A cura
Os transtornos de Geraldo, que o médico diagnosticou como angústia, talvez viessem de muito longe. Do tempo em que se enchia de medo diante da palmatória do professor Silvino, lembrado pelo seu carrancismo e pelas duas filhas, que faziam às vezes de manicure para que os namorados gastassem as tardes com as mãos em suas coxas.
Um dia, misturando gíria à fala rebuscada de um escritor que andou lendo, o professor ameaçou o mais afoito e gabola deles na frente de uns velhos que jogavam gamão na farmácia Triumpho: dar-lhe-ia um murro no alto da sinagoga ousasse introduzir o membro viril nas coxas de sua filha Naldeci. O sorriso no canto da boca dos anciãos não foi bem pelo uso da mesóclise, nem tampouco pouco pelo “membro viril”, mas porque sabiam que o estrago já tinha sido feito.
Especulou-se também que as esquisitices de Geraldo tivessem matriz nas surras de cinturão do pai, quase sempre acompanhadas de um banho com água de sal e uma prisão caseira de trinta dias, além da proibição expressa de não chegar à janela. A prisão era decretada por escrito, o grafite feito com carvão preto nas paredes pintadas de amarelo-ovo.
Uma dessas surras, e ele já era um rapazote, apanhou porque no meio de um baile, numa casa de família, cuspindo conhaque, pediu de uma vez só a mão e a xiranha da moça com quem dançava. Brigou com a dona da casa, que de repente apareceu à sua frente com uma trave de janela, com o sargento que quis prendê-lo na hora, e passou duas semanas escondido nas moitas, tratando com raiz de mato uma febre sem explicação.
Desses e outros motivos parece que o mais marcante e influente foi mesmo o susto na Serrota. Quando era menino, um papa-figo por pouco não o levou preso dentro de um saco. Tinham ido ele e o irmão menor buscar uma rês no pasto. Espernearam, gritaram tanto que o velho morfético, magro e amarelo da cor de barro, os deixou escapar, zarpando os dois pelo capim alto. Até hoje Geraldo não sabe se foi mais uma brincadeira de aterrorizar criança ou se o infeliz queria mesmo era se curar às custas de seu fígado, pois era do conhecimento de todo mundo que os leprosos se curavam comendo o fígado dos meninos.
Daí por diante andou aéreo, deslocando o pensamento para o prazer que podiam lhe proporcionar as mulheres, porque àquela altura fantasiar era melhor negócio que ficar nas recordações. Imaginava-as nuas, trazendo-as com a mente de muito longe, do passado e do futuro, recebendo-as e delas se despedindo. Queria porque queria se transformar numa mosca varejeira, que gruda na pele, para entrar na alcova das moças virgens, vê-las dormindo, os peitos e o sexo arfando lentamente, embriagado pelos incensos de uma mulher no fulgor da mocidade.
Recentemente não era mais só a angústia a incomodá-lo. Também uma ponta de remorso por conta do caráter que entortava sem ele saber como ou por quê, do mesmo jeito que entortavam a um leve roçar dos dedos as colheres de um certo prestidigitador judeu.
Fora proibido de entrar no “Chantecler” e no “Moulin Rouge”, dois cabarés famosos que ficavam na entrada do Recife Velho, e cujas luzes à noite amarelavam as águas ainda não enxofradas do Capibaribe. Ganhando um salário de professor, pequeno e com atraso de meses, que mal dava para pagar a pensão e a faculdade, adquirira o hábito nefasto de ludibriar as mulheres que faziam a festa daquele largo de soldados, marinheiros e estudantes.
O resto do pouco dinheiro gastava no bar Paratodos, consumido em doses de ¨cuba libre¨, um olho nas brigas de marinheiro, a navalha deslizando na pala, e o outro conferindo as louras de cabelo oxigenado que entravam por uma porta e saíam por outra.
Encerrava a noite num quartinho de tabique, aproveitando a ocasião em que as mulheres se lavavam agachadas na bacia de alumínio, para descer, sem pagar, os cinco andares que rangiam e ameaçavam ruir de velhice. Pulava os degraus de três em três, lépido como um guri, mas não escapava da praga que era sempre a mesma, a maldição ecoando nas escadas: “Vai nascer um câncer na cabeça do pau, filho da puta”. Algumas vezes esquecia no criado-mudo os óculos de grau, e tornava a subir ao quarto, arfante e humilhado, a cara lavada. Dessa vez era o zunido de um tamanco, veloz e certeiro, que ressoava nos seus ouvidos.
Alguma coisa de diferente, porém, e alvissareira, aconteceu na primeira tarde em que Dora, com farda de colegial, passou na porta de seu escritório, onde nenhum cliente havia aparecido desde a data da instalação. Passou, sorriu, e noutras tardes foi deixando sobre a mesa de jacarandá versos de mocinha, banais e sem imaginação.
Tal doçura para um homem deserto de afagos eclipsou a má poesia. Que vantagem levaria um verso, ainda que fosse perfeito e tivesse o impacto da colisão de meteoros – pensava – se comparado à beleza de Dora, a penugem rala entre as sobrancelhas, uma covinha no queixo e o riso largo e despreocupado de quem nunca quis saber da morte?
Dora tinha só dezoito anos quando Geraldo se apaixonou por ela. E como se dá com os apaixonados, ficaram esquecidos ou relegados a segundo plano os temores e problemas que empestavam o seu cotidiano. Tirou os pés do chão, e deixou a cabeça repousar na maciez das nuvens.
A fase turva do amor não o privou, contudo, de alguma lucidez. Viu como eram idiotas aquelas consultas ao doutor Gil Brás, o psiquiatra classificando e dando rótulo à doença, mais parecendo um detetive escondido por trás de um abajur na sala mal iluminada: “Não entendo por que você não melhora”. Para completar o desagrado, uma enxurrada de calmantes e as injeções de “Pacatal” que provocavam nele, na volta de ônibus para casa, um tremor de malária.
Num gesto impulsivo, como era de seu temperamento, quebrou as injeções uma por uma e atirou no quintal a bacia de tranquilizantes, que, por serem amarelos e parecidos com caroços de milho, deram às galinhas a maravilha de um sono de três dias.
Na manhã seguinte levou Dora ao zoológico de Dois Irmãos, onde à época havia pequenas ilhas de mato. Numa delas, com palavras ternas, comuns ao homem somente nos alentos da paixão, a desvirginou sobre uma camada de folhas de eucalipto.
Geraldo, nas alvas do amor, se deu conta de como é bom viver sem tormentos, e lembrou-se da lição de Schopenhauer que lhe repassara dias antes seu colega Brito Rabelo: a felicidade nada mais é que a suspensão da angústia.
Dora, por sua vez, continuou simples como era, vendendo perfumes a domicílio com a mesma graça com que deixava no escritório seus versos de rima gratuita. Mas a sua poesia teve sorte e melhorou. À noite, no silêncio do bairro tranquilo de Casa Amarela, lembrava-se enlevada de Geraldo e do cheiro do eucalipto, e escreveu que naquele dia “as folhas aromatizavam a tarde”.
*O Rapadura Cult, fomentador literário, mais uma vez inovando: a publicação do belíssimo Conto inédito A Cura, enviado gentilmente por Demétrio Diniz, escritor de Alexandria-RN, radicado em Natal.
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