quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Ensaio sobre o aborto II

No dia 6 de abril de 1998, Marluce de Elsa realizou o sonho de toda mulher: informou à patroa que procurasse outra empregada, pois tinha engravidado e, no mês seguinte, se casaria com Jacinto Pedreiro. Os dois já tinham alugado uma casa perto de sua mãe e se mudariam para lá assim que assinassem seu nome no cartório. Não houve recusa frente ao milagre. Marluce ficou grávida e noiva tendo mais de 40 anos, depois de muitos abandonos. 
Os dias seguintes foram de arrumação e preparatório para os noivos que, em setembro, já tinham rotina. A casa sempre limpinha e as refeições prontas e quentes toda vez que Jacinto saia ou chegava. Esperançosos, guardavam, todo mês, uma pontinha do que sobrava para comprar o terreno onde levantariam sozinhos e sem pressa, a bendita casa própria. A conta foi feita na cabeça: um lugarzinho pequeno, apenas dois quartos, uma despensa para as ferramentas do pedreiro e uma cozinha grande para Marluce passar os dias cozinhando, passando e recebendo a mãe e a irmã.
No final de uma manhã de outubro, Jacinto foi chamado às pressas à maternidade, onde sua esposa havia dado entrada. Foi amparado por Elsa, sua sogra e Marleide, sua cunhada. Marluce tinha abortado um menino que poderia ter sido saudável. Mesmo desconsolado, o marido segurou firme a mão da esposa sem dizer uma só palavra. Os gestos exprimiam apoio e garantia de que o acidente não mudaria os planos combinados. O médico de plantão ainda teve coragem de dar o golpe de misericórdia. Marluce não havia se submetido apenas a uma curetagem, mas também a uma histerectomia.
Houve silêncio e lágrima das mulheres. Dois dias depois, Marluce foi levada para casa, onde ficou sob os cuidados da mãe e da irmã. Os dias seguintes foram de tristeza e muita febre, carecendo de um esforço grande dos três para manterem-na viva. Passados dois meses, Marluce ainda não tinha disposição suficiente para cuidar de casa. Estava magra e anêmica e precisava de atenção constante, mas Jacinto tinha de trabalhar. Por muitas vezes, ele precisou bater na porta da sogra para pedir apoio, tanto, que um dia, confessou que queria as duas morando em sua casa. A situação da mulher não tinha melhora.
É certo que não se olhavam muito nas primeiras semanas, mas aos poucos foram se acostumando uns com os outros. Um ano depois, ele começou, sozinho, a bendita construção da casa própria. Sogra e cunhada se revezaram para ampará-lo. Assim que conseguiram levantar as paredes, cobrir e puxar o piso morto, mudaram-se. O projeto ficou diferente do planejado no início. Jacinto abriu mão da dispensa que seria para as ferramentas e fez outro quarto, próximo da cozinha, para a sogra. Queria abrigar todo mundo. O cuidado do marido com a mãe e a irmã deixou Marluce emocionada, embora vivesse triste por não ter mais vida além da cama e da cadeira de balanço da sala.
A rotina foi retomada e a harmonia entre os quatro fez Marluce voltar a dormir. Agora não perturbava tanto como antes e permitia que Jacinto e o resto da família sossegassem a noite toda. Certa madrugada, ela sentiu-se vazia na cama e espantou-se com a ausência do marido. Olhou a casa e não viu luz acesa. Olhou o relógio, era cedo demais para o trabalho dele. Esperou pelo seu retorno que não aconteceu. Então, com muito esforço, levantou-se da cama e arrastou-se até a cozinha. As portas estavam fechadas e, no último quarto, sua mãe ressonava. O coração foi atravessado por uma dor aguda. Aproximou-se com dificuldade da cortina que servia de porta para o quarto de Marleide e ficou ouvindo, por alguns minutos, a agonia dos dois entre os lençóis. Mas voltou para a sua cama.
Antes de o sol aparecer, Jacinto voltou ao quarto sem qualquer preocupação.
Onde você estava? Perguntou Marluce.
No outro quarto, respondeu sem segredos.
Ela está?
Sim, dois meses.
Eu posso escolher o nome?
Acho que sim, vou pedir a ela.
E mamãe?
Ela já sabe...

José de Paiva Rebouças, jornalista e escritor mossoroense. Conto gentilmente enviado pelo autor para este blog.

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