sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Crônica do Sertão II - O Vaqueiro

Vamos medir as poesias? Desafiou o vaqueiro.
O poeta sorriu no canto da boca, mas nem disse que sim, nem que não.
O vaqueiro devolveu o chapéu à cabeça, reorganizou o tronco que curvara em direção ao outro e deu meia volta. Meteu o pé no estribo e, de um salto, montou no cavalo. O conjunto da cela fez um barulho tilintante e o gibão chiou com o movimento.
De forma que era impossível para o poeta o desafio. O vaqueiro estava certo e ele gostava de saber disso. Não poderia medir nem o caráter, que dirá a coragem. Havia no velho homem, em seu cavalo, uma altivez que suprimia qualquer certeza; que expelia para distante todo conhecimento adquirido nos bancos e nos livros. Não existia comparação porque o vaqueiro era um livro que, por mais previsível, não se podia ler.
Olhar debaixo as marcas daquela obra, cheia de razão e discórdia, verdade e mentira, vívida e inalcançável, parecia-lhe a possibilidade de um autor sob o seu maior feito. Uma música em cores raiando das páginas para formar a massa física de um homem sob o olhar frêmito de um mero mortal. E foi aí que ele se deu conta do que estava havendo ali e do que poderia presenciar caso dissesse qualquer afronta. O outro entenderia assim, com a seriedade de quem não leva desaforo e esse ato tornaria ativo um diálogo que poderia ser central para o capítulo que hora se constituía.
E tudo ao redor do poeta se refez. Do chão empoeirado e fino à sombra disforme que descia do animal; da mata cinzenta, que confundia o olhar e os tons, tornando tudo xilográfico. Ali, impaciente, na altura que lhe cabia, estava um sujeito comum e sem casta, tão indefinido quanto o gado que campeava; tão Fabiano, Riobaldo, Ojuara e outros adjetivos impraticáveis e suprimíveis.
Havia naquela atmosfera um ar de discordância e descoberta. Uma substantivação dos feitos e dos eitos que levava ao descontrole os dois indivíduos. Um querendo arremedar pela garganta o mundo que lhe cercava, cumprindo sua sina de arrebanhador. O outro tentando entendê-lo, não como material tátil, mas como elemento constitutivo. Embora fossem os dois homens do mesmo ambiente, só um realmente pertencia ao plano subjetivo da poesia.
O poeta sabia de seu limite. Entendia-se como uma ficção maior do que tentava ser. Frígido e seco como todo impotente menor que sua própria arte. O vaqueiro não pensava nada, só sabia que seu aboio era incapaz de ser imitado, embora não fosse tão diferente dos que aboiavam pelo gado e pela vida. E ele sabia disso. Tanto que não se importava em ser como os outros e até dizia sê-lo, comparando-se a uns tantos como ele.
O ponto de distanciamento entre os dois estava nítido, mas ainda mais nítida a vontade de um deles provar de sua descoberta, mesmo conhecendo o seu fracasso.
O poeta é um fingidor… Iniciou o poeta.


José de Paiva Rebouças, jornalista e escritor mossoroense

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