhecido no mundo inteiro, inclusive no pequeno povoado do interior do Ceará onde “Cara de Peixe” havia nascido.
- “João Amistrõe dos Santos Silva” – disse o pai ao rapaz encarregado de anotar os nomes dos meninos que seriam batizados naquele dia.
- João o quê?
- A-MIS-TRÕE – repetiu pausadamente o pai. – O cabra que andou na Lua…
- Ah, sei… O senhor desculpe, mas esse nome o povo fala assim, “Amistrõe”, mas a gente escreve de outro jeito – advertiu o rapaz, com uma vozinha fina e um jeito delicado, pouco comuns naquela época e lugar.
Depois pegou um pedaço de papel que havia por ali e escreveu, enquanto explicava:
- Olhe: A-MIS-TRÔ-NIO. É igual “Antônio”, que o povo aqui só chama de “Antõe”.
- Seu Minino, eu não sei ler não. O senhor, que tem estudo, bote o nome aí do jeito que for o certo, que pra mim é “Amistrõe” e pronto.
E assim foi escrito no batistério da criança o nome que depois seria transcrito para os livros do Cartório do Registro Civil da sede do Município: João Amistrônio dos Santos Silva.
Mas, o certo é que, tirando o pai, ninguém na cidade chamava Amistrônio por esse nome. Não se sabe quando nem como o apelido de João surgiu, mas, desde pequeno, todo mundo o chamava de “Cara de Peixe”.
Uns diziam que ele estava ainda nos braços da mãe, quando um tio olhou para ele e disse: “O bichinho tem uma carinha de peixe, né?”. Pronto. Num lugar onde havia muitos Joãos, e ninguém aprendia o seu segundo nome, isso teria sido mais do que suficiente para o menino passar a ser chamado somente de “Cara de Peixe”. A história nunca foi confirmada, mas o apelido pegou de tal forma que nem na escola, na hora da chamada, a professora chegava a ler o seu nome completo:
- João Amis…
- O “Cara de Peixe” tá presente fessora! – respondiam os colegas, em coro.
Se fosse hoje, o caso certamente seria considerado bullying. E talvez fosse mesmo. Inclusive porque João não gostava de ser chamado pelo apelido, acostumou-se, ou conformou-se, por mera falta de opção. Certa vez, conversando com o amigo Vicente, comentou:
- Eu não gosto desse negócio de “Cara de Peixe”, mas vou fazer o quê? Apelido é assim mesmo, quanto mais a gente não gosta, mais pega. E o papai não tinha nada que me botar esse nome esquisito. O pior é que ainda foi registrado errado. Também não ia adiantar nada meu nome ser João Armstrong, ninguém aqui ia aprender mesmo.
- Liga pra isso não, João – consolava-o Vicente, o único dos colegas da escola que o chamava pelo nome. – Daqui mais uns anos, nós vamos embora, estudar na capital, e ninguém vai mais nem lembrar dessa história de apelido. Eu, pelo menos, não vou contar pra ninguém.
De fato, as palavras de Vicente tiveram algo de profético. Mais estudiosos que a maioria de seus colegas, tanto ele como João foram mesmo fazer o segundo grau na capital. Nesse tempo, perderam um pouco do contato, porque os parentes que os receberam em Fortaleza moravam muito distantes um do outro, e cada um foi estudar em um colégio diferente. Chegaram a se encontrar algumas vezes em sua terra natal, nas férias, mas, apesar da grande amizade que os unia, os encontros foram rareando, principalmente depois que entraram para a faculdade. Algum tempo depois, Vicente passou em um concurso para a Petrobras, João foi trabalhar no Banco do Brasil, e cada um seguiu o rumo de sua vida em uma cidade diferente.
A vida é assim mesmo, repleta de laços de amizade que se estreitam, em períodos de interesses comuns, e afrouxam quando outros interesses levam as pessoas para longe umas das outras. Felizmente, esses distanciamentos não matam as verdadeiras amizades.
O certo é que a vida de um contador de histórias seria mais difícil, se não fossem esses encontros, desencontros e reencontros da vida.
Pois se deu que, depois de haver trabalhado em muitos lugares do Brasil, Vicente aproveitou a instalação de uma usina de biodiesel da Petrobras em Quixadá e resolveu voltar para o interior do Ceará. Antes, porém, foi fazer uma visita à cidade dos monólitos, para se certificar das condições de se acomodar ali.
De passagem por Fortaleza, precisou ir a uma agência do Banco do Brasil – resolver um problema que não interessa para o deslinde dessa história – e foi exatamente lá que, quando estava sendo atendido por um dos gerentes, olhou para a mesa ao lado e pensou ter reconhecido o amigo de infância. “Será o João Amistrônio?”, pensou. “Meu Deus, quanto tempo… Será que é ele mesmo? Careca desse jeito… Gordo… Mas, é o João! Só pode ser o João…”. Estava fazendo silenciosamente essas conjecturas, quando foi interrompido:
- O senhor sabe o código da sua agência? – perguntou-lhe o gerente que o atendia.
Antes de responder à pergunta, Vicente resolveu tirar a dúvida. Para isso, perguntaria ao seu interlocutor o nome do funcionário ao lado e saberia se aquele era mesmo seu amigo João. “Afinal”, pensou, “não devem existir muitos Amistrônios no mundo, ainda mais trabalhando no Banco do Brasil”.
- O senhor me desculpe, mas, eu acho que conheço esse senhor que está atendendo aí na outra mesa… O senhor sabe o nome dele?
- Ah, é o João. Ele é gerente de conta, como eu – respondeu solícito o funcionário do banco.
- E o senhor sabe o nome dele completo, quer dizer: João de quê?
- Olha, faz pouco tempo que ele foi transferido para essa agência… E o nome dele é meio complicado… Mas, eu pergunto a ele, para tirar sua dúvida.
E virando-se para o colega da mesa à sua direita, o bancário perguntou em alto e bom tom:
- Cara de Peixe! Parece que o rapaz aqui te conhece de algum lugar! Como é mesmo o teu nome todo, hein!?
“Cara de Peixe” não respondeu. Olhou para Vicente e, reconhecendo o amigo, que já sorria e se levantava para abraçá-lo, veio em sua direção, com os braços estendidos para corresponder ao abraço. A alegria do reencontro foi maior que o incômodo de ser chamado pelo apelido.
Ao final do expediente daquele dia, os dois se encontraram e conversaram muito sobre suas vidas nos últimos anos. Durante toda a conversa, Vicente continuou chamando “Cara de Peixe” pelo primeiro nome, João, como sempre fizera. Mas, para si mesmo, tinha que admitir: só havia reconhecido João Amistrônio depois de tanto tempo por causa da sua inconfundível cara de peixe.

Marcos Mairton – Contos, Crônicas e Cordéis, in Besta Fubana

2 comentários:

  1. Prezado Elilson,
    fico muito feliz ao encontrar contos meus em um site cult como o Rapadura.
    Dei uma olhada em outros posts e pude constatar que minhas obras estão muito bem acompanhadas aqui, nem sei se merecem tanto.
    De qualquer forma, agradeço-lhe a divulgação.
    Parabéns pelo blog!

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  2. Caro Mairton, obrigado pelos elogios ao blog, que está à sua inteira disposição. O Rapadura Cult está aberto à divulgação da Arte e da Cultura. Seus escritos merecem estar aqui. Espero sua colaboração, se possível com um inédito.
    Um abraço literário!

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