quinta-feira, 31 de julho de 2025
Estâncias
Amor?
Amar? Vozes que ouvi, já não me lembra
onde:
talvez entre grades solenes, num
calcinado
e pungitivo lugar que regamos de fúria,
êxtase,
adoração, temor. Talvez no mínimo
território
acuado entre a espuma e o gnaisse, onde respira
— mas
que assustada! — uma criança apenas. E que presságios
de
seus cabelos se desenrolam! Sim, ouvi de amor, em hora
infinda,
se bem que sepultada na mais rangente areia
que
os pés pisam, pisam, e por sua vez — é lei — desaparecem.
E
ouvi de amar, como de um dom a poucos ofertado; ou de um crime.
De
novo essas vozes, peço-te. Escande-as em tom sóbrio,
ou
senão grita-as à face dos homens; desata os petrificados; aturde
os
caules no ato de crescer; repete: amor, amar.
O
ar se crispa, de ouvi-las; e para além do tempo ressoam, remos
de
ouro batendo a água transfigurada; correntes
tombam.
Em nós ressurge o antigo; o novo; o que de nada
extrai
forma de vida; e não de confiança, de desassossego se nutre.
Eis
que a posse abolida na de hoje se reflete, e confundem-se,
e
quantos desse mal um dia (estão mortos) soluçaram,
habitam
nosso corpo reunido e soluçam conosco.
Carlos Drummond de Andrade, em Novos poemas
O edifício
Chegará
o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios;
naquele dia ficarás fora da lei.
(Miqueias,
VII, 11)
Mais
de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do
edifício que, segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado
número de andares. As especificações técnicas, cálculos e
plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o
catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado
a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos com o tom
reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se
de “vagas experiências de outra escola de concretagem”.
Batida
a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da
Fundação, a que incumbia a direção-geral do empreendimento,
dispensou os técnicos e operários, para, em seguida, recrutar nova
equipe de profissionais e artífices.
1.
A LENDA
Ao
engenheiro responsável, recém-contratado, nada falaram das
finalidades do prédio. Finalidades, aliás, que pouco interessavam a
João Gaspar, orgulhoso como se encontrava de, no início da
carreira, dirigir a construção do maior arranha-céu de que se
tinha notícia.
Ouviu
atentamente as instruções dos conselheiros, cujas barbas brancas,
terminadas em ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertinácia.
Davam-lhe
ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou três normas, que
deveriam ser corretamente observadas. A sua missão não seria
somente exercer funções de natureza técnica. Envolvia toda a
complexidade de um organismo singular. Os menores detalhes do
funcionamento da empresa construtora estariam a seu cargo,
cabendo-lhe proporcionar salários compensadores e constante
assistência ao operariado. Competia-lhe, ainda, evitar quaisquer
motivos de desarmonia entre os empregados. Essa diretriz, conforme
lhe acentuaram, destinava-se a cumprir importante determinação dos
falecidos idealizadores do projeto e anular a lenda corrente de que
sobreviveria irremovível confusão no meio dos obreiros ao se
atingir o octingentésimo andar do edifício e, consequentemente, o
malogro definitivo do empreendimento.
No
decorrer das minuciosas explicações dos dirigentes da Fundação, o
jovem engenheiro conservou-se tranquilo, demonstrando absoluta
confiança em si, e nenhum receio quanto ao êxito das obras. Houve,
todavia, uma hora em que se perturbou ligeiramente, gaguejando uma
frase ambígua. Já terminara a entrevista e ele recolhia os papéis
espalhados pela mesa, quando um dos velhos o advertiu:
— Nesta
construção não há lugar para os pretensiosos. Não pense em
terminá-la, João Gaspar. Você morrerá bem antes disso. Nós que
aqui estamos constituímos o terceiro Conselho da entidade e, como os
anteriores, jamais alimentamos a vaidade de sermos o último.
2.
A ADVERTÊNCIA
A
mesma orientação que recebera dos seus superiores, o engenheiro a
transmitiu aos subordinados imediatos. Nem sequer omitiu a
advertência que o encabulara. E vendo que suas palavras tinham
impressionado bem mais a seus ouvintes do que a ele as do ancião,
sentiu-se plenamente satisfeito.
3.
A COMISSÃO
João
Gaspar era meticuloso e detestava improvisações. Antes de encher-se
a primeira fôrma de concreto, instituiu uma comissão de controle
para fiscalizar o pessoal, organizar tabelas de salários e elaborar
um boletim destinado a registrar as ocorrências do dia.
Essa
medida valeu maior rendimento de trabalho e evitou, por diversas
vezes, dissensões entre os assalariados.
A
fim de estimular a camaradagem entre os que lidavam na construção,
desenvolviam-se aos domingos alegres programas sociais. Devido a esse
e outros fatores, tudo corria tranquilamente, encaminhando-se a obra
para as etapas previstas.
De
cinquenta em cinquenta andares, João Gaspar oferecia uma festa aos
empregados. Fazia um discurso. Envelhecia.
4.
O BAILE
Inquietante
expectativa marcou a aproximação do 800o pavimento. Redobraram-se
os cuidados, triplicou-se o número de membros da Comissão de
Controle, cuja atividade se tornara incessante, superando
dificuldades, aplainando divergências. Deliberadamente, adiou-se o
baile que se realizava ao termo de cada cinquenta pisos concluídos.
Afinal,
dissiparam-se as preocupações. Haviam chegado sem embaraços ao
octingentésimo andar. O acontecimento foi comemorado com uma festa
maior que as precedentes.
Pela
madrugada, porém, o álcool ingerido em demasia e um incidente de
pequena importância provocaram um conflito de incrível violência.
Homens e mulheres, indiscriminadamente, se atracaram com ferocidade,
transformando o salão num amontoado de destroços. Enquanto cadeiras
e garrafas cortavam o ar, o engenheiro, aflito, lutava para acalmar
os ânimos. Não conseguiu. Um objeto pesado atingiu-o na cabeça,
pondo fim a seus esforços conciliatórios. Quando voltou a si, o
corpo ensanguentado e dolorido pelas pancadas e pontapés que
recebera após a queda, sentiu-se vítima de terrível cilada. De
modo inesperado, cumprira-se a antiga predição.
5.
O EQUÍVOCO
Depois
do incidente, João Gaspar trancou-se em casa, recusando-se a receber
os seus mais íntimos colaboradores, para não ouvir deles palavras
de consolo.
Já
que se fazia impossível continuar as obras, desejava, ao menos,
descobrir o erro em que incorrera. Acreditava ter obedecido fielmente
às instruções do Conselho. Se fracassara, a culpa deveria ser
atribuída à omissão de algum detalhe desconhecido da profecia.
A
insistência dos auxiliares venceu sua teimosia e concordou em
atendê-los. Queriam saber por que desanimara, não mais comparecera
ao edifício. Ficara ressentido pela briga?
— Que
adiantaria a minha presença? Não lhes satisfez a minha humilhação?
— Como?
— indagaram. — Aquilo fora uma simples bebedeira. — Estavam
todos envergonhados com o que acontecera e lhe pediam desculpas.
— E
ninguém abandonou o trabalho?
Ante
a resposta negativa, ele se abraçou aos companheiros:
— Daqui
para frente nenhum obstáculo interromperá nossos planos! (Os olhos
permaneciam umedecidos, mas os lábios ostentavam um sorriso de
altivez.)
6.
O RELATÓRIO
Em
ambiente calmo, todos se empenhando nas suas tarefas, mais noventa e
seis andares foram acrescidos ao prédio. As coisas seguiam
perfeitas, a média de trabalho dos assalariados era excelente.
Empolgado
por um delirante contentamento, o engenheiro distribuía
gratificações, desfazia-se em gentilezas com o pessoal, vagava
pelas escadas, debruçava-se nas janelas, dava pulos, enrolava nas
mãos as barbas embranquecidas.
Para
prolongar o sabor do triunfo, que o cansaço começava a solapar,
ocorreu-lhe redigir um circunstanciado relatório aos diretores da
Fundação, contando os pormenores da vitória. Demonstraria também
a impossibilidade de surgirem, no futuro, outras profecias que
pudessem embaraçar o prosseguimento das obras. Ultimado o memorial,
ele se dirigiu à sede do Conselho, lugar em que estivera poucas
vezes e em época bem remota. Em vez dos cumprimentos que julgava
merecer, uma surpresa o aguardava: haviam morrido os últimos
conselheiros e, de acordo com as normas estabelecidas após a
desmoralização da lenda, não se preencheram as vagas abertas.
Ainda
duvidando do que ouvira, o engenheiro indagou ao arquivista — único
auxiliar remanescente do enorme corpo de funcionários da entidade —
se lhe tinham deixado recomendações especiais para a continuação
do prédio.
De
nada sabia, nem mesmo por que estava ali, sem patrões e serviços a
executar.
Ansiosos
por descobrir documentos que os orientassem, atiraram-se à faina de
revolver armários e arquivos. Nada conseguiram. Só encontraram
especificações técnicas e uma frase que, amiúde, aparecia à
margem de livros, relatórios e plantas: “É preciso evitar-se a
confusão. Ela virá ao cabo do octingentésimo pavimento”.
7.
DÚVIDA
Esvaíra-se
a euforia de João Gaspar. Vago e melancólico, retornou ao edifício.
Da última laje, as mãos apoiadas na cintura, teve um momento de
mesquinha grandeza, julgando-se senhor absoluto do monumento que
estava a seus pés. Quem mais poderia ser, desde que o Conselho se
extinguira?!
Fugaz
foi o seu desmedido orgulho. Ao regressar a casa, onde sempre faltara
a diligência de uns dedos femininos, as dúvidas o perseguiam. Por
que legavam a um mero profissional tamanho encargo? Quais os
objetivos dos que tinham idealizado tão absurdo arranha-céu?
As
perguntas iam e vinham, enquanto o edifício se elevava e menores se
faziam as probabilidades de se tornar claro o que nascera misterioso.
Sorrateiro,
o desânimo substituiu nele o primitivo entusiasmo pela obra.
Queixava-se aos amigos do tédio que lhe provocava o infindável
movimento de argamassa, pedra britada, formas de madeira, além da
angústia que sentia, vendo o monótono subir e descer de elevadores.
Quando
a ansiedade ameaçou levá-lo ao colapso, convocou os trabalhadores
para uma reunião. Explicou-lhes, com enfática riqueza de detalhes,
que a dissolução do Conselho obrigava-o a paralisar a construção
do edifício.
— Falta-nos,
agora, um plano diretor. Sem este não vejo razões para se construir
um prédio interminável — concluiu.
Os
operários ouviram tudo com respeitoso silêncio e, em nome deles,
respondeu firme e duro um especialista em concretagem:
— Acatamos
o senhor como chefe, mas as ordens que recebemos partiram de
autoridades superiores e não foram revogadas.
8.
O DESESPERO
João
Gaspar, inutilmente, apelaria para a compreensão dos servidores.
Usava recursos convincentes, numa linguagem branda, porque seus
propósitos eram pacíficos. Igualmente corteses, os empregados
repeliam a ideia de abandonar o trabalho.
— Ouçam-me
— pedia ele, impaciente com a obstinação dos subordinados. — É
inexequível um monstro de ilimitados pavimentos! Seria necessário
que as fundações fossem reforçadas à medida que se aumentasse o
número de andares. Também isso é impraticável.
Apesar
de ouvido sempre com atenção, não convencia a ninguém. E teve que
assumir uma atitude de intransigência, demitindo todo o pessoal.
Os
operários se negaram a aceitar o ato de dispensa. Alegavam a
irrevogabilidade das determinações dos falecidos conselheiros. Por
fim, disseram que iriam trabalhar à noite e aos domingos,
independente de qualquer pagamento adicional.
9.
O ENGANO
A
decisão dos assalariados de aumentar o número de horas de serviço
deu novo alento ao engenheiro, que esperava vê-los vencidos pela
estafa, pois lhes seria impossível manter por muito tempo semelhante
esforço coletivo.
Logo
verificaria seu engano. Além de não apresentarem sinais de cansaço,
para ajudá-los vieram das cidades vizinhas centenas de trabalhadores
que se dispunham a auxiliar gratuitamente os colegas. Vinham
cantando, sobraçando as ferramentas, como se preparados para longa e
alegre campanha.
Pouco
adiantava recusar-lhes a colaboração, eles mesmos escolhiam as
tarefas e as iniciavam com entusiasmo, indiferentes à agressiva
repulsa de João Gaspar.
10.
OS DISCURSOS
Vendo
multiplicar as levas de voluntários, o engenheiro não teve mais
ânimo de enxotá-los. Passou a percorrer, um por um, os andaimes,
exortando-os a abandonar o trabalho. Fazia longos discursos e, muitas
vezes, caía desfalecido de tanto falar.
A
princípio, os empregados se desculpavam, constrangidos por não
ouvirem atentamente as suas palavras. Com o passar dos anos,
habituaram-se a elas e as consideravam peça importante nas
recomendações recebidas pelo engenheiro-chefe antes da dissolução
do Conselho.
Não
raro, entusiasmados com a beleza das imagens do orador, pediam-lhe
que as repetisse. João Gaspar se enfurecia, desmandava-se em
violentos insultos. Mas estes vinham vazados em tão bom estilo, que
ninguém se irritava. E, risonhos, os obreiros retornavam ao serviço,
enquanto o edifício continuava a ganhar altura.
Murilo Rubião, em Obra Completa
Sina
Era
um sujeito grandalhão, desajeitado e com um nome desses que, embora
simples, ninguém decora. Vinha de Campos pra uma casa de cômodos no
Estácio. Temia o Estácio e as histórias de malandragem. Mais do
que tudo tinha medo que descobrissem sua falta de assunto, seu
permanente mal-estar diante das pessoas, seus gestos descontrolados
que derrubavam jarros, derramavam copos, atingiam crianças. Passava
pelas rodas reunidas na porta dos butecos com uma certeza massacrante
da própria inferioridade. Pra ele, aqueles homens de cigarro no
canto da boca sem se queimar, de programa de corrida de cavalos nas
mãos ágeis, dedos sujos de giz de sinuca, bigodes cuidadosamente
aparados, de olhares ávidos e experientes pra bunda das mulheres –
aqueles homens eram heróis. Sentia diante deles a mesma timidez, o
mesmo constrangimento, a mesma dor indecifrável que experimentara em
sua cidade natal, ao ouvir as histórias do Seu Rocha, o ex-pracinha.
Nos
butecos do Estácio todos eram, com certeza, ex-pracinhas. Só ele
ainda não havia lutado sua grande guerra, só ele não tinha nada
pra contar sobre as batalhas, só ele não havia feito as quase
eternas camaradagens.
Muito
pior do que se achar um merda, podem crer, era o terror do apelido.
Porque aqueles caras espertos, cheios de chinfra, mais cedo ou mais
tarde iam botar nele um apelido devastador, asfixiante, mortal.
Seu
pânico o aproximou mais é mais dos recantos escuros dos bares
vazios, onde bebericava uma cerveja, à espreita de alguma sacanagem,
ouvidos atentos às evasivas de duplo sentido, torturado pelos risos
às suas costas.
Um
dia, na sexta cerva, ouviu uma frase sobre futebol:
– Valter
Marciano foi dos nossos primeiros jogadores a brilhar na Itália.
Mancada
é sempre comovente, ainda mais se o sujeito é vascaíno. Surpreso
com a própria coragem, corrigiu o baixinho que chutara pra fora:
– Válter
Marciano foi, de fato, um ídolo. Só que na Espanha. Morreu lá, num
acidente de automóvel.
Foi
olhado com espanto. Um mulato de óculos escuros disse que tava certo
e perguntou se ele lembrava a linha de 56.
– Sabará,
Livinho, Vavá, Válter e Pinga numa das últimas partidas, se não
me engano. Sabará foi substituído por Lierte, com i. Não confundir
com Laerte, que jogava no meio e era, por sua vez, substituído por
Écio. Se não me engano.
Recebeu
as homenagens a que boa memória tem direito: tira um queijinho, essa
eu pago, também aprecia um rabo empinado?
Acabou
convidado pra uma seresta, armação do grande Paulo Amarelo.
Foi
pra casa, tomou banho, botou a roupa da missa. Não podia acreditar.
O Amarelo era um mito. Amigo do Amadeu, Tião da Garagem, Ceceu Rico,
Hélio Barbeiro, Beijo Louco...
Tentou
ficar atrás de uma goiabeira no quintal do pagode, mas foi saudado
com grandes berros de “chega pra cá e junta-te aos bons”. Quase
chorou. Os primeiros copos deram uma força. Acabou cantando aquela,
“Dentro d’alma dolorida trago um riso teu.” A moça de olhos
claros deixou cair o lenço. Um coroa resmungou: “Esse grandão é
dos meus”.
A
noite era uma criança e ele reinava. O baixinho do buteco pediu:
– Conta
aquela defesa do Barbosa!
A
catástrofe. Em plena ponte dos grandes braços pro canto esquerdo da
meta, o safanão na gaiola do curió. O passarinho morto. A
consternação do dono da casa.
Amadeu
tacou-lhe um generoso cacete nas costas:
– Fica
assim não. Isso acontece. Aí, minha gente, tristezas não pagam
dívidas! Passemos à próxima atração! A seguir, ouviremos “Chão
de Estrelas” na voz do nosso Arrasa-Curió.
O
apelido. Para sempre.
Aldir Blanc, em Brasil passado a sujo
A nuvem
Fico
admirado como é que você, morando nesta cidade, consegue escrever
uma semana inteira sem reclamar, sem protestar, sem espinafrar!
E
meu amigo falou de água, telefone, Light em geral, carne, batata,
transporte, custo de vida, buracos na rua, etc., etc., etc.
Meu
amigo está, como dizem as pessoas exageradas, grávido de razões.
Mas que posso fazer? Até que tenho reclamado muito isto e aquilo.
Mas se eu for ficar rezingando todo dia, estou roubado: quem é que
vai aguentar me ler? Acho que o leitor gosta de ver suas queixas no
jornal, mas em termos.
Além
disso, a verdade não está apenas nos buracos das ruas e outras
mazelas. Não é verdade que as amendoeiras neste inverno deram um
show luxuoso de folhas vermelhas voando no ar? E ficaria demasiado
feio eu confessar que há uma jovem gostando de mim? Ah, bem sei que
esses encantamentos de moça por um senhor maduro duram pouco. São
caprichos de certa fase. Mas que importa? Esse carinho me faz bem; eu
o recebo terna e gravemente; sem melancolia, porque sem ilusão. Ele
se irá como veio, leve nuvem solta na brisa, que se tinge um
instante de púrpura sobre as cinzas de meu crepúsculo.
E
olhem só que tipo de frase estou escrevendo! Tome tenência, velho
Braga. Deixe a nuvem, olhe para o chão — e seus tradicionais
buracos.
Rubem Braga, em Ai te ti, Copacabana
Oitavo caderno de Kindzu – Lembranças de Quintino
Despertei
já era muito manhã, Carolinda não estava ali. Fui recolhendo
coisas minhas espalhadas pelo chão. Então vi que Carolinda deixara
cair um colar. Apanhei o enfeite e o guardei para, mais tarde, lhe
devolver.
Saí
do curral, tonteado pela luz cheia do sol. Voltei ao bar para
encontrar Quintino e finalmente lhe pedir que me acompanhasse pelos
matos. No pátio do bar havia um revolvido ajuntamento. Um homem
rebocava o Quintino, carregando-lhe às forças. O magrinho não
resistia: seus passos é que não encontravam as pernas. Tropegava,
tropeçava, tromalhava. O caminho é que escolhia o homem. Afinal,
toda a direcção do embriagado é sempre conveniente. Eu ia reclamar
uma explicação quando um braço me amigou:
— Deixa,
é melhor não se meter.
Só
então reconheci Shetani. Era ele quem carregava Quintino. Desta vez,
o homem estava fardado. Em seus braços, Quintino experimentou umas
palavras, sílabas de saliva. Eu tinha que recuperar Quintino, aquele
bêbado me era precioso.
— O
camarada desculpe mas eu posso cuidar do meu amigo.
Shetani
me olhou, desconfiado. Seu rosto piscou, o nariz fungou. Estaria a
rir?
— Me
ajuda a descarregar este volume, aceitou ele.
Puxei
Quintino pelas axilas, nunca vi sovacos tão vazios. Acarretei
sozinho todo o corpo do embriagado.
— Aguentas
com ele?, perguntou Shetani.
— Isto
nem peso não é.
Foi
quando uma pistola se escancarou contra o meu espanto. Aquela visão
me revolveu as tripas do peito. O antigo combatente puxava ameaça,
em frente dos gerais:
— Vens
comigo e carregas com o cabrão do grosso. Vá, toca-te.
Fui
pela estrada, tchovando Quintino. Eu tinha a mioleira toda numa
trapalhada. Estava numa dessas situações em que nem a água é mole
nem a pedra é dura. Qual seria, afinal, o meu delito? Nos actuais
dias, que motivo necessitam para encaixotarem um vivente? Fomos parar
na administração, de pulsos atados. Quintino permanecia nas brumas,
sem nexo. Soltava frases por atacado:
— Hoje
é domingo, amanhã também.
Franziu
as pálpebras como se receasse que o pensamento lhe fugisse pelos
olhos. Depois, contou as costelas, uma por uma. Cocegava-se,
atrapalhava-se no riso e recomeçava.
— Vinte
e quatro! Tal igual as horas do dia. Já viu, Kindzu: nesse mundo
tudo se conta por igual?
Passava
o tempo, as cordas me iam entrando na carne. Até que o administrador
Estêvão Jonas nos compareceu com sua escolta. Eram vários
responsáveis, todos balalaicados. Olharam-nos em silêncio, como se
em nós se juntassem as culpas de todos os mundiais crimes. Quem
falou foi o Abacar Ruisonho, mansinho:
— Meter
no frigorífico, chefe?
— Nem
penses! Esses gajos têm a mania de congelar. Não quero mais
confusões. Quem sabe que é esse tipo...
E
apontava para mim. Abacar puxou a barriga acima do cinto,
preparando-se para discursar. Mas o administrador ergueu o til das
sobrancelhas e deu ordem, mastigando os maxilares:
— Vão
chamar minha esposa!
Falava
sem movimentar os lábios, tal era sua fúria. Carolinda deu
aparecimento, cabeça baixada. Quando ergueu o rosto, seus olhos me
acusavam, certeiros:
— Sim,
foi este.
Carolinda
apontava para mim. Depois, desviou o olhar e não mais voltou a me
enfrentar. Pesava no ar a imobilidade do silêncio. Me lembrei então
que ainda tinha o colar de Carolinda. Se me revistassem não teria
salvação. O medo me fazia descer por mim abaixo. A mulher do
administrador saiu pelo corredor, escoltada pelos milicianos. Estêvão
Jonas disse:
— Minha
esposa viu-te rasgando dinheiro e atirando as notas no mar.
— Não
é verdade.
Abacar
exibiu as provas: dinheiro falecido, espedaçado, ainda pingando de
molhado. Atiraram com aquela pasta viscosa contra mim.
Apressadamente, Quintino recolheu os bocados e tentou reconstituir as
notas. Contava com duplos dedos, desfiando os números alfabéticos.
Seus olhos, boquiabertos, navegavam em retalhos de riqueza. Estêvão
Jonas ordenou a seus subordinados que o deixassem sozinho connosco.
Ficou calado até que todos saíssem. Só então ele inquiriu:
— Apenas
quero saber uma coisa: comeste a Caro-linda?
Neguei,
veementindo. O administrador já conhecia a versão de Carolinda. A
esposa justificara o seu atraso nocturno. Ela contara que tinha visto
um maço de notas na praia. Vergou-se para o apanhar mas não foi
capaz de se endireitar. Estava presa no dinheiro, sem poder soltar-se
durante horas.
— Conheço
esse xicuembo, não pode ser de alguém daqui. Foste tu que
encomendaste. Mas eu não fico em obscurantismos: isto é acção
política, obra do inimigo, abuso dos símbolos da Nação.
Seguiram-se
ameaças. Na manhã seguinte, iríamos saber quanto custa desafiar o
Poder. Estêvão Jonas saiu, batendo a porta. Quintino, em
convalescença, desabou nos prantos. Tinha bebido tanto que as
lágrimas cheiravam a álcool. Conforme se ranhava ia ganhando mais
sobriedade. Olhei o meu companheiro, senti até pena que lhe passasse
a embriaguez. O mesmo álcool que ontem lhe fizera corajoso, hoje lhe
atirava nas valetas. Chamei-lhe ao presente, não tinha outro momento
para combinar com ele a viagem até ao campo de deslocados onde
estava Euzinha. Eu estava preparado para lhe oferecer vantagens. Nos
dias de hoje quem ajuda o outro só por desinteresse?
— Conduzes-me
pelo mato. Em troca, levo-te até ao barco onde está Farida. Tu
tiras de lá o que quiseres.
Ele
aceitou. Afinal ele também queria fugir. Um fantasma lhe perseguia,
confessou. Um fantasma? Sim, o espírito de seu antigo patrão
colonial.
— Vou-te
contar minha estória, estrangeiro.
— Kindzu,
emendei.
— Kindzu,
aceitou ele. E começou a narrar. Sua estória deve ser lembrada.
Aconteceu
quando Quintino decidiu visitar a velha casa onde trabalhara como
empregado doméstico. Ia ver se ainda sobravam os valiosos bens dos
patrões. Não usaria a palavra roubar. Talvez nacionalizar.
Nacionalizar uns bens a favor do povo original. Entrou na antiga
casa, violando portas e janelas. Enquanto entrava lhe vieram culpas
de quem está abusar de uma campa falecida. Porque ali mesmo, no chão
da cave, tinha sido enterrado Romão Pinto, chefe de família, dono
da casa e seu patrão. Falecera nos conturbados tempos da
Independência, tempos que calamitaram a vida do português. De que
maneira ele morrera? Sobre isso nunca houve acerto. Uns dizem morreu
por castigo dos sangues que apanhou da amante, namoro que teve em
tempo de menstruação. De facto, o homem se tinha viciado em donas
de peles escuras, querendo delas o urgente corpo. Certo era também
que ele, dessa preferência, recolhera mais sabores que dissabores.
Outros dizem que o português falecera ao ver seus campos de algodão
em chamas. Fora ele quem deitara o incêndio na plantação. Se isto
não fica para mim também não fica para mais ninguém, clamara em
frenesim, tocha a arder na mão erguida. Seu coração, contudo, não
aguentara. A visão da plantação em chamas lhe desfeitou o peito, o
colono endureceu antes de mesmo tombar no chão. A morte do português
se mantinha assunto multiversivo, tema de serões e fogueiras. Seja o
que seja, o trás-montanhoso morrera por graça de estranhos poderes.
Quem sabe fora vítima não de uma única mas de diversas mortes?
Uma
dezena de anos depois, descendo à cave com um fósforo aceso entre
os dedos, Quintino ainda sentia o cheiro da plantação incendiada.
Sobre uma mesa, um velho xipefo recebeu a chamazinha do fósforo e
luzinhou por toda a sala. Quintino ajeitou os olhos: tudo estava tão
limpo, tão correcto. Os móveis dormiam em escura sonolência, o
caixão ainda ali estava como uma doença incurável no centro da
cave. Quintino Massua passou a mão sobre a poeira, num gesto
esquecido de empregado de limpeza. De súbito, um barulho lhe gelou o
nervo. Olhou, conquanto nem quisesse ver: o defunto, seu antigo
patrão, se erguia do leito fúnebre. Romão Pinto, filho e neto de
colonos, voltava à velha casa da família depois de mais de uma
década de definitiva ausência. Ficou sentado como se lhe custasse
regressar. Depois, começou de apalpar os pés.
— Os
meus sapatos?
Olhou
em volta, pisco-piscando. Encolheu as pernas, espalhando pragas.
Pelos modos grosseiros se via que, em sua permanência pelos lados da
morte, ele não se encontrara com nenhum deus.
— Sacana
de pretos: gamaram-me os sapatos.
E
dali se pôs a berrafustar. Que um já não pode falecer com os
devidos respeitos, mal estica já lhe estão a rapinar. Enquanto
falava se ia conferindo, certificando-se das vestes, anéis, as
resguardadas partes. Quintino se chegou, cauteloso:
— Eu
nem fui, patrão.
O
antigo criado apontava os pés, como comprova. Estavam descalços,
cobertos só com tinta branca. Agora maneira é essa, patrão,
fazemos como assim, pintamos, disse Quintino. E logo se admirou do
termo que usou: patrão!? Nunca pensou que, em tão breve tempo,
tivesse que outra vez se subordinar.
— Sapatos
não há, patrão, isso é coisa que não se encontra. É por isso
levam, arrancam dos mortos.
O
defunto levantou-se. Esfregou os olhos, bateu com os dedos na madeira
do caixão.
— Andei
anos às marradas a esta merda.
Quintino
sorriu, mais cheio de susto que vontade. Ele sabia: os
recém-falecidos recusam sair deste mundo se não lhes dedicam as
devidas cerimónias. Ele bem que tinha dito à senhora: era bom
despedir do patrão, organizar as cerimónias.
— E
o que ela respondeu, essa cabrita?
— Ela
negou.
— Negou?
Mas negou como?
— Ela
disse o patrão não tinha ido sozinho, o patrão levou companhia que
merecia.
O
branco sorriu, desdenhoso. Afastou-se, abanando a cabeça em mudas
reprovações. Esquecera a ciência de caminhar, demorou a acertar
com as pernas. Quintino olhava o regressado quase com ternura. Aquele
branco andara por escondidos domínios durante quase muitos anos,
vagandeando por nuvens frias, lá onde não se contam nenhuns
serviçais. Quem tratara de seus assuntos, no dia-a-dia de sua morte?
E mais ainda: por que razão voltara? Quintino suspeitava saber: os
recém-mortos têm suas devidas iniciações, devemos deixá-los em
sossego. Eles estão em seus primeiros passos na eternidade. Esses
defuntos estão ainda a aprender a serem mortos. Romão Pinto agora
se equilibrava no fio das tonturas, perdidos os hábitos verticais. O
morto cambalinhava, tropeçando, descalço. Nem Quintino nunca vira
antes os ambos pés de seu patrão. Eles ali estavam, mal acordados,
soletrando o chão. Pés de branco são envergonhados: fora dos
sapatos, parecem mulheres aflitas.
— Raios
te parta, seu filho duma quinhenta, logo havias de ser tu a minha
primeira visão. Diz-me: onde está a minha patroa?
— A
senhora?
— Sim,
Dona Virgínia, minha mulher. Será que morreu, a grande cabra?
— Dona
Viriginha? Não, não morreu. Está bastante vivinha.
— Eu
imaginava, a gaja é de raça.
Romão
soltou uma risada que sacudiu o empregado. Quintino estranhou: talvez
era inveja das amplas vivências de Virgínia. Durante anos, o seu
caixão criara mofo no chão da cave.
Ali
fora enterrado, por despacho de serviço. Na realidade, o cemitério
estava demais cheio de formigas-cadáver. Comem um morto enquanto o
diabo esfrega o olho-zarolho, foi o aviso do padre português. Por
isso lhe enterraram no chão da cave, onde nem os ratos nunca haviam
farejado. A casa ficara adormecida, a viúva saiu para viver noutro
lugar. Assim vazias as casas são sempre muito enormes.
— Quero
sair, quero dar uma volta por aí!
— Não
sai, patrão. Este tempo não é como de antigamente, patrão não
conhece nem um bocadinho de ninguém.
— Não
conheço ninguém, como? Afinal, quem é o actual manda-chuva?
— É
Estêvão Jonas. O patrão não pode conhecer, ele é um de fora.
— Pois
a primeira coisa que vais fazer mal saíres daqui é chamares aqui o
camarada-chefe. Ouviste?
Quintino
acena enquanto o colono, subitamente, se ocupa a remexer a camisa, as
calças. Procurava uma nódoa, vestígio de sangue seco. Vai
reclamando: essa Salima, cabrona, me há-de pagar!
— Tu
sabes, Quintino? Sabes o motivo verdadeiro do meu falecimento? Foi
essa cabra da Salima.
— Fez
o quê, a Salima?
— Eu
é que fiz. Comi a gaja com os sangues.
— Chai,
patrão!
— Mas
vinguei-me, obriguei a cabra a deitar-se com o corno do marido. Ao
menos fomos juntos que lerpámos, ninguém ficou a matabichar a gaja.
— Mas
o marido dela não morreu.
— Não
morreu? Como não morreu?
— Estou
a dizer, o gajo até hoje está vivo.
— Caraças,
não é possível!
Romão
Pinto não queria acreditar. Passou os dedos pelos cabelos, se chegou
à janela. Ficou olhando os avessos do mundo, no triste jeito com que
a liberdade fita os olhos dos prisioneiros. Lembrou seus derradeiros
momentos de vida. Tudo lhe surgia com a nitidez do ontem.
Naquele
dia Romão Pinto saiu, sem notícia, pelas sombrias palhotas. Aspirou
o intenso perfume das goiabeiras, com modos do nariz trincar a
vermelha polpa do fruto. Ficou por baixo da árvore olhando a oficina
de Abdul Remane. Não tardaria que o maometano saísse, levando suas
latas para soldar, no bairro vizinho.
Romão
se impacientou ali, encostado no suave tronco da goiabeira, enervado
pela demora do mecânico:
— Mulato
cornudo, despacha-te!
Abdul
acabava de arrumar suas bagagens. Sobrancelhudo, chamou pela mulher:
— Salima!
Ei-la:
envolta em pano branco, de sabores convidantes. Algumas belezas, em
mulher se tratando, nascem depois da meninice. São essas as mais
luaminosas. Romão Pinto se cismava: um homem em tão magra
solidão não tem direito às redondas morenices? As pretas, Deus me
proteja. Mas as mulatas, essas quem as concebeu? Não fomos nós,
portugueses? Pois então temos direito a petiscar essas lascivas
carnes. E Salima, caraças, que graça desperdiçada nas mãos desse
escarumba!
Por
fim, o mecânico se despachou das vistas. Romão deixou as sombras,
correu para a casa. Entrou sem bater. Nos afazeres dos arrumos,
Salima se estremunhou. Ele rodeou-a por trás, limpou-lhe um óleo no
braço, desses sujos de garagem. Ela desviou o corpo, furtando-se:
— Deixa
ficar esse sujo, Romão. Meu marido confere cada mancha. É ele que
me põe esses óleos para garantir-se.
Os
dois sorriram. Ele garboso, titular. Desabotoou a mulata,
acarinhando-lhe os seios, as volumosas ancas.
— Está
escuro, vamos ligar o gerador.
Ela
que nem pensasse, o barulho do gerador não deixa escutar os barulhos
de fora, ainda vem aí o cornudo do Abdul. O português costura as
mãos no escuro dela e Salima cede num arrepio confuso.
— Romão,
você me prometeu...
— Prometi
o quê?
— Me
levava para...
— Ah,
levo, levo.
Há
quanto tempo duravam os dois, nesse esconde-aonde? Sempre sem grande
namoro, o Romão rumando directo no corpo de Salima. Atirava a mulher
ao ar, pronunciando as jogáveis palavras: cara ou coroa? Qualquer
que fosse o modo dela tombar no colchão ele sempre ganhava a aposta.
Afinal, os dois lados da mulher eram, para ele, o mesmo e único.
Agora,
mergulhados na penumbra da cozinha eles se comemoravam, enroscados,
gatinhosos. Salima se despediu das vestes, açucarando as carnes.
— Romão,
para sua satisfeição, que devo fazer?
Sempre
aquelas muçulmanias, servindo os prazeres do senhor. Nos cumes do
acto de amor, ela interrompia: assim, está bem para si? Nessa tarde,
Romão se serviu, lambuzeiro, no banco da cozinha, ela sentada sobre
suas pernas querendo lhe prestar melhor que sempre. Porém, o
português mal teve tempo de terminar-se: um ruído na porta o
alarmou. Retirou-se às pressas, calças nos joelhos, tropeçando nos
degraus das traseiras. Sossegou quando se viu no atalho, desatando a
rir da sua própria figura. Aproveitou as calças estarem já em
baixo para urinar, dizem que purifica as vias, depois das
consumações. Desnecessitou-se ali, apontando uma árvore, feito um
cão. Deleitou-se, de princípio. Sabia bem aquele abrir de um açude
no deserto! Mas, depois, correndo já as águas há tempos
incontáveis, ele se começou a preocupar. Queria parar, não
conseguia. Litros e litros lhe escapavam, num caudal que jamais
ninguém ajuntara. Já lhe doía o vazadouro, mirradinhas as bolsas e
as funções não haviam maneira de parar.
— Meu
Deus, estou enfeitiçado!
A
cabra me deitou feitiço, não é possível estar-me para aqui a
mijar desta maneira. O português se babava, choraminguante. As
águas escoavam, parecia ter-se aberto o alçapão das nuvens. Ele
implorou, solicitando a Deus. Até que, no auge do desespero, o
derrame se estancou. Romão Pinto, exausto, contemplou as esforçadas
partes. Foi então que a alma se lhe espetou no visto: as cuecas
estavam manchadas de vermelho, quase pingavam.
— A
puta estava com os sangues, raios a partam!
Voltou
para trás, louco das fúrias. Queria castigar a mulata, arrancar-lhe
as vísceras ensanguentadas. Logo-logo, porém, seus passos se
voltearam e o homem aluiu. Ficou ali, sem noção, quis gritar,
chamar alguém. Mas o grito lhe saiu líquido, pastoso. Da boca lhe
escorreu a primeira golfada de sangue.
Quando
retornou a si era já madrugada. Cambalinhando, fez o caminho de
regresso a casa de Salima. A casa ainda não despertara, marido e
mulher dormiam. O português gritou por Salima. Ela veio à janela,
esgrenhada. Com aflição, lhe pediu silêncio. Depois, saiu em
alvoroço, amarrada a um lençol.
— Cala-se,
Romão, ainda acorda o Abdul!
Ele
agarrou nela, sacudiu-a com raiva, fazendo descair o lençol. Sua
boca ainda espumava, uma baba cor da rosa espreitou antes das
palavras:
— Grande
puta: estavas menstruada!
— Eu
não sabia, Romão. Só vi depois.
Ele
nem queria escutar. Vinha à mente era a voz da crença, condenando
aquele que ama uma mulher em estado de impureza. Também o português
punha crédito em tais africanas maldições: nele os sangues
haveriam de escorrer, transbordantes.
— Agora,
vou-te dizer uma coisa: eu, António Romão Pinto, não vou morrer
sozinho.
O
português desferiu ordens: ela devia convidar o marido para os
amores, despertando-o com desejo de ardências. Fosse mulher súbita,
imediata, inadiável.
— Hei-de
fazer depois, Romão…
— Depois,
não! É agora mesmo. Vai que eu fico a ver pela janela.
— Romão,
não faça isso, por favor. Nossos meninos são ainda tão
pequenitos...
— Vai
para dentro e põe-me esse gajo a saltar! Ou eu nunca mais te levo
daqui...
Salima
entrou, lagrimando. No quarto se penteou, passou um perfume,
aprontando-se. Pelo espelho ainda viu Romão, empoleirado na janela.
Não notou, contudo, que os braços do tuga cediam, frouxos, e ele se
poentava, caindo por trás da vidraça.
O
falecido se afastou da janela como se tentasse apartar daquelas
dolorosas memórias. Tinha um ar de quem já não pede nada, de quem
já não quer nenhum recomeço. Quintino sentiu até pena do
português. O homem estava desfeito com a notícia de que, afinal, o
marido de Salima não morrera. Para consolar o homem, Quintino
avançou possíveis explicações. Quem sabe era um falso sangue,
esse que a mulher mostrara? Ele conhecia as manhas das mulheres
quando não querem servir as urgências dos machos. Fingem, chegam a
cortar-se nas virilhas.
— Vai
ver ela lhe drabou, patrão!
Mas
o colono já nem escutava. Debruçado no parapeito parecia aprender
artes de renascer. O rosto pálido se madrugava, recuperado das
memórias da antepassada vida.
— Deixa
lá isso, pá. Agora, vamos lá ao que importa. Ora diz-me cá uma
coisa. Onde é que está Farida?
Os
olhos de Quintino se redondaram, esbugalhões. Farida? Não sabia, a
mulher se deslocalizara. O branco insistiu, Quintino retorceu a voz,
em sonoro garatujo:
— Não
posso falar o nome dessa mulher. Dona Virgínia me proibiu.
— Isso
foi antes de eu morrer. Agora, que mal faz?
— Ninguém
sabe onde ela pára.
Então,
o defunto se despreguiçou, saudoso da morte: Meu Deus, como eu
sonhei com essa Farida, nem sabes como aquele corpinho dela me
consolou. De repente, porém, mudou os tons, passou a proclamar
ofensas, ameaças.
— Se
não confessas, eu carrego-te comigo para os infernos.
O
empregado, aterrorizado, evitou que o patrão lhe tocasse. Olhava
para Romão como o milho olha o pilão. Foi recuando, chocando com as
cadeiras.
— Juro,
patrão. Ninguém sabe. Nem do filho dela também ninguém sabe.
O
filho dela? O que é isso, essa gaja tem um filho? Romão Pinto,
intrigado, rodava em volta do magricelas. Vá, conta lá, pá,
quero saber. E, num salto, segurou as goelas do antigo doméstico.
Quintino subiu no ar, levantou os braços em sinal de rendição,
rogando que Romão o deixasse.
— Patrão,
vou contar tudo, tintins inclusive. A verdade é assim: única quem
sabe é Dona Virginha, sua esposa. Foi ela que acompanhou o caso, eu
só ouvia contar.
— Olha,
Quintino, te peço: vai procurar Dona Virgínia, diz a ela para vir
aqui.
— Chii,
patrão. Custa muito demais para falar com ela.
— E
porquê? Está surda a velha?
— Não
posso explicar, patrão. Mas não se apanha conversa com ela.
O
colono, então, lhe disse: só posso sair daqui pela mão de um vivo.
Me acompanha que te recompensarei.
— Não
posso, patrão.
Então
choveram as ameaças, coisas de estarrecer. Facas e fogos, lumes e
chibatas. Desfaço-te que nem daquela vez que desapareceram os
talheres. Ou pior, que agora com esta passagem pela morte aprendi
maldades que nem lembram ao diabo.
— É
o fantasma do colono que me persegue até hoje.
No
calabouço da administração, Quintino ainda estremecia só de
lembrar as sentenças do português. Acabou de contar a estória e
transpirava por mais poros que os que tinha na pele. Afinal, nós
dois carecíamos de igual urgência de sair dali. Contudo, tínhamos
sido presos para chorar e durar. As cordas apertavam, estávamos a
braços com os braços. A meu lado, Quintino fazia como o mocho que
olha de noite para sonhar de dia. E de olhos abertos deixámos passar
o tempo. Até que, de súbito, um ruído nos fez calar. Alguém se
aproximava, de pés nos bicos. Era Carolinda. Sem falar, ela se
baixou e nos desamarrou. Ficámos assim, ainda presos ao espanto.
Seria armadilha? Fomos saindo, eu e Quintino, em vagaroso desconfio.
Quintino foi ganhando confiança e me receitou pressas para que vos
quero. Mas eu tinha que regressar, voltar ao compartimento onde
ficara Carolinda. Ela se mantinha parada de encosto à parede. Lhe
abri nas mãos o colar que tinha guardado comigo. Abanou a cabeça,
em recusa. Oferecia-me tudo aquilo como recordação? Aceitei, sem
mais.
— Por
que mentiste sobre mim?, lhe perguntei.
— Porque
não queria que fosses.
— Mas
eu não vou embora, Carolinda.
— Não
acredito, isto não é terra de ninguém ficar. Vais partir, tu não
pertences aqui.
— Mas
por que razão me soltas, então?
— Para
que vás para tão longe que pareças impossível. E agora vai-te e
não voltes nunca mais.
Depois,
me empurrou com suavidade. Mas eu resisti, me demorando junto dela.
Assim, de face em riste, ela me surgia exclusivamente única, triste
como pétala depois da flor. Meu peito se encheu. Eu sei que em cada
mulher a gente lembra outra, a que nem há. Mas Carolinda me
entregava essa doce mentira, o impossível cálculo do amor: dois
seres, um e um, somando o infinito. Se aproximou e me acariciou os
braços, ali onde as cordas me doeram. A cintura de suas mãos me
afagavam, em suave arrependimento. Aquele momento confirmava: o
melhor da vida é o que não há-de vir.
Mia Couto, em Terra Sonâmbula
terça-feira, 29 de julho de 2025
No bosque Blackwater
Olha, as árvores
estão a transformar
os seus próprios corpos
em pilares
de luz,
exalam a encorpada
fragrância da canela
e da realização,
os longos cones
das taboas
estão prestes a rebentar, flutuam
por sobre os ombros azuis
dos lagos,
e todo o lago,
não importa qual seja
o seu nome, é
anónimo, agora.
A cada ano,
tudo
o que aprendi
durante a minha vida
leva-me de volta a isto: os fogos
e o negro rio da perda,
que na outra margem
guarda a salvação,
cujo significado
nenhum de nós alguma vez saberá.
Para viver neste mundo
deverás ser capaz
de fazer três coisas:
amar o efeméro;
segurá-lo
contra os teus ossos, sabendo
que a tua própria vida depende disso;
e, quando chegar a hora de o libertar,
deixá-lo ir.
Mary Oliver, em Devotions (versão de Pedro Belo Clara)
O pobre do espaço
O espaço é cheio de buracos: nós, as coisas, os mundos. A perfeição seria o espaço puro, fica ele a pensar com os seus buracos... Mas isso, Sr. Espaço, é uma coisa tão impossível como a poesia pura.
Mário Quintana, em Sapato Florido
Lindaura
Contam que o analista de Bagé não
está muito contente com sua recepcionista Lindaura porque, segundo
diz, “ela é como trigo: lindo de se vê, mas só dá uma vez por
ano”. Mesmo assim, não a substitui porque a Lindaura “é esperta
que nem gringo de venda” e sabe o que fazer em qualquer situação.
Embora goste de dizer que “mulher só serve pra três coisas e pras
outras duas tem diarista”, o analista de Bagé reconhece que deve
até sua vida a Lindaura. Como no caso da prenda de botas.
Pues diz que entrou uma mulher no
consultório pisando mais firme que delegado novo em chineiro. Abriu
a porta num trancaço, parou com as pernas abertas e as mãos na
cintura e gritou:
– Buenas!
O analista de Bagé ficou de pé num
salto de assustar cusco e também gritou, mais grosso ainda:
– Buenas!
Ficaram os dois se estudando em
silêncio. Aí ela levou a mão atrás e tirou uma faca do cinturão.
O analista de Bagé pegou o facão, deu um chute no banquinho e
recuou até a parede. Desafiou:
– Vem que aqui tem homem. E da
fronteira!
Mas a mulher pegou um rolo de fumo de
dentro da bombacha e uma palhinha de trás da orelha. Começou a
picar o fumo, olhando para o analista por baixo das sobrancelhas
grossas.
– Quero me analisá! – gritou.
– Pos se apeie e deite no divã!
Ela olhou para o divã coberto com um
pelego. Depois voltou a encarar o analista. Acabou de enrolar o
cigarro e botou num canto da boca. Disse:
– Não me deito pra homem nenhum.
– Pos de pé eu só analiso cavalo.
Novo silêncio enquanto os dois se
estudavam. Ela apontou para a ponta do palheiro e disse:
– Tem fogo?
– Pra mim mulher que pita, se não é
francesa, é piguancha.
– Francesa eu não sou.
– Já vi pelo sotaque.
– E piguancha é a tua mãe.
Atracaram-se. Rolaram pelo chão. Ela
acabou por cima, com um joelho sobre o peito do analista. Ele
perguntou:
– Como é que tu ficou desse jeito,
tchê?
– Um trauma.
– Pois toma outro.
E acertou um manetaço no lado da
cabeça dela. Ela rolou para baixo do divã.
Levantou com divã e tudo e veio,
agora para liquidar. Foi quando o laço da Lindaura cruzou os ares e
a imobilizou. O analista de Bagé e a Lindaura amarraram a mulher
juntos, mas tiveram que chamar o zelador para colocá-la no divã.
Sobravam trinta minutos para a análise, mas o analista cobrou os
cinquenta, de vingança, porque ainda estava com a paleta dolorida.
Depois que a mulher saiu, ainda
ouvindo os passos das botas dela no corredor, o analista de Bagé,
excitado com a briga, disse para a Lindaura:
– Te deita no divã.
Mas a Lindaura não transigiu:
– Só no Natal.
Luís Fernando Veríssimo, em Histórias do Analista de Bagé
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