segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Que canção lhe faz doer por dentro?

Romendações preliminares: crônica para se ler e ouvir. Se possível, tente prosseguir a leitura deste texto ouvindo a canção “O silêncio das estrelas”, na voz do cantor nordestino Lenine. Se preferir, faça uma cena: queime depois de ler. Tô nem aí.
Fico pensando o que seria de mim sem a música. Imagino meu castigo maior, o quanto viver tornar-se-ia insuportável se eu ficasse, de repente, deteriorado no juízo ou nos ouvidos.
Sinto certo grau de indignação ao supor que os malvados (celerados e canalhas outros), além de possuírem reserva moral para o amor, — refiro-me ao amor sensual, aquele sentir a falta do(a) amante —  têm lá as suas preferências musicais. Sabe-se, por exemplo, que Hitler, um dos maiores vilões da História, além de ter-se afeiçoado por Eva Braun e pelos cachorros, gostava de ouvir Wagner.
Similarmente, imaginei um torturador chegando à casa, tirando a camisa suja de suor e sangue de tanto bater numa pessoa sem defesa, jogando ao canto da sala os sapatos respingados de dor e com os quais chutou as costelas da sua vítima, reclamando de cansaço à esposa, beijando-a com paixão na boca, tendo uma ereção, abrindo a braguilha e uma garrafa de cerveja, desfilando de ceroula, e escutando música, enfim, só pra relaxar. O dia foi duro, beibe... Certa vez, ao assistir a um documentário cujo nome não me lembro, um dos entrevistados —  ex-preso político que fora torturado no período da ditadura militar brasileira —  contou que, durante as sessões de tortura, os seus algozes colocavam na vitrola sempre a mesma canção, em volume máximo, a título de provocação e, acima de tudo, humilhação, para que a vizinhança não escutasse gritos, choros e “outros sinais de fraqueza humana”. A canção era “Apesar de você”, de Chico Buarque. Hoje em dia, aos primeiros acordes desta música, o ex-torturado estremece, perde as estribeiras e quase se urina.
Por outro lado, leitor, que canção lhe faz doer por dentro (no melhor sentido imaginável: a dor de amor, a beleza nua e crua)? Que música lhe faz levitar? Que som você escolhe para embalar a noite quando vai “fazer amor” (detesto esta expressão; prefiro “divertir-se com o corpo alheio”)? Aliás, na hora do sexo: samba, roque pesado, baladinha ou téquino-brega? É possível gozar ao som de “Sandra Rosa Madalena” (Sidney Magal) ou “Florentina” (Tiririca)?! Calma lá. Jamais subestime a capacidade do ser humano em fantasiar.
Que canção, ouvida na solidão do carro ou da cama, faria você chorar despudoradamente, ao ponto de acreditar que Deus, na verdade, não é um velhinho que ninguém jamais viu escondido atrás de uma nuvem, uma metáfora, uma estratégia de manobra coletiva, uma invencionice humana forjada para que se tolerem os paradoxos da vida? Ao contrário, seria Deus a própria música, os acordes dissonantes, as escalas musicais, solos ao violoncelo, canto de passarinho?
Quando ouvi “O silêncio das estrelas” pela primeira vez, fui invadido por um sentimento tão surpreendente e sincero que pronunciei sozinho: “Como é que um ser humano tem capacidade para compor uma coisa assim tão sensível, linda e, ao mesmo tempo, triste? Será que Lenine é o próprio Deus disfarçado?”.
Então, como eu dirigia automóvel pela cidade, tão somente para desafiar as sandices do trânsito e a arrogância do relógio, continuei a viajar nos acordes, sentindo-me estranhamente harmonizado com o universo, praticamente imune ao caos lá fora. Estaria eu ficando, finalmente, lesado nos miolos?
Daí, para peitar a dureza daquele dia, eu emendei na memória outras canções que me faziam sentir, temporariamente, menos humano (afinal, a vida segue com as suas duplicatas, más notícias e separações compulsórias), um semideus, o braço direito do Senhor, o bandido arrependido e crucificado à esquerda de Deus Pai Todo Poderoso, o enigma atrás da nuvem.
Não tinha bafômetro de Lei Seca que flagrasse em mim tamanho delírio: cheguei a pensar que, tamanha insegurança interior, seria plenamente possível —  e até desejável —  entrar numa espécie de coma musical e me desconectar da vida urbana para uma vida suburbana, quiçá inter-galáxica (ocasionalmente, devaneios meteóricos atingem os planetas e a minha mente; perdoem-me, parceiros da agonia).
De volta à realidade. A mim não importa mesmo que músicas embalarão o meu velório, a minha desconexão desta miserável condição humana. Deixo o mórbido tributo aos amigos, parentes e especialistas em funerais. Quero saber, agora, que músicas deixarão o meu cotidiano menos azedo.
Este repertório, sim, interessa-me sobremaneira: “Because”, de Lennon e McCartney, “Resta”, de Ana Carolina e Chiara Civello, “Smile”, de Charles Chaplin, “Pedaço de mim”, de Chico Buarque, “Caçador de mim”, de Milton Nascimento, “Nobreza”, do Djavan, “Ave Maria”, de Bach, etc. A lista é grande.
E você, leitor, que sustentou meus devaneios até o fim: que canções justificam os meios?
Eberth Vêncio, in Revistabula.com

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