quinta-feira, 31 de julho de 2025

Samara Joy | Flor de Lis (Upside Down)

Estâncias

Amor? Amar? Vozes que ouvi, já não me lembra
onde: talvez entre grades solenes, num
calcinado e pungitivo lugar que regamos de fúria,
êxtase, adoração, temor. Talvez no mínimo
território acuado entre a espuma e o gnaisse, onde respira
mas que assustada! — uma criança apenas. E que presságios
de seus cabelos se desenrolam! Sim, ouvi de amor, em hora
infinda, se bem que sepultada na mais rangente areia
que os pés pisam, pisam, e por sua vez — é lei — desaparecem.
E ouvi de amar, como de um dom a poucos ofertado; ou de um crime.

De novo essas vozes, peço-te. Escande-as em tom sóbrio,
ou senão grita-as à face dos homens; desata os petrificados; aturde
os caules no ato de crescer; repete: amor, amar.
O ar se crispa, de ouvi-las; e para além do tempo ressoam, remos
de ouro batendo a água transfigurada; correntes
tombam. Em nós ressurge o antigo; o novo; o que de nada
extrai forma de vida; e não de confiança, de desassossego se nutre.
Eis que a posse abolida na de hoje se reflete, e confundem-se,
e quantos desse mal um dia (estão mortos) soluçaram,
habitam nosso corpo reunido e soluçam conosco.

Carlos Drummond de Andrade, em Novos poemas

Dever

É seu dever deixar o ato ilícito de outro homem onde está.

Marco Aurélio, em Meditações

O edifício

Chegará o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios; naquele dia ficarás fora da lei.
(Miqueias, VII, 11)

Mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado número de andares. As especificações técnicas, cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos com o tom reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de “vagas experiências de outra escola de concretagem”.
Batida a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a que incumbia a direção-geral do empreendimento, dispensou os técnicos e operários, para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices.

1. A LENDA

Ao engenheiro responsável, recém-contratado, nada falaram das finalidades do prédio. Finalidades, aliás, que pouco interessavam a João Gaspar, orgulhoso como se encontrava de, no início da carreira, dirigir a construção do maior arranha-céu de que se tinha notícia.
Ouviu atentamente as instruções dos conselheiros, cujas barbas brancas, terminadas em ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertinácia.
Davam-lhe ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou três normas, que deveriam ser corretamente observadas. A sua missão não seria somente exercer funções de natureza técnica. Envolvia toda a complexidade de um organismo singular. Os menores detalhes do funcionamento da empresa construtora estariam a seu cargo, cabendo-lhe proporcionar salários compensadores e constante assistência ao operariado. Competia-lhe, ainda, evitar quaisquer motivos de desarmonia entre os empregados. Essa diretriz, conforme lhe acentuaram, destinava-se a cumprir importante determinação dos falecidos idealizadores do projeto e anular a lenda corrente de que sobreviveria irremovível confusão no meio dos obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifício e, consequentemente, o malogro definitivo do empreendimento.
No decorrer das minuciosas explicações dos dirigentes da Fundação, o jovem engenheiro conservou-se tranquilo, demonstrando absoluta confiança em si, e nenhum receio quanto ao êxito das obras. Houve, todavia, uma hora em que se perturbou ligeiramente, gaguejando uma frase ambígua. Já terminara a entrevista e ele recolhia os papéis espalhados pela mesa, quando um dos velhos o advertiu:
Nesta construção não há lugar para os pretensiosos. Não pense em terminá-la, João Gaspar. Você morrerá bem antes disso. Nós que aqui estamos constituímos o terceiro Conselho da entidade e, como os anteriores, jamais alimentamos a vaidade de sermos o último.

2. A ADVERTÊNCIA

A mesma orientação que recebera dos seus superiores, o engenheiro a transmitiu aos subordinados imediatos. Nem sequer omitiu a advertência que o encabulara. E vendo que suas palavras tinham impressionado bem mais a seus ouvintes do que a ele as do ancião, sentiu-se plenamente satisfeito.

3. A COMISSÃO

João Gaspar era meticuloso e detestava improvisações. Antes de encher-se a primeira fôrma de concreto, instituiu uma comissão de controle para fiscalizar o pessoal, organizar tabelas de salários e elaborar um boletim destinado a registrar as ocorrências do dia.
Essa medida valeu maior rendimento de trabalho e evitou, por diversas vezes, dissensões entre os assalariados.
A fim de estimular a camaradagem entre os que lidavam na construção, desenvolviam-se aos domingos alegres programas sociais. Devido a esse e outros fatores, tudo corria tranquilamente, encaminhando-se a obra para as etapas previstas.
De cinquenta em cinquenta andares, João Gaspar oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia.

4. O BAILE

Inquietante expectativa marcou a aproximação do 800o pavimento. Redobraram-se os cuidados, triplicou-se o número de membros da Comissão de Controle, cuja atividade se tornara incessante, superando dificuldades, aplainando divergências. Deliberadamente, adiou-se o baile que se realizava ao termo de cada cinquenta pisos concluídos.
Afinal, dissiparam-se as preocupações. Haviam chegado sem embaraços ao octingentésimo andar. O acontecimento foi comemorado com uma festa maior que as precedentes.
Pela madrugada, porém, o álcool ingerido em demasia e um incidente de pequena importância provocaram um conflito de incrível violência. Homens e mulheres, indiscriminadamente, se atracaram com ferocidade, transformando o salão num amontoado de destroços. Enquanto cadeiras e garrafas cortavam o ar, o engenheiro, aflito, lutava para acalmar os ânimos. Não conseguiu. Um objeto pesado atingiu-o na cabeça, pondo fim a seus esforços conciliatórios. Quando voltou a si, o corpo ensanguentado e dolorido pelas pancadas e pontapés que recebera após a queda, sentiu-se vítima de terrível cilada. De modo inesperado, cumprira-se a antiga predição.

5. O EQUÍVOCO

Depois do incidente, João Gaspar trancou-se em casa, recusando-se a receber os seus mais íntimos colaboradores, para não ouvir deles palavras de consolo.
Já que se fazia impossível continuar as obras, desejava, ao menos, descobrir o erro em que incorrera. Acreditava ter obedecido fielmente às instruções do Conselho. Se fracassara, a culpa deveria ser atribuída à omissão de algum detalhe desconhecido da profecia.
A insistência dos auxiliares venceu sua teimosia e concordou em atendê-los. Queriam saber por que desanimara, não mais comparecera ao edifício. Ficara ressentido pela briga?
Que adiantaria a minha presença? Não lhes satisfez a minha humilhação?
Como? — indagaram. — Aquilo fora uma simples bebedeira. — Estavam todos envergonhados com o que acontecera e lhe pediam desculpas.
E ninguém abandonou o trabalho?
Ante a resposta negativa, ele se abraçou aos companheiros:
Daqui para frente nenhum obstáculo interromperá nossos planos! (Os olhos permaneciam umedecidos, mas os lábios ostentavam um sorriso de altivez.)

6. O RELATÓRIO

Em ambiente calmo, todos se empenhando nas suas tarefas, mais noventa e seis andares foram acrescidos ao prédio. As coisas seguiam perfeitas, a média de trabalho dos assalariados era excelente.
Empolgado por um delirante contentamento, o engenheiro distribuía gratificações, desfazia-se em gentilezas com o pessoal, vagava pelas escadas, debruçava-se nas janelas, dava pulos, enrolava nas mãos as barbas embranquecidas.
Para prolongar o sabor do triunfo, que o cansaço começava a solapar, ocorreu-lhe redigir um circunstanciado relatório aos diretores da Fundação, contando os pormenores da vitória. Demonstraria também a impossibilidade de surgirem, no futuro, outras profecias que pudessem embaraçar o prosseguimento das obras. Ultimado o memorial, ele se dirigiu à sede do Conselho, lugar em que estivera poucas vezes e em época bem remota. Em vez dos cumprimentos que julgava merecer, uma surpresa o aguardava: haviam morrido os últimos conselheiros e, de acordo com as normas estabelecidas após a desmoralização da lenda, não se preencheram as vagas abertas.
Ainda duvidando do que ouvira, o engenheiro indagou ao arquivista — único auxiliar remanescente do enorme corpo de funcionários da entidade — se lhe tinham deixado recomendações especiais para a continuação do prédio.
De nada sabia, nem mesmo por que estava ali, sem patrões e serviços a executar.
Ansiosos por descobrir documentos que os orientassem, atiraram-se à faina de revolver armários e arquivos. Nada conseguiram. Só encontraram especificações técnicas e uma frase que, amiúde, aparecia à margem de livros, relatórios e plantas: “É preciso evitar-se a confusão. Ela virá ao cabo do octingentésimo pavimento”.

7. DÚVIDA

Esvaíra-se a euforia de João Gaspar. Vago e melancólico, retornou ao edifício. Da última laje, as mãos apoiadas na cintura, teve um momento de mesquinha grandeza, julgando-se senhor absoluto do monumento que estava a seus pés. Quem mais poderia ser, desde que o Conselho se extinguira?!
Fugaz foi o seu desmedido orgulho. Ao regressar a casa, onde sempre faltara a diligência de uns dedos femininos, as dúvidas o perseguiam. Por que legavam a um mero profissional tamanho encargo? Quais os objetivos dos que tinham idealizado tão absurdo arranha-céu?
As perguntas iam e vinham, enquanto o edifício se elevava e menores se faziam as probabilidades de se tornar claro o que nascera misterioso.
Sorrateiro, o desânimo substituiu nele o primitivo entusiasmo pela obra. Queixava-se aos amigos do tédio que lhe provocava o infindável movimento de argamassa, pedra britada, formas de madeira, além da angústia que sentia, vendo o monótono subir e descer de elevadores.
Quando a ansiedade ameaçou levá-lo ao colapso, convocou os trabalhadores para uma reunião. Explicou-lhes, com enfática riqueza de detalhes, que a dissolução do Conselho obrigava-o a paralisar a construção do edifício.
Falta-nos, agora, um plano diretor. Sem este não vejo razões para se construir um prédio interminável — concluiu.
Os operários ouviram tudo com respeitoso silêncio e, em nome deles, respondeu firme e duro um especialista em concretagem:
Acatamos o senhor como chefe, mas as ordens que recebemos partiram de autoridades superiores e não foram revogadas.

8. O DESESPERO

João Gaspar, inutilmente, apelaria para a compreensão dos servidores. Usava recursos convincentes, numa linguagem branda, porque seus propósitos eram pacíficos. Igualmente corteses, os empregados repeliam a ideia de abandonar o trabalho.
Ouçam-me — pedia ele, impaciente com a obstinação dos subordinados. — É inexequível um monstro de ilimitados pavimentos! Seria necessário que as fundações fossem reforçadas à medida que se aumentasse o número de andares. Também isso é impraticável.
Apesar de ouvido sempre com atenção, não convencia a ninguém. E teve que assumir uma atitude de intransigência, demitindo todo o pessoal.
Os operários se negaram a aceitar o ato de dispensa. Alegavam a irrevogabilidade das determinações dos falecidos conselheiros. Por fim, disseram que iriam trabalhar à noite e aos domingos, independente de qualquer pagamento adicional.

9. O ENGANO

A decisão dos assalariados de aumentar o número de horas de serviço deu novo alento ao engenheiro, que esperava vê-los vencidos pela estafa, pois lhes seria impossível manter por muito tempo semelhante esforço coletivo.
Logo verificaria seu engano. Além de não apresentarem sinais de cansaço, para ajudá-los vieram das cidades vizinhas centenas de trabalhadores que se dispunham a auxiliar gratuitamente os colegas. Vinham cantando, sobraçando as ferramentas, como se preparados para longa e alegre campanha.
Pouco adiantava recusar-lhes a colaboração, eles mesmos escolhiam as tarefas e as iniciavam com entusiasmo, indiferentes à agressiva repulsa de João Gaspar.

10. OS DISCURSOS

Vendo multiplicar as levas de voluntários, o engenheiro não teve mais ânimo de enxotá-los. Passou a percorrer, um por um, os andaimes, exortando-os a abandonar o trabalho. Fazia longos discursos e, muitas vezes, caía desfalecido de tanto falar.
A princípio, os empregados se desculpavam, constrangidos por não ouvirem atentamente as suas palavras. Com o passar dos anos, habituaram-se a elas e as consideravam peça importante nas recomendações recebidas pelo engenheiro-chefe antes da dissolução do Conselho.
Não raro, entusiasmados com a beleza das imagens do orador, pediam-lhe que as repetisse. João Gaspar se enfurecia, desmandava-se em violentos insultos. Mas estes vinham vazados em tão bom estilo, que ninguém se irritava. E, risonhos, os obreiros retornavam ao serviço, enquanto o edifício continuava a ganhar altura.

Murilo Rubião, em Obra Completa

Imortal!

Sina

Era um sujeito grandalhão, desajeitado e com um nome desses que, embora simples, ninguém decora. Vinha de Campos pra uma casa de cômodos no Estácio. Temia o Estácio e as histórias de malandragem. Mais do que tudo tinha medo que descobrissem sua falta de assunto, seu permanente mal-estar diante das pessoas, seus gestos descontrolados que derrubavam jarros, derramavam copos, atingiam crianças. Passava pelas rodas reunidas na porta dos butecos com uma certeza massacrante da própria inferioridade. Pra ele, aqueles homens de cigarro no canto da boca sem se queimar, de programa de corrida de cavalos nas mãos ágeis, dedos sujos de giz de sinuca, bigodes cuidadosamente aparados, de olhares ávidos e experientes pra bunda das mulheres – aqueles homens eram heróis. Sentia diante deles a mesma timidez, o mesmo constrangimento, a mesma dor indecifrável que experimentara em sua cidade natal, ao ouvir as histórias do Seu Rocha, o ex-pracinha.
Nos butecos do Estácio todos eram, com certeza, ex-pracinhas. Só ele ainda não havia lutado sua grande guerra, só ele não tinha nada pra contar sobre as batalhas, só ele não havia feito as quase eternas camaradagens.
Muito pior do que se achar um merda, podem crer, era o terror do apelido. Porque aqueles caras espertos, cheios de chinfra, mais cedo ou mais tarde iam botar nele um apelido devastador, asfixiante, mortal.
Seu pânico o aproximou mais é mais dos recantos escuros dos bares vazios, onde bebericava uma cerveja, à espreita de alguma sacanagem, ouvidos atentos às evasivas de duplo sentido, torturado pelos risos às suas costas.
Um dia, na sexta cerva, ouviu uma frase sobre futebol:
Valter Marciano foi dos nossos primeiros jogadores a brilhar na Itália.
Mancada é sempre comovente, ainda mais se o sujeito é vascaíno. Surpreso com a própria coragem, corrigiu o baixinho que chutara pra fora:
Válter Marciano foi, de fato, um ídolo. Só que na Espanha. Morreu lá, num acidente de automóvel.
Foi olhado com espanto. Um mulato de óculos escuros disse que tava certo e perguntou se ele lembrava a linha de 56.
Sabará, Livinho, Vavá, Válter e Pinga numa das últimas partidas, se não me engano. Sabará foi substituído por Lierte, com i. Não confundir com Laerte, que jogava no meio e era, por sua vez, substituído por Écio. Se não me engano.
Recebeu as homenagens a que boa memória tem direito: tira um queijinho, essa eu pago, também aprecia um rabo empinado?
Acabou convidado pra uma seresta, armação do grande Paulo Amarelo.
Foi pra casa, tomou banho, botou a roupa da missa. Não podia acreditar. O Amarelo era um mito. Amigo do Amadeu, Tião da Garagem, Ceceu Rico, Hélio Barbeiro, Beijo Louco...
Tentou ficar atrás de uma goiabeira no quintal do pagode, mas foi saudado com grandes berros de “chega pra cá e junta-te aos bons”. Quase chorou. Os primeiros copos deram uma força. Acabou cantando aquela, “Dentro d’alma dolorida trago um riso teu.” A moça de olhos claros deixou cair o lenço. Um coroa resmungou: “Esse grandão é dos meus”.
A noite era uma criança e ele reinava. O baixinho do buteco pediu:
Conta aquela defesa do Barbosa!
A catástrofe. Em plena ponte dos grandes braços pro canto esquerdo da meta, o safanão na gaiola do curió. O passarinho morto. A consternação do dono da casa.
Amadeu tacou-lhe um generoso cacete nas costas:
Fica assim não. Isso acontece. Aí, minha gente, tristezas não pagam dívidas! Passemos à próxima atração! A seguir, ouviremos “Chão de Estrelas” na voz do nosso Arrasa-Curió.
O apelido. Para sempre.

Aldir Blanc, em Brasil passado a sujo

A nuvem

Fico admirado como é que você, morando nesta cidade, consegue escrever uma semana inteira sem reclamar, sem protestar, sem espinafrar!
E meu amigo falou de água, telefone, Light em geral, carne, batata, transporte, custo de vida, buracos na rua, etc., etc., etc.
Meu amigo está, como dizem as pessoas exageradas, grávido de razões. Mas que posso fazer? Até que tenho reclamado muito isto e aquilo. Mas se eu for ficar rezingando todo dia, estou roubado: quem é que vai aguentar me ler? Acho que o leitor gosta de ver suas queixas no jornal, mas em termos.
Além disso, a verdade não está apenas nos buracos das ruas e outras mazelas. Não é verdade que as amendoeiras neste inverno deram um show luxuoso de folhas vermelhas voando no ar? E ficaria demasiado feio eu confessar que há uma jovem gostando de mim? Ah, bem sei que esses encantamentos de moça por um senhor maduro duram pouco. São caprichos de certa fase. Mas que importa? Esse carinho me faz bem; eu o recebo terna e gravemente; sem melancolia, porque sem ilusão. Ele se irá como veio, leve nuvem solta na brisa, que se tinge um instante de púrpura sobre as cinzas de meu crepúsculo.
E olhem só que tipo de frase estou escrevendo! Tome tenência, velho Braga. Deixe a nuvem, olhe para o chão — e seus tradicionais buracos.

Rubem Braga, em Ai te ti, Copacabana

Oitavo caderno de Kindzu – Lembranças de Quintino


Despertei já era muito manhã, Carolinda não estava ali. Fui recolhendo coisas minhas espalhadas pelo chão. Então vi que Carolinda deixara cair um colar. Apanhei o enfeite e o guardei para, mais tarde, lhe devolver.
Saí do curral, tonteado pela luz cheia do sol. Voltei ao bar para encontrar Quintino e finalmente lhe pedir que me acompanhasse pelos matos. No pátio do bar havia um revolvido ajuntamento. Um homem rebocava o Quintino, carregando-lhe às forças. O magrinho não resistia: seus passos é que não encontravam as pernas. Tropegava, tropeçava, tromalhava. O caminho é que escolhia o homem. Afinal, toda a direcção do embriagado é sempre conveniente. Eu ia reclamar uma explicação quando um braço me amigou:
Deixa, é melhor não se meter.
Só então reconheci Shetani. Era ele quem carregava Quintino. Desta vez, o homem estava fardado. Em seus braços, Quintino experimentou umas palavras, sílabas de saliva. Eu tinha que recuperar Quintino, aquele bêbado me era precioso.
O camarada desculpe mas eu posso cuidar do meu amigo.
Shetani me olhou, desconfiado. Seu rosto piscou, o nariz fungou. Estaria a rir?
Me ajuda a descarregar este volume, aceitou ele.
Puxei Quintino pelas axilas, nunca vi sovacos tão vazios. Acarretei sozinho todo o corpo do embriagado.
Aguentas com ele?, perguntou Shetani.
Isto nem peso não é.
Foi quando uma pistola se escancarou contra o meu espanto. Aquela visão me revolveu as tripas do peito. O antigo combatente puxava ameaça, em frente dos gerais:
Vens comigo e carregas com o cabrão do grosso. Vá, toca-te.
Fui pela estrada, tchovando Quintino. Eu tinha a mioleira toda numa trapalhada. Estava numa dessas situações em que nem a água é mole nem a pedra é dura. Qual seria, afinal, o meu delito? Nos actuais dias, que motivo necessitam para encaixotarem um vivente? Fomos parar na administração, de pulsos atados. Quintino permanecia nas brumas, sem nexo. Soltava frases por atacado:
Hoje é domingo, amanhã também.
Franziu as pálpebras como se receasse que o pensamento lhe fugisse pelos olhos. Depois, contou as costelas, uma por uma. Cocegava-se, atrapalhava-se no riso e recomeçava.
Vinte e quatro! Tal igual as horas do dia. Já viu, Kindzu: nesse mundo tudo se conta por igual?
Passava o tempo, as cordas me iam entrando na carne. Até que o administrador Estêvão Jonas nos compareceu com sua escolta. Eram vários responsáveis, todos balalaicados. Olharam-nos em silêncio, como se em nós se juntassem as culpas de todos os mundiais crimes. Quem falou foi o Abacar Ruisonho, mansinho:
Meter no frigorífico, chefe?
Nem penses! Esses gajos têm a mania de congelar. Não quero mais confusões. Quem sabe que é esse tipo...
E apontava para mim. Abacar puxou a barriga acima do cinto, preparando-se para discursar. Mas o administrador ergueu o til das sobrancelhas e deu ordem, mastigando os maxilares:
Vão chamar minha esposa!
Falava sem movimentar os lábios, tal era sua fúria. Carolinda deu aparecimento, cabeça baixada. Quando ergueu o rosto, seus olhos me acusavam, certeiros:
Sim, foi este.
Carolinda apontava para mim. Depois, desviou o olhar e não mais voltou a me enfrentar. Pesava no ar a imobilidade do silêncio. Me lembrei então que ainda tinha o colar de Carolinda. Se me revistassem não teria salvação. O medo me fazia descer por mim abaixo. A mulher do administrador saiu pelo corredor, escoltada pelos milicianos. Estêvão Jonas disse:
Minha esposa viu-te rasgando dinheiro e atirando as notas no mar.
Não é verdade.
Abacar exibiu as provas: dinheiro falecido, espedaçado, ainda pingando de molhado. Atiraram com aquela pasta viscosa contra mim. Apressadamente, Quintino recolheu os bocados e tentou reconstituir as notas. Contava com duplos dedos, desfiando os números alfabéticos. Seus olhos, boquiabertos, navegavam em retalhos de riqueza. Estêvão Jonas ordenou a seus subordinados que o deixassem sozinho connosco. Ficou calado até que todos saíssem. Só então ele inquiriu:
Apenas quero saber uma coisa: comeste a Caro-linda?
Neguei, veementindo. O administrador já conhecia a versão de Carolinda. A esposa justificara o seu atraso nocturno. Ela contara que tinha visto um maço de notas na praia. Vergou-se para o apanhar mas não foi capaz de se endireitar. Estava presa no dinheiro, sem poder soltar-se durante horas.
Conheço esse xicuembo, não pode ser de alguém daqui. Foste tu que encomendaste. Mas eu não fico em obscurantismos: isto é acção política, obra do inimigo, abuso dos símbolos da Nação.
Seguiram-se ameaças. Na manhã seguinte, iríamos saber quanto custa desafiar o Poder. Estêvão Jonas saiu, batendo a porta. Quintino, em convalescença, desabou nos prantos. Tinha bebido tanto que as lágrimas cheiravam a álcool. Conforme se ranhava ia ganhando mais sobriedade. Olhei o meu companheiro, senti até pena que lhe passasse a embriaguez. O mesmo álcool que ontem lhe fizera corajoso, hoje lhe atirava nas valetas. Chamei-lhe ao presente, não tinha outro momento para combinar com ele a viagem até ao campo de deslocados onde estava Euzinha. Eu estava preparado para lhe oferecer vantagens. Nos dias de hoje quem ajuda o outro só por desinteresse?
Conduzes-me pelo mato. Em troca, levo-te até ao barco onde está Farida. Tu tiras de lá o que quiseres.
Ele aceitou. Afinal ele também queria fugir. Um fantasma lhe perseguia, confessou. Um fantasma? Sim, o espírito de seu antigo patrão colonial.
Vou-te contar minha estória, estrangeiro.
Kindzu, emendei.
Kindzu, aceitou ele. E começou a narrar. Sua estória deve ser lembrada.
Aconteceu quando Quintino decidiu visitar a velha casa onde trabalhara como empregado doméstico. Ia ver se ainda sobravam os valiosos bens dos patrões. Não usaria a palavra roubar. Talvez nacionalizar. Nacionalizar uns bens a favor do povo original. Entrou na antiga casa, violando portas e janelas. Enquanto entrava lhe vieram culpas de quem está abusar de uma campa falecida. Porque ali mesmo, no chão da cave, tinha sido enterrado Romão Pinto, chefe de família, dono da casa e seu patrão. Falecera nos conturbados tempos da Independência, tempos que calamitaram a vida do português. De que maneira ele morrera? Sobre isso nunca houve acerto. Uns dizem morreu por castigo dos sangues que apanhou da amante, namoro que teve em tempo de menstruação. De facto, o homem se tinha viciado em donas de peles escuras, querendo delas o urgente corpo. Certo era também que ele, dessa preferência, recolhera mais sabores que dissabores. Outros dizem que o português falecera ao ver seus campos de algodão em chamas. Fora ele quem deitara o incêndio na plantação. Se isto não fica para mim também não fica para mais ninguém, clamara em frenesim, tocha a arder na mão erguida. Seu coração, contudo, não aguentara. A visão da plantação em chamas lhe desfeitou o peito, o colono endureceu antes de mesmo tombar no chão. A morte do português se mantinha assunto multiversivo, tema de serões e fogueiras. Seja o que seja, o trás-montanhoso morrera por graça de estranhos poderes. Quem sabe fora vítima não de uma única mas de diversas mortes?
Uma dezena de anos depois, descendo à cave com um fósforo aceso entre os dedos, Quintino ainda sentia o cheiro da plantação incendiada. Sobre uma mesa, um velho xipefo recebeu a chamazinha do fósforo e luzinhou por toda a sala. Quintino ajeitou os olhos: tudo estava tão limpo, tão correcto. Os móveis dormiam em escura sonolência, o caixão ainda ali estava como uma doença incurável no centro da cave. Quintino Massua passou a mão sobre a poeira, num gesto esquecido de empregado de limpeza. De súbito, um barulho lhe gelou o nervo. Olhou, conquanto nem quisesse ver: o defunto, seu antigo patrão, se erguia do leito fúnebre. Romão Pinto, filho e neto de colonos, voltava à velha casa da família depois de mais de uma década de definitiva ausência. Ficou sentado como se lhe custasse regressar. Depois, começou de apalpar os pés.
Os meus sapatos?
Olhou em volta, pisco-piscando. Encolheu as pernas, espalhando pragas. Pelos modos grosseiros se via que, em sua permanência pelos lados da morte, ele não se encontrara com nenhum deus.
Sacana de pretos: gamaram-me os sapatos.
E dali se pôs a berrafustar. Que um já não pode falecer com os devidos respeitos, mal estica já lhe estão a rapinar. Enquanto falava se ia conferindo, certificando-se das vestes, anéis, as resguardadas partes. Quintino se chegou, cauteloso:
Eu nem fui, patrão.
O antigo criado apontava os pés, como comprova. Estavam descalços, cobertos só com tinta branca. Agora maneira é essa, patrão, fazemos como assim, pintamos, disse Quintino. E logo se admirou do termo que usou: patrão!? Nunca pensou que, em tão breve tempo, tivesse que outra vez se subordinar.
Sapatos não há, patrão, isso é coisa que não se encontra. É por isso levam, arrancam dos mortos.
O defunto levantou-se. Esfregou os olhos, bateu com os dedos na madeira do caixão.
Andei anos às marradas a esta merda.
Quintino sorriu, mais cheio de susto que vontade. Ele sabia: os recém-falecidos recusam sair deste mundo se não lhes dedicam as devidas cerimónias. Ele bem que tinha dito à senhora: era bom despedir do patrão, organizar as cerimónias.
E o que ela respondeu, essa cabrita?
Ela negou.
Negou? Mas negou como?
Ela disse o patrão não tinha ido sozinho, o patrão levou companhia que merecia.
O branco sorriu, desdenhoso. Afastou-se, abanando a cabeça em mudas reprovações. Esquecera a ciência de caminhar, demorou a acertar com as pernas. Quintino olhava o regressado quase com ternura. Aquele branco andara por escondidos domínios durante quase muitos anos, vagandeando por nuvens frias, lá onde não se contam nenhuns serviçais. Quem tratara de seus assuntos, no dia-a-dia de sua morte? E mais ainda: por que razão voltara? Quintino suspeitava saber: os recém-mortos têm suas devidas iniciações, devemos deixá-los em sossego. Eles estão em seus primeiros passos na eternidade. Esses defuntos estão ainda a aprender a serem mortos. Romão Pinto agora se equilibrava no fio das tonturas, perdidos os hábitos verticais. O morto cambalinhava, tropeçando, descalço. Nem Quintino nunca vira antes os ambos pés de seu patrão. Eles ali estavam, mal acordados, soletrando o chão. Pés de branco são envergonhados: fora dos sapatos, parecem mulheres aflitas.
Raios te parta, seu filho duma quinhenta, logo havias de ser tu a minha primeira visão. Diz-me: onde está a minha patroa?
A senhora?
Sim, Dona Virgínia, minha mulher. Será que morreu, a grande cabra?
Dona Viriginha? Não, não morreu. Está bastante vivinha.
Eu imaginava, a gaja é de raça.
Romão soltou uma risada que sacudiu o empregado. Quintino estranhou: talvez era inveja das amplas vivências de Virgínia. Durante anos, o seu caixão criara mofo no chão da cave.
Ali fora enterrado, por despacho de serviço. Na realidade, o cemitério estava demais cheio de formigas-cadáver. Comem um morto enquanto o diabo esfrega o olho-zarolho, foi o aviso do padre português. Por isso lhe enterraram no chão da cave, onde nem os ratos nunca haviam farejado. A casa ficara adormecida, a viúva saiu para viver noutro lugar. Assim vazias as casas são sempre muito enormes.
Quero sair, quero dar uma volta por aí!
Não sai, patrão. Este tempo não é como de antigamente, patrão não conhece nem um bocadinho de ninguém.
Não conheço ninguém, como? Afinal, quem é o actual manda-chuva?
É Estêvão Jonas. O patrão não pode conhecer, ele é um de fora.
Pois a primeira coisa que vais fazer mal saíres daqui é chamares aqui o camarada-chefe. Ouviste?
Quintino acena enquanto o colono, subitamente, se ocupa a remexer a camisa, as calças. Procurava uma nódoa, vestígio de sangue seco. Vai reclamando: essa Salima, cabrona, me há-de pagar!
Tu sabes, Quintino? Sabes o motivo verdadeiro do meu falecimento? Foi essa cabra da Salima.
Fez o quê, a Salima?
Eu é que fiz. Comi a gaja com os sangues.
Chai, patrão!
Mas vinguei-me, obriguei a cabra a deitar-se com o corno do marido. Ao menos fomos juntos que lerpámos, ninguém ficou a matabichar a gaja.
Mas o marido dela não morreu.
Não morreu? Como não morreu?
Estou a dizer, o gajo até hoje está vivo.
Caraças, não é possível!
Romão Pinto não queria acreditar. Passou os dedos pelos cabelos, se chegou à janela. Ficou olhando os avessos do mundo, no triste jeito com que a liberdade fita os olhos dos prisioneiros. Lembrou seus derradeiros momentos de vida. Tudo lhe surgia com a nitidez do ontem.
Naquele dia Romão Pinto saiu, sem notícia, pelas sombrias palhotas. Aspirou o intenso perfume das goiabeiras, com modos do nariz trincar a vermelha polpa do fruto. Ficou por baixo da árvore olhando a oficina de Abdul Remane. Não tardaria que o maometano saísse, levando suas latas para soldar, no bairro vizinho.
Romão se impacientou ali, encostado no suave tronco da goiabeira, enervado pela demora do mecânico:
Mulato cornudo, despacha-te!
Abdul acabava de arrumar suas bagagens. Sobrancelhudo, chamou pela mulher:
Salima!
Ei-la: envolta em pano branco, de sabores convidantes. Algumas belezas, em mulher se tratando, nascem depois da meninice. São essas as mais luaminosas. Romão Pinto se cismava: um homem em tão magra solidão não tem direito às redondas morenices? As pretas, Deus me proteja. Mas as mulatas, essas quem as concebeu? Não fomos nós, portugueses? Pois então temos direito a petiscar essas lascivas carnes. E Salima, caraças, que graça desperdiçada nas mãos desse escarumba!
Por fim, o mecânico se despachou das vistas. Romão deixou as sombras, correu para a casa. Entrou sem bater. Nos afazeres dos arrumos, Salima se estremunhou. Ele rodeou-a por trás, limpou-lhe um óleo no braço, desses sujos de garagem. Ela desviou o corpo, furtando-se:
Deixa ficar esse sujo, Romão. Meu marido confere cada mancha. É ele que me põe esses óleos para garantir-se.
Os dois sorriram. Ele garboso, titular. Desabotoou a mulata, acarinhando-lhe os seios, as volumosas ancas.
Está escuro, vamos ligar o gerador.
Ela que nem pensasse, o barulho do gerador não deixa escutar os barulhos de fora, ainda vem aí o cornudo do Abdul. O português costura as mãos no escuro dela e Salima cede num arrepio confuso.
Romão, você me prometeu...
Prometi o quê?
Me levava para...
Ah, levo, levo.
Há quanto tempo duravam os dois, nesse esconde-aonde? Sempre sem grande namoro, o Romão rumando directo no corpo de Salima. Atirava a mulher ao ar, pronunciando as jogáveis palavras: cara ou coroa? Qualquer que fosse o modo dela tombar no colchão ele sempre ganhava a aposta. Afinal, os dois lados da mulher eram, para ele, o mesmo e único.
Agora, mergulhados na penumbra da cozinha eles se comemoravam, enroscados, gatinhosos. Salima se despediu das vestes, açucarando as carnes.
Romão, para sua satisfeição, que devo fazer?
Sempre aquelas muçulmanias, servindo os prazeres do senhor. Nos cumes do acto de amor, ela interrompia: assim, está bem para si? Nessa tarde, Romão se serviu, lambuzeiro, no banco da cozinha, ela sentada sobre suas pernas querendo lhe prestar melhor que sempre. Porém, o português mal teve tempo de terminar-se: um ruído na porta o alarmou. Retirou-se às pressas, calças nos joelhos, tropeçando nos degraus das traseiras. Sossegou quando se viu no atalho, desatando a rir da sua própria figura. Aproveitou as calças estarem já em baixo para urinar, dizem que purifica as vias, depois das consumações. Desnecessitou-se ali, apontando uma árvore, feito um cão. Deleitou-se, de princípio. Sabia bem aquele abrir de um açude no deserto! Mas, depois, correndo já as águas há tempos incontáveis, ele se começou a preocupar. Queria parar, não conseguia. Litros e litros lhe escapavam, num caudal que jamais ninguém ajuntara. Já lhe doía o vazadouro, mirradinhas as bolsas e as funções não haviam maneira de parar.
Meu Deus, estou enfeitiçado!
A cabra me deitou feitiço, não é possível estar-me para aqui a mijar desta maneira. O português se babava, choraminguante. As águas escoavam, parecia ter-se aberto o alçapão das nuvens. Ele implorou, solicitando a Deus. Até que, no auge do desespero, o derrame se estancou. Romão Pinto, exausto, contemplou as esforçadas partes. Foi então que a alma se lhe espetou no visto: as cuecas estavam manchadas de vermelho, quase pingavam.
A puta estava com os sangues, raios a partam!
Voltou para trás, louco das fúrias. Queria castigar a mulata, arrancar-lhe as vísceras ensanguentadas. Logo-logo, porém, seus passos se voltearam e o homem aluiu. Ficou ali, sem noção, quis gritar, chamar alguém. Mas o grito lhe saiu líquido, pastoso. Da boca lhe escorreu a primeira golfada de sangue.
Quando retornou a si era já madrugada. Cambalinhando, fez o caminho de regresso a casa de Salima. A casa ainda não despertara, marido e mulher dormiam. O português gritou por Salima. Ela veio à janela, esgrenhada. Com aflição, lhe pediu silêncio. Depois, saiu em alvoroço, amarrada a um lençol.
Cala-se, Romão, ainda acorda o Abdul!
Ele agarrou nela, sacudiu-a com raiva, fazendo descair o lençol. Sua boca ainda espumava, uma baba cor da rosa espreitou antes das palavras:
Grande puta: estavas menstruada!
Eu não sabia, Romão. Só vi depois.
Ele nem queria escutar. Vinha à mente era a voz da crença, condenando aquele que ama uma mulher em estado de impureza. Também o português punha crédito em tais africanas maldições: nele os sangues haveriam de escorrer, transbordantes.
Agora, vou-te dizer uma coisa: eu, António Romão Pinto, não vou morrer sozinho.
O português desferiu ordens: ela devia convidar o marido para os amores, despertando-o com desejo de ardências. Fosse mulher súbita, imediata, inadiável.
Hei-de fazer depois, Romão…
Depois, não! É agora mesmo. Vai que eu fico a ver pela janela.
Romão, não faça isso, por favor. Nossos meninos são ainda tão pequenitos...
Vai para dentro e põe-me esse gajo a saltar! Ou eu nunca mais te levo daqui...
Salima entrou, lagrimando. No quarto se penteou, passou um perfume, aprontando-se. Pelo espelho ainda viu Romão, empoleirado na janela. Não notou, contudo, que os braços do tuga cediam, frouxos, e ele se poentava, caindo por trás da vidraça.
O falecido se afastou da janela como se tentasse apartar daquelas dolorosas memórias. Tinha um ar de quem já não pede nada, de quem já não quer nenhum recomeço. Quintino sentiu até pena do português. O homem estava desfeito com a notícia de que, afinal, o marido de Salima não morrera. Para consolar o homem, Quintino avançou possíveis explicações. Quem sabe era um falso sangue, esse que a mulher mostrara? Ele conhecia as manhas das mulheres quando não querem servir as urgências dos machos. Fingem, chegam a cortar-se nas virilhas.
Vai ver ela lhe drabou, patrão!
Mas o colono já nem escutava. Debruçado no parapeito parecia aprender artes de renascer. O rosto pálido se madrugava, recuperado das memórias da antepassada vida.
Deixa lá isso, pá. Agora, vamos lá ao que importa. Ora diz-me cá uma coisa. Onde é que está Farida?
Os olhos de Quintino se redondaram, esbugalhões. Farida? Não sabia, a mulher se deslocalizara. O branco insistiu, Quintino retorceu a voz, em sonoro garatujo:
Não posso falar o nome dessa mulher. Dona Virgínia me proibiu.
Isso foi antes de eu morrer. Agora, que mal faz?
Ninguém sabe onde ela pára.
Então, o defunto se despreguiçou, saudoso da morte: Meu Deus, como eu sonhei com essa Farida, nem sabes como aquele corpinho dela me consolou. De repente, porém, mudou os tons, passou a proclamar ofensas, ameaças.
Se não confessas, eu carrego-te comigo para os infernos.
O empregado, aterrorizado, evitou que o patrão lhe tocasse. Olhava para Romão como o milho olha o pilão. Foi recuando, chocando com as cadeiras.
Juro, patrão. Ninguém sabe. Nem do filho dela também ninguém sabe.
O filho dela? O que é isso, essa gaja tem um filho? Romão Pinto, intrigado, rodava em volta do magricelas. Vá, conta lá, pá, quero saber. E, num salto, segurou as goelas do antigo doméstico. Quintino subiu no ar, levantou os braços em sinal de rendição, rogando que Romão o deixasse.
Patrão, vou contar tudo, tintins inclusive. A verdade é assim: única quem sabe é Dona Virginha, sua esposa. Foi ela que acompanhou o caso, eu só ouvia contar.
Olha, Quintino, te peço: vai procurar Dona Virgínia, diz a ela para vir aqui.
Chii, patrão. Custa muito demais para falar com ela.
E porquê? Está surda a velha?
Não posso explicar, patrão. Mas não se apanha conversa com ela.
O colono, então, lhe disse: só posso sair daqui pela mão de um vivo. Me acompanha que te recompensarei.
Não posso, patrão.
Então choveram as ameaças, coisas de estarrecer. Facas e fogos, lumes e chibatas. Desfaço-te que nem daquela vez que desapareceram os talheres. Ou pior, que agora com esta passagem pela morte aprendi maldades que nem lembram ao diabo.
É o fantasma do colono que me persegue até hoje.
No calabouço da administração, Quintino ainda estremecia só de lembrar as sentenças do português. Acabou de contar a estória e transpirava por mais poros que os que tinha na pele. Afinal, nós dois carecíamos de igual urgência de sair dali. Contudo, tínhamos sido presos para chorar e durar. As cordas apertavam, estávamos a braços com os braços. A meu lado, Quintino fazia como o mocho que olha de noite para sonhar de dia. E de olhos abertos deixámos passar o tempo. Até que, de súbito, um ruído nos fez calar. Alguém se aproximava, de pés nos bicos. Era Carolinda. Sem falar, ela se baixou e nos desamarrou. Ficámos assim, ainda presos ao espanto. Seria armadilha? Fomos saindo, eu e Quintino, em vagaroso desconfio. Quintino foi ganhando confiança e me receitou pressas para que vos quero. Mas eu tinha que regressar, voltar ao compartimento onde ficara Carolinda. Ela se mantinha parada de encosto à parede. Lhe abri nas mãos o colar que tinha guardado comigo. Abanou a cabeça, em recusa. Oferecia-me tudo aquilo como recordação? Aceitei, sem mais.
Por que mentiste sobre mim?, lhe perguntei.
Porque não queria que fosses.
Mas eu não vou embora, Carolinda.
Não acredito, isto não é terra de ninguém ficar. Vais partir, tu não pertences aqui.
Mas por que razão me soltas, então?
Para que vás para tão longe que pareças impossível. E agora vai-te e não voltes nunca mais.
Depois, me empurrou com suavidade. Mas eu resisti, me demorando junto dela. Assim, de face em riste, ela me surgia exclusivamente única, triste como pétala depois da flor. Meu peito se encheu. Eu sei que em cada mulher a gente lembra outra, a que nem há. Mas Carolinda me entregava essa doce mentira, o impossível cálculo do amor: dois seres, um e um, somando o infinito. Se aproximou e me acariciou os braços, ali onde as cordas me doeram. A cintura de suas mãos me afagavam, em suave arrependimento. Aquele momento confirmava: o melhor da vida é o que não há-de vir.

Mia Couto, em Terra Sonâmbula

terça-feira, 29 de julho de 2025

Pedro Mariano | De Volta Pro Aconchego

No bosque Blackwater

Olha, as árvores
estão a transformar
os seus próprios corpos
em pilares

de luz,
exalam a encorpada
fragrância da canela
e da realização,
os longos cones
das taboas
estão prestes a rebentar, flutuam
por sobre os ombros azuis

dos lagos,
e todo o lago,
não importa qual seja
o seu nome, é

anónimo, agora.
A cada ano,
tudo
o que aprendi

durante a minha vida
leva-me de volta a isto: os fogos
e o negro rio da perda,
que na outra margem

guarda a salvação,
cujo significado
nenhum de nós alguma vez saberá.
Para viver neste mundo

deverás ser capaz
de fazer três coisas:
amar o efeméro;
segurá-lo

contra os teus ossos, sabendo
que a tua própria vida depende disso;
e, quando chegar a hora de o libertar,
deixá-lo ir.

Mary Oliver, em Devotions (versão de Pedro Belo Clara)

Confiança

Piratas do Tietê, de Laerte

O pobre do espaço

O espaço é cheio de buracos: nós, as coisas, os mundos. A perfeição seria o espaço puro, fica ele a pensar com os seus buracos... Mas isso, Sr. Espaço, é uma coisa tão impossível como a poesia pura.

Mário Quintana, em Sapato Florido

Lindaura


Contam que o analista de Bagé não está muito contente com sua recepcionista Lindaura porque, segundo diz, “ela é como trigo: lindo de se vê, mas só dá uma vez por ano”. Mesmo assim, não a substitui porque a Lindaura “é esperta que nem gringo de venda” e sabe o que fazer em qualquer situação. Embora goste de dizer que “mulher só serve pra três coisas e pras outras duas tem diarista”, o analista de Bagé reconhece que deve até sua vida a Lindaura. Como no caso da prenda de botas.
Pues diz que entrou uma mulher no consultório pisando mais firme que delegado novo em chineiro. Abriu a porta num trancaço, parou com as pernas abertas e as mãos na cintura e gritou:
Buenas!
O analista de Bagé ficou de pé num salto de assustar cusco e também gritou, mais grosso ainda:
Buenas!
Ficaram os dois se estudando em silêncio. Aí ela levou a mão atrás e tirou uma faca do cinturão. O analista de Bagé pegou o facão, deu um chute no banquinho e recuou até a parede. Desafiou:
Vem que aqui tem homem. E da fronteira!
Mas a mulher pegou um rolo de fumo de dentro da bombacha e uma palhinha de trás da orelha. Começou a picar o fumo, olhando para o analista por baixo das sobrancelhas grossas.
Quero me analisá! – gritou.
Pos se apeie e deite no divã!
Ela olhou para o divã coberto com um pelego. Depois voltou a encarar o analista. Acabou de enrolar o cigarro e botou num canto da boca. Disse:
Não me deito pra homem nenhum.
Pos de pé eu só analiso cavalo.
Novo silêncio enquanto os dois se estudavam. Ela apontou para a ponta do palheiro e disse:
Tem fogo?
Pra mim mulher que pita, se não é francesa, é piguancha.
Francesa eu não sou.
Já vi pelo sotaque.
E piguancha é a tua mãe.
Atracaram-se. Rolaram pelo chão. Ela acabou por cima, com um joelho sobre o peito do analista. Ele perguntou:
Como é que tu ficou desse jeito, tchê?
Um trauma.
Pois toma outro.
E acertou um manetaço no lado da cabeça dela. Ela rolou para baixo do divã.
Levantou com divã e tudo e veio, agora para liquidar. Foi quando o laço da Lindaura cruzou os ares e a imobilizou. O analista de Bagé e a Lindaura amarraram a mulher juntos, mas tiveram que chamar o zelador para colocá-la no divã. Sobravam trinta minutos para a análise, mas o analista cobrou os cinquenta, de vingança, porque ainda estava com a paleta dolorida.
Depois que a mulher saiu, ainda ouvindo os passos das botas dela no corredor, o analista de Bagé, excitado com a briga, disse para a Lindaura:
Te deita no divã.
Mas a Lindaura não transigiu:
Só no Natal.

Luís Fernando Veríssimo, em Histórias do Analista de Bagé