domingo, 29 de junho de 2025

Aula

Nosso Profe. de latim, Mestre Aristeu, era magro
e do Piauí. Falou que estava cansado de genitivos
dativos, ablativos e de outras desinências. Gostaria
agora de escrever um livro. Usaria um idioma
de larvas incendiadas. Epa! o profe. falseou-ciciou
um colega. Idioma de larvas incendiadas! Mestre
Aristeu continuou: quisera uma linguagem que
obedecesse a desordem das falas infantis do que
as ordens gramaticais. Desfazer o normal há de
ser uma norma. Pois eu quisera modificar nosso
idioma com as minhas particularidades. Eu queria
só descobrir e não descrever. O imprevisto fosse
mais atraente do que o dejá visto. O desespero
fosse mais atraente do que a esperança. Epa! o
profe. desalterou de novo – outro colega nosso
denunciou. Porque o desespero é sempre o que não
se espera. Verbi gratia: um tropicão na pedra
ou uma sintaxe insólita. O que eu não gosto é
de uma palavra de tanque. Porque as palavras do
tanque são estagnadas, estanques, acostumadas.
E podem até pegar mofo. Quisera um idioma de larvas
incendiadas. Palavras que fossem de fontes e não
de tanques. E um pouco exaltado o nosso profe.
disse: Falo de poesia, meus queridos alunos. Poesia
é o mel das palavras! Eu sou um enxame! Epa!...
Nisso entra o diretor do Colégio que assistira
a aula de fora. Falou: Seo Enxame espere-me no
meu gabinete. O senhor está ensinando bobagens
aos nossos alunos. O nosso mestre foi saindo da
sala, meio rindo a chorar.

Manoel de Barros, em Memórias Inventadas – A segunda infância

Indulgência

Se for capaz, corrija e ensine aqueles que erram. Se não, lembre-se: a indulgência foi atribuída a você para esse propósito. Os deuses também são indulgentes com eles. São gentis a ponto de ajudá-los a obter saúde, riqueza e reputação para certos fins. Ser indulgente também está em seu poder. Diga-me: quem o impede?

Marco Aurélio, em Meditações

Juliana Linhares no Cantaqui por Laces

A flor de vidro

E haverá um dia conhecido do Senhor que não será dia nem noite, e na tarde desse dia aparecerá a luz.
(Zacarias, XIV, 7)

Da flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga. Mas havia a saudade de Marialice, cujos movimentos se insinuavam pelos campos — às vezes verdes, também cinzentos. O sorriso dela brincava na face tosca das mulheres dos colonos, escorria pelo verniz dos móveis, desprendia-se das paredes alvas do casarão. Acompanhava o trem de ferro que ele via passar, todas as tardes, da sede da fazenda. A máquina soltava fagulhas e o apito gritava: Marialice, Marialice, Marialice. A última nota era angustiante.
Marialice!
Foi a velha empregada que gritou e Eronides ficou sem saber se o nome brotara da garganta de Rosária ou do seu pensamento.
Sim, ela vai chegar. Ela vai chegar!
Uma realidade inesperada sacudiu-lhe o corpo com violência. Afobado, colocou uma venda negra na vista inutilizada e passou a navalha no resto do cabelo que lhe rodeava a cabeça.
Lançou-se pela escadaria abaixo, empurrado por uma alegria desvairada. Correu entre aleias de eucaliptos, atingindo a várzea.
Marialice saltou rápida do vagão e abraçou-o demoradamente:
Oh, meu general russo! Como está lindo!
Não envelhecera tanto como ele. Os seus trinta anos, ágeis e lépidos, davam a impressão de vinte e dois — sem vaidade, sem ânsia de juventude.
Antes que chegassem a casa, apertou-a nos braços, beijando-a por longo tempo. Ela não opôs resistência e Eronides compreendeu que Marialice viera para sempre.
Horas depois (as paredes conservavam a umidade dos beijos deles), indagou o que fizera na sua ausência.
Preferiu responder à sua maneira:
Ontem pensei muito em você.

A noite surpreendeu-os sorrindo. Os corpos unidos, quis falar em Dagô, mas se convenceu de que não houvera outros homens. Nem antes nem depois.

As moscas de todas as noites, que sempre velaram a sua insônia, não vieram.

Acordou cedo, vagando ainda nos limites do sonho. Olhou para o lado e, não vendo Marialice, tentou reencetar o sono interrompido. Pelo seu corpo, porém, perpassava uma seiva nova. Jogou-se fora da cama e encontrou, no espelho, os cabelos antigos. Brilhavam-lhe os olhos e a venda negra desaparecera.
Ao abrir a porta, deu com Marialice:
Seu preguiçoso, esqueceu-se do nosso passeio?
Contemplou-a maravilhado, vendo-a jovem e fresca. Dezoito anos rondavam-lhe o corpo esbelto. Agarrou-a com sofreguidão, desejando lembrar-lhe a noite anterior. Silenciou-o a convicção de que doze anos tinham se esvanecido.
O roteiro era antigo, mas algo de novo irrompia pelas suas faces. A manhã mal despontara e o orvalho passava do capim para os seus pés. Os braços dele rodeavam os ombros da namorada e, amiúde, interrompia a caminhada para beijar-lhe os cabelos. Ao se aproximarem da mata — termo de todos os seus passeios — o sol brilhava intenso. Largou-a na orla do cerrado e penetrou no bosque. Exasperada, ela acompanhava-o com dificuldade:
Bruto! Ó bruto! Me espera!
Rindo, sem voltar-se, os ramos arranhando o seu rosto, Eronides desapareceu por entre as árvores. Ouvia, a espaços, os gritos dela:
Tomara que um galho lhe fure os olhos, diabo!

De lá, trouxe-lhe uma flor azul.
Marialice chorava. Aos poucos acalmou-se, aceitou a flor e lhe deu um beijo rápido. Eronides avançou para abraçá-la, mas ela escapuliu, correndo pelo campo afora.
Mais adiante tropeçou e caiu. Ele segurou-a no chão, enquanto Marialice resistia, puxando-lhe os cabelos.
A paz não tardou a retornar, porque neles o amor se nutria da luta e do desespero.

Os passeios sucediam-se. Mudavam o horário e acabavam na mata. Às vezes, pensando ter divisado a flor de vidro no alto de uma árvore, comprimia Marialice nos braços. Ela assustava-se, olhava-o silenciosa, à espera de uma explicação. Contudo, ele guardava para si as razões do seu terror.

O final das férias coincidiu com as últimas chuvas. Debaixo de tremendo aguaceiro, Eronides levou-a à estação.
Quando o trem se pôs em movimento, a presença da flor de vidro revelou-se imediatamente. Os seus olhos se turvaram e um apelo rouco desprendeu-se dos seus lábios.
O lenço branco, sacudido da janela, foi a única resposta. Porém os trilhos, paralelos, sumindo-se ao longe, condenavam-no a irreparável solidão.
Na volta, um galho cegou-lhe a vista.

Murilo Rubião, em Obra Completa

Argumento

O analista de Bagé sustenta que não existe gaúcho homossexual, embora, como diz, “quem não nasceu em Bagé ta se arriscando.” O que existe, segundo o analista, “é quem não sabe se vai ou não vai, como cavalo xucro pra cruz-sanga”. Estes precisam de um “empurrãozito, no más”, na direção certa. Foi o caso do compadre Clarindo.
Pois contam que quando o analista de Bagé estava recém-formado foi chamado para atender um paciente numa estância. Como era freudiano de dormir com o regulamento, sugeriu que levassem o vivente ao seu consultório. Mas neste caso – disse o peão que levou o recado – não seria possível. O paciente não podia saber que ia ser atendido.
Na charrete para a estância, o peão deu mais algumas informações sobre o caso.
É o compadre Clarindo...
O que tem?
Pues não é que deu pra se vestir de prenda?
Na estância, o analista de Bagé foi apresentado pros de casa e pros de perto, seis homens e cinco gurias, e depois perguntou:
E o compadre Clarindo?
Tu acaba de cumprimentar…
Era uma das gurias. O analista de Bagé bem que tinha estranhado os bigodes.
Foi conversar com o dono da estância e o capataz. Os dois elogiaram muito o compadre Clarindo, índio louco de especial, gaúcho tipo exportação, mas que tinha dado para aquelas coisas. Ninguém queria falar nada pra não melindrar o moço. Podia achar até que estavam pensando que ele era veado. Naquela noite, houve uma churrasqueada e um baile pro doutor e foi depois de dançar uma marca com o compadre Clarindo que o analista de Bagé convidou:
Vamos até lá fora, tchê?
Conversaram muito embaixo da figueira e teve uma hora em que os dois desapareceram nuns matos. Quando voltaram, o compadre Clarindo fo i correndo trocar a roupa de prenda pelas bombachas. O analista de Bagé foi cercado. Como conseguira o milagre?
Bueno. Charlamos um pouco. Ele me contou que achava roupa de prenda mui lindo e que seu sonho era usar tranças, tchê. Daí eu disse: “Tem que aguentar a outra parte.” Aí ele perguntou: “Que outra parte?” Fomos até o mato e eu expus meu argumento... Aí ele saiu correndo.
Deve ser um argumento e tanto.
Modéstia à parte.
Hoje o compadre Clarindo está aí, emprenhando até china de fiscal de Receita.
Ainda tem uns hábitos meio estranhos, é verdade. Mas as tranças loiras até que combinam com o bigode preto.

Luís Fernando Veríssimo, em O Analista de Bagé

Misael, o misantropo

Internação, Corrente ou Aposentadoria

No momento em que lhes escrevo, me encontro num estado emocional e psicológico deplorável, quiçá calamitoso. Sei que vocês (nem o governo, aleluia!) não têm nada com isso e minha revelação equivale mais ou menos à que, por exemplo, faria um ator de quinta categoria ou em surto psicótico, explicando à platéia, antes do espetáculo, que sua performance, naquele dia, será inferior à do elenco de um circo falido homiziado num arraial de Cabrobó. As vaias que recebesse seriam mais que merecidas e acredito que também farei jus a vaias (linchamento eu acho um pouco de exagero, embora, na conjuntura em que vivemos, até compreensível, todos andam muito tensos) e penso seriamente em não botar os pés fora de casa neste domingo, nem que seja no interesse de preservar minha mãe de referências desairosas, pela desdita de ter parido um filho como eu.
Estou escrevendo num laptop mesozóico, movido a corda, com uma fonte de energia adicional acionada a querosene e já sob a proteção do Estatuto do Idoso. Tive um pouco de dificuldade em arrumar querosene, mas descolei dois litros numa loja que vendia geladeiras fabricadas no início do século passado. E, ecologicamente consciente quanto ao uso de combustíveis produtores de poluição, também mandei montar um filtro para conter as emanações nocivas exaladas do meu instrumento de trabalho. Havia até escolhido um assunto para ocupar este espaço que hoje envergonhadamente avacalho, mas não consigo abordá-lo, porque, refletindo melhor (sic), devo estar também em surto e não tenho condição de falar sobre coisa nenhuma que não minha patética situação.
Os poucos heróis que persistem em ler-me há anos devem lembrar-se de minhas queixas quanto a computadores. De fato, todo mundo sabe que esses aparelhos frequentemente se entregam a comportamentos exasperantes e que é prudente não ter martelos, marretas ou machados à mão, quando se usa um deles. Mas, na minha profissão, como agora em quase todas, com a possível exceção da de gari, não dá para escapar. E, na verdade, sempre exagerei um pouco, para ironizar os — perdão — computadólatras. Fui dos primeiros escritores brasileiros a usar computador para escrever e posso mesmo dizer que, não por inteligência ou aptidão, mas porque minha burrice alcança o grau dois numa escala que vai crescentemente a dez, a experiência acabou me conferindo uma certa habilidade em seu manejo.
Há algum tempo, meu computador principal funcionava bem, embora obsoleto, o que não quer dizer muito em informática, porque qualquer um deles já é obsoleto ao ser retirado da caixa da embalagem. Quebrava meu galho satisfatoriamente, tanto assim que passei longo tempo sem xingá-lo, nem privadamente nem em público, e somente uma vez quis jogá-lo pela janela, não o tendo feito por receio de machucar ou matar algum passante. Mas, recentemente, ele passou a insistir em apresentar umas falhazinhas levemente aporrinhantes e aí dei o mau passo: resolvi encomendar um novo e atravessei o Rubicão, só que, ao contrário de Júlio César (o imperador, não o jogador, apesar de mais famoso), comecei a tomar uma sova que estou tomando até agora e tudo indica que devo continuar tomando por ainda não sei quanto tempo, quem sabe o resto da vida.
Ele veio com tudo em cima, últimas novidades, dos programas aos componentes. Celebrei sua chegada e, em processo que redundou em humilhação, cometi a imprudência de gabar-me exuberantemente aos amigos. “Agora estou com um Rolls-Royce” era o mínimo que eu dizia, sem saber que o que tinha caído nas minhas mãos equivalia a um Rolex de cinquenta reais, em camelô que não dá desconto. Desde o dia em que ele foi entregue, minha ocupação mudou. Deixei de ser escritor, o que, se pode representar um alívio para a literatura nacional, acarreta a desvantagem de eu não poder mais ganhar a vida e cogitar em pleitear uma vaga na Casa dos Artistas, com base na minha experiência pregressa de cantor de banheiro. Entre muitos outros cretinismos que me afligem, está o cronográfico, de maneira que não sei há quanto tempo dedico uma média de pelo menos dez horas diárias a tentar fazer o diabólico aparelho funcionar, mas deve ser coisa de pelo menos um mês. E com a agravante de que não fomos feitos um para o outro: ele é sádico e eu não sou masoquista. Tentei discutir o relacionamento, mas, como sabemos, isso não dá certo, pois algumas incompatibilidades não podem mesmo ser superadas. Volta e meia me vem a tentação de presenteá-lo a algum desafeto, mas me contenho a tempo, porque ninguém merece vingança tão cruel.
Não farei, Deus me guarde, seus olhos de penico e não vou pormenorizar o que tenho enfrentado, mas o sofrimento já me deve ter rendido alguns séculos, talvez milênios, de redução de estada no Purgatório. Consolo parco agora, mas deverei mudar de opinião assim que transpuser a catraca a que se refere meu amigo Toinho Sabacu, de quem lhes falei na semana passada. Todo dia ouço de alguém que isso vai passar e tudo será resolvido. Sim, com certeza, eis que tudo passa neste mundo, mas acho que eu passo antes. O último diagnóstico técnico que obtive foi que se trata de interferências sobrenaturais. Altamente científico, mas, como não disponho de ninguém do ramo, aceito indicações de rezadeiras, exorcistas, pais-de-santo e similares. Aceito também (vejam como é a vida, nunca pensei que usaria estas palavras) correntes de energia positiva das almas caridosas que se apiedarem. O que não impede a internação numa clínica psiquiátrica que já ocorre a meu alarmado médico, e/ou a aposentadoria definitiva. Ou mesmo adeus, mundo cruel.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

Darl


Ele está inclinado, no meie da gente, sobre o caixão, e duas das oito mãos são suas. Em seu rosto, o sangue perpassa em ondas. E, entre elas, sua carne fica esverdeada, semelhante ao verde pálido, liso e grosso, da erva que uma vaca rumina; rosto sufocado, furioso, dentes à mostra. “levantem!”, diz. “Levantem, condenados do inferno, almas do diabo!” Levanta-o por um lado, tão repentinamente que nós todos saltamos para agarrá-lo e equilibrá-lo antes que ele tombe por completo. Por um instante, o caixão resiste, uma resistência a bem dizer voluntária, como se, dentro dele, o corpo delgado qual vara conservasse freneticamente, a despeito de estar morto, uma espécie de pudor, e procurasse esconder a roupa manchada pelo corpo, coisa que ela não conseguiu evitar. E então, o caixão, erguendo-se de súbito, liberta-se, como se a magreza do corpo houvesse transmitido leveza às tábuas, ou como se, ao ver que a roupa estava quase a ser-lhe arrebatada, ela se precipitasse, de repente, atrás dela, numa inversão apaixonada que brota de seu próprio desejo e necessidade. O rosto de Jewel fica completamente verde e podemos ouvir a respiração silvar nos dentes.
Levamos o caixão pelo corredor, nossos pés rudes e desajeitados no assoalho, mo vendo-se em passos arrastados, passando pela porta.
Aguentem um pouco ai”, diz P;ii, soltando. Volta para cerrar a porta e fechá-la a chave, mas Jewel não pretende esperar.
Vamos”, diz em sua voz sufocante. “Vamos.” Baixamos o caixão, cuidadosamente, pela escada. Avançamos, equilibrando o caixão como se fosse algo de infinitamente precioso, os rostos afastados, respirando através dos dentes para manter as narinas fechadas. Descemos a vereda na direção da encosta.
Melhor esperar um pouco”, diz Cash. “Já disse que assim ele não se equilibra direito. Vamos precisar de outra pessoa naquela colina.” “Então, solte”, diz Jewel. Não quer parar. Cash começa a ficar atrás, esforçando-se por manter o ritmo, respirando penosamente; acaba por se distanciar e Jewel sustenta sozinho toda a parte da frente, de forma que o caixão, inclinando-se à medida que o caminho se inclina, começa a escorregar de minha mão e desliza pelo ar como um trenó sobre neve invisível, abandonando suavemente uma atmosfera na qual sua forma ainda está modelada.
Espere, Jewel”, eu digo, Mas ele não quer esperar. Está agora quase correndo e Cash ficou para trás. Parece-me que a extremidade que eu sustento sozinho não tem peso, como se fosse uma palha na maré furiosa do desespero de Jewel. Eu nem sequer toco o caixão quando, colocando-se de lado, ele o deixa passar à sua frente, balouçante, e depois para o caixão e atira-o na traseira da carroça com o mesmo movimento, e me olha, o rosto cheio de fúria e desespero.
O diabo o leve. O diabo o leve.”

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

sábado, 28 de junho de 2025

Deus

Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte? Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me ajude. Neste mesmo instante estou pedindo que Deus me ajude. Estou precisando. Precisando mais do que a força humana. E estou precisando de minha própria força. Sou forte mas também destrutiva. Autodestrutiva. E quem é autodestrutivo também destrói os outros. Estou ferindo muita gente. E Deus tem que vir a mim, já que eu não tenho ido a Ele. Venha, Deus, venha. Mesmo que eu não mereça, venha. Ou talvez os que menos merecem precisem mais. Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito. E também me dói quando percebo que feri. Mas tantos defeitos tenho. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Dialética

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz

Mas acontece que eu sou triste…

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

Rede Velha | Jorge Aragão

No Rio Clarion (4)

Alguém que amei envelheceu e ficou doente.
Vi as chamas apagarem-se, uma por uma.
Nada podia fazer

a não ser lembrar
que primeiro recebemos
e depois temos de devolver.

Mary Oliver, em Devotions – The Selected Poems of Mary Oliver (versão de Pedro Belo Clara)

― São eles, Riobaldo, os hermógenes!


[...]

A verdade que com Diadorim eu ia, ambos e todos. Além de que Zé Bebelo comandava. ― Ao que vamos, vamos, meu filho, Professor: arrumar esses bodes na barranca do rio, e impor ao Hermógenes o combate... ― Zé Bebelo preluzia, comedindo pompa com sua grande cabeça. Assim de loguinho não aprovei, então ele imaginou que eu estava descrendo. ― Agora coage tua cisma, que eu estou senhor dos meus projetos. Tudo já pensei e repensei, guardo dentro daqui o resumo bem traçado! ― e ele pontoava com dedo na testa. Acreditar eu acreditasse, não duvidei. O que eu podia não saber era se eu mesmo estava em ocasiões de boa-sorte.
A ser, porque, numa volta do Ribeirão-do-Galho-da-Vida, a gente tinha topado com turma de inimigos, retornados para lá por espiação. Aí foi curto fogo, mas eu levei uma bala, de raspaz, na carne do braço, perdi muito sangue. Raymundo Lé banhou com casca de angico, na hora melhorei; Diadorim amarrou bem, com pano duma camisa rasgada. Apreciei a delicadeza dele. Atual, todos prestaram em mim amizade de atenção, aquilo vinha a ser até um consolo. Só que, depois de dois dias, o braço me doía inteiro e inchava, sei que a inchação me cansasse muito, sempre eu queria esbarrar pra água beber. ― Se eu tiver de atirar, então como é que faço? Não posso... ― era outro meu receio. Admirei, porque o José Félix também tinha tido ferimento, na côxa e na perna, mas a natureza dele era limpa, o ofendido secava por si, nem parecendo ser. Assim a primeira vez que me sucedia um a-mal, isso me perturbasse. O que me sofria até nas margens do peito, e nos dedos da mão, não me concedendo movimentos. Muito temi por meu corpo. Ah, minha Otacília ― eu gemi em mim ― Pode que nunca mais você me veja, e então nem viúva minha você não vai ser... Uns recomendavam arnica-do-campo, outros aconselhavam emplastro de bálsamo, com isso rente se sarava. Aí Raymundo Lé garantiu cura com erva-boa. Mas onde era que erva-boa se ia achar?
A Fazenda dos Tucanos chegamos, lá esbarramos ― é na beira da Lagoa Raposa, passada a Vereda do Enxú. Visitamos o fazendão vazio, não tinha almaviva de se ver. E do Rio-do-Chico longe não se estava. Assim então por que era que não se avançar logo, às duras marchas, para atacar? ― Sei de mim, sei... ― Zé Bebelo menos disse, sem explicação. Desconheci. Cacei um catre, cama-de-vento, num quarto meio escuro; com coisa nenhuma não me importei. ― Retém as forças, Riobaldo. Vou campear o remédio, nesses matos... ― Diadorim falou. A gente nos Tucanos ia falhar dois dias, ali ficamos comendo palmito e secando em sol a carne de dois bois.
No primeiro dia, de tardinha, apareceu um boiadeiro, que com seus camaradas viajando.Vinham de Campo-Capão-Redondo, em caminhada para Morrinhos. Por que tinham riscado aquela grande volta? ― O senhor dá paz à gente, Chefe? ― o boiadeiro perguntou. ― Dou paz, damos, amigos... ― Zé Bebelo respondeu. A quieto, o boiadeiro então achou que devia de as novidades relatar. Que se estava em meio de perigos. Sim. Os soldados! ― Os que soldados, esses, mano velho? Soldadesca pronta, do Governo, mais de uns cinquenta. Assim onde era que estavam? ― Ao que estão em São Francisco e em Vila Risonha, e mais outros deles vão vindo chegando, Chefe; é o que eu ouvi dizer... Zé Bebelo, escutando, redondamente. Só quis mais saber. Se isso, se aquilo. Se o boiadeiro sabia o nome do Promotor de Vila Risonha, e do Juiz de Direito, do Delegado, do Coletor, do Vigário. O do Oficial comandante da tropa, o boiadeiro não acertava dizer. Aquele boiadeiro era homem sério, com palavra merecida e vontade de estar bem com todos. Tinha uma garrafa de vinho depurativo na bagagem, me presenteou com um gole, me fez bem. Pousou lá, no outro dia se foram, muito cedo.
Nesse entremear, eu senti meu braço melhor, e estive mais disposto. Andei andando, vi aquela fazenda. Essa era enorme ― o corredor de muitos grandes passos. Tinha as senzalas, na raia do pátio de dentro, e, na do de fora, em redor, o engenho, a casa-dos-arreios, muitas moradas de agregados e os depósitos; esse pátio de fora sendo largo, lajeado, e com um cruzeiro bem no meio. Mas o capim crescia regular, enfeite de abandono. Não de todo. Pois tinham desamparado um gato, ali esquecido, o qual veio para perto do Jacaré cozinheiro, suplicar comida. Até por dentro do eirado, mansejavam uns bois e vacas, gado reboleiro. Aí João Vaqueiro viu um berrante bom, pendurado na parede da sala-grande; pegou nele, chegou na varanda, e tocou! as reses entendiam, uma ou outra respondendo, e entraram no curral, para a beira dos cochos, na esperança de sal. ― Não faz mês que o povo daqui aqui ainda estava... ― João Vaqueiro declarou. E era verdade, com efeito, pois na despensa muita coisa se encontrando aproveitável. Nos Tucanos, valia a pena. Os dois dias ficaram três, que tão depressa passaram.
Madrugada, no em que se ia partir dalí, eu acordei ainda com o escuro, no amiudar. Só assim acordei, por um rumor, seria o Simião, que estava dormindo no mesmo cômodo e tacteando se levantava. Mas me chamou. ― A gente vai pegar a cavalhada. Vamos? ― ele disse. Não gostei. ― Estou enfermo. Então vou?! Quem é que rala a minha mandioca? ― repontei, áspero. Virei para o canto; assim eu estava apreciando aquele catre de couro. O Simião decerto ia, mais o Fafafa e Doristino, estavam bons para o orvalho dos pastos. Diadorim, que dormia num colchão, encostado na outra banda, já tinha se levantado antes e desaparecido do quarto. Ainda persisti numa madorna. Aquela moradia hospedava tanto ― assim sem donos ― só para nós. Aquele mundo de fazenda, sumido nos sussurros, os trastes grandes, o conforto das arcas de roupa, a cal nas paredes idosas, o bolor. Aí o que pasmava era a paz. Pensei por que seria tudo alheio demais: um sujo velho respeitável, e a picumã nos altos. Pensei bobagens. Até que escutei assoviação e gritos, tropear de cavalaria. Ah, os cavalos na madrugada, os cavalos!... ― de repente me lembrei, antiquíssimo, aquilo eu carecia de rever. Afóito, corri, compareci numa janela ― era o dia clareando, as barras quebradas. O pessoal chegava com os cavalos. Os cavalos enchiam o curralão, prazentes. Respirar é que era bom, tomar todos os cheiros. Respirar a alma daqueles campos e lugares. E deram um tiro.
Deram um tiro, de rifle, mais longe. O que eu soube. Sempre sei quando um tiro é tiro ― isto é ― quando outros vão ser. Deram muitos tiros. Apertei minha correia na cintura. Apertei minha correia na cintura, o seguinte emendando: que nem sei como foi. Antes de saber o que foi, me fiz nas minhas armas. O que eu tinha era fome. O que eu tinha era fome, e já estava embalado, aprontado.
As tantas o senhor assistisse àquilo: uma confusão sem confusão. Saí da janela, um homem esbarrou em mim, em carreira, outros bramaram. Outros? Só Zé Bebelo ― as ordens, de sobre-voz. Aonde, o que? Todos eram mais ligeiros do que eu? Mas ouvi: ― ...Mataram o Simião... Simião? Perguntei: ― E o Doristino? ― Aã? Homem, não sei... ― alguém me respondendo. ― Mataram o Simião e o Aduvaldo... E eu ralhei: ― Basta! Mas, sobre o instante, virei: ― Ah, e o Fafafa? O que ouvi: ― Fafafa, não. Fafafa está é matando!... Assim era, real, verdadeiramente de repente, caído como chuva: o rasgo de guerra, inimigos terríveis investindo. ― São eles, Riobaldo, os hermógenes! ― Diadorim aparecido ali, em minha frente, isto falou. Atiraram um horror, duma vez, tiros e tiros que estavam contra nós desfechando. Atiravam nas construções da casa. Diadorim sacripante se riu, encolheu um ombro só. Para ele olhei, o tanto, o tanto, até ele anoitecer em meus olhos. Eu não era eu. Respirei os pesos. Agora, agora, estamos perdidos sem socôrro... ― inventei na mente. E raciocinei a velocidade disto! Ser pego, na tocaia, é diverso de tudo, e é tolo... Assim enquanto, eu escutando, na folha da orêlha, as minúcias recontadas! as passadas dos companheiros, no corredor; o assoviar e o dar das balas ― que nem um saco de bagos de milho despejado. Feito cuspissem ― o pôr e pôr! Senti como que em mim as balas que vinham estragar aquela morada alheia de fazenda. Medo nem tive, não deu para ter ― foi outra noção, diferente. Me salvei por um espetar de pensamento! que Diadorim, cenho franzindo, fosse mandar eu ter coragem! Ele nem disse. Mas eu me inteirei, ligeiro demais, num só destorcer. ― Eh, pois vamos! E a hora! ― eu declarei, pus a mão no ombro dele. Respirei depressa demais. Aquele me apatetar ― saiba o senhor ― não deve de ter durado nem os menos minutos. No átimo, supri a claridade completa de ideia, o sangue-frio maior, essas comuns tranquilidades. E, por aí, eu sabia mesmo exato! a gente já estava debaixo de cerco.
Achei especial o jeito de João Concliz vir, ansiado cauteloso. Ação em que qualquer um anda ― nessas semelhantes ocasiões ― só encostado nas paredes. ― Você fica aqui, mais você, e você... Você dessa banda... Você ali, você-aí acolá... ― arrumação ele ordenava. ― Riobaldo, Tatarana! tu toma conta desta janela... Daqui não sai, nem relaxa, por via nenhuma... Arredado, lá embaixo avistei Marcelino Pampa indo para as senzalas, com uns cinco ou seis companheiros. Com outros, Freitas Macho corria para a tulha; e para o engenho uns junto com Jõe Bexiguento dito Alparcatas. Meus peitos batendo tresdobro forte, eu dividido naquela alarida. A grave escorei meu rifle, limpo, arma minha, amásia. Ainda reconheci o Dimas Dóido e o Acauã, deitados atrás do cruzeiro do pátio. Um daqueles urucuianos apareceu, mais outro, traziam balaio grande, com algodão em rama. Mais homens, com sacos de sabugos; foram buscar outros sacos, carregavam um caixote também. Tudo eles estavam transportando, por entranqueirar o pátio de fora: tábuas, tamboretes, cangalhas e arreios, uma mesa de carapina retombada. Arranjos de guerra ― esses são engenhados sempre com uma graça variada, diversa dos aspectos de trabalho de paz ― isto vi; o senhor vê: homens e homens repulam no afã tão unidamente, sujeitos maneiros, feito o meigo do demo assoprasse neles, ou até mesmo os espíritos! Suspirei, de bestagem. Ao menos alguém fungou e me cotucou, era o Preto Mangaba, mandado guarnecer ali, comigo junto. Preto Mangaba me oferecia dum pão de doce-de-burití, repartia, amistoso. Eu então me alembrei de que estava com fome. Mas Quim Queiroz trazia mais munição, ele ajudado por alguns; arrastavam um couro, o couro esse cheio repleto de munição, arrastavam no assoalho do corredor. Da janela da outra banda, pus o olhar, espiei o desdém do mundo, distâncias. Abalavam fogo contra a gente, outra vez, contra o espaço da casa. Ixe de inimigo que não se avistava. Somente eu queria saber era se aguentava manejar, como era que estava sentindo meu braço. Aí ergui mão para coçar minha testa, aí me cismei: e fiz, com todo o respeito, o pelo-sinal. Sei que o cristão não se concerta pela má vida levável, mas sim porém sucinto pela boa morte ― ao que a morte é o sobrevir de Deus, entornadamente.
Atirei. Atiravam.
Isso não é isto?
Nonada.
[…]

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

Calvin e Haroldo

Diário de Bernardo Soares

33.

Nos primeiros dias do outono subitamente entrado, quando o escurecer toma uma evidência de qualquer coisa prematura, e parece que tardámos muito no que fazemos de dia, gozo, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta antecipação de não trabalhar que a própria sombra traz consigo, por isso que é noite e a noite é sono, lares, livramento. Quando as luzes se acendem no escritório amplo que deixa de ser escuro, e fazemos serão sem que cessássemos de trabalhar de dia, sinto um conforto absurdo como uma lembrança de outrem, e estou sossegado com o que escrevo como se estivesse lendo até sentir que irei dormir.
Somos todos escravos de circunstâncias externas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café de viela; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abrigamo-nos mal na casa sem portas de nós mesmos; um chegar da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque que se abra lento, a consciência íntima de dever-se repousar.
Mas com isso o trabalho não se atrasa: anima-se. Já não trabalhamos; recreamo-nos com o assunto a que estamos condenados. E, de repente, pela folha vasta e pautada do meu destino numerador, a casa velha das tias antigas alberga, fechada contra o mundo, o chá das dez horas sonolentas, e o candeeiro de petróleo da minha infância perdida brilhando somente sobre a mesa de linho obscurece-me, com a luz, a visão do Moreira, iluminado a uma eletricidade negra infinitos para além de mim. Trazem o chá — é a criada mais velha que as tias que o traz com os restos do sono e o mau humor paciente da ternura da velha vassalagem — e eu escrevo sem errar uma verba ou uma soma através de todo o meu passado morto. Reabsorvo-me, perco-me em mim, esqueço-me a noites longínquas, impolutas de dever e de mundo, virgens de mistério e de futuro.
E tão suave é a sensação que me alheia do débito e do crédito que, se acaso uma pergunta me é feita, respondo suavemente, como se tivesse o meu ser oco, como se não fosse mais que a máquina de escrever que trago comigo, portátil de mim mesmo aberto. Não me choca a interrupção dos meus sonhos: de tão suaves que são, continuo sonhando-os por detrás de falar, escrever, responder, conversar até. E através de tudo o chá perdido finda, e o escritório vai fechar... Ergo do livro, que cerro lentamente, olhos cansados do choro que não tiveram, e, numa mistura de sensações, sofro que ao fechar o escritório se me feche o sonho também; que no gesto da mão com que cerro o livro encubra o passado irreparável; que vá para a cama da vida sem sono, sem companhia nem sossego, no fluxo e refluxo da minha consciência misturada, como duas marés na noite negra, no fim dos destinos da saudade e da desolação.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

Quinto capítulo – O fazedor de rios


Muidinga pousou os cadernos, pensageiro. A morte do velho Siqueleto o seguia, em estado de dúvida. Não era o puro falecimento do homem que lhe pesava. Não nos vamos habituando mesmo ao nosso próprio desfecho? A gente vai chegando à morte como um rio desencorpa no mar: uma parte está nascendo e, simultânea, a outra já se assombra no sem-fim. Contudo, no falecimento de Siqueleto havia um espinho excrescente. Com ele todas as aldeias morriam. Os antepassados ficavam órfãos da terra, os vivos deixavam de ter lugar para eternizar as tradições. Não era apenas um homem mas todo um mundo que desaparecia.
Tuahir parecia alheio a estas tristezas. Estavam ambos sentados na sombra de uma massaleira. Um vento soprava e os frutos se embatiam, em múltiplos batuques. Uma vez mais, a paisagem mudara seus tons e tamanhos. O arvoredo era mais baixo embora mais cheio. A humidade crescia, devia haver uma aguinha a correr perto. Tinham saído do autocarro na madrugada desse dia mas andaram apenas em círculos para não se afastarem muito da sua moradia. O velho fez sinal para retomarem caminho. Seguia à frente, suave como ave. Era seu jeito de calcorrear, pés matreiros, felinamente. Dessa vez, porém, ele se dispunha com boa qualidade, lembrando seus antigos namoros.
Se um dia se casar-se, Muidinga, escolha mulher feiona, dessas que os outros nunca invejam.
Nem que fizesse como Rafaelão, seu primo familiar, que escolheu a moça mais bela e, depois, lhe foi pondo defeito por cima de defeito. Um dia lhe riscava o rosto, outro lhe cortava os cabelos, outro ainda lhe queimava a pele. A pobre mulher era de divulgar sustos.
Deus, tanta maldade!
É, a mulher lhe dava trabalhos muito diários.
Súbitos ruídos os interrompem, mais diante. Parecem vozear de gente, nas traseiras de um pequenito monte. Sobem, com cuidado. Era um homem que, do outro lado da encosta, abria um imenso buraco, facholando com afinco. A cova era tão funda e comprida que parecia que a intenção dele era partir o mundo em dupla metade.
Gritam, pedindo-lhe atenção. Do fundo do buraco o desconhecido faz sinais com a mão, mostrando que deveriam esperar. Vai subindo com vagares, demorado como se fosse cobra procurando os pés. Ao chegar perto, se afina e, sem mais nem porquê, corre para Tuahir. Se abraçam, amistosos. Muidinga olha, sem compreensão.
Este é Nhamataca. Trabalhámos juntos, no tempo colonial.
Se cumprimentam rodando as mãos sobre os polegares, à maneira da terra. Os dois velhos amigos se sentam, fiando conversa, recordando os tempos.
Sabe, Muidinga? Nós dois éramos empregados do mesmo patrão.
Cada um puxa a sua lembrança, em suave escorrer, rindo mesmo dos mais tristes momentos. O miúdo lhes chama ao presente. Quer saber o que animava Nhamataca, covando assim.
Estou a fazer um rio, responde o outro.
Riem-se, o rapaz e Tuahir. Mas o homem insiste, no sério. Sim, por aquele leito fundo haveria de cursar um rio, fluviando até ao infinito mar. As águas haveriam de nutrir as muitas sedes, confeitar peixes e terras. Por ali viajariam esperanças, incumpridos sonhos. E seria o parto da terra, do lugar onde os homens guardariam, de novo, suas vidas.
Estava tão seguro que começara por escavar no chão da própria casa. Ruíram as paredes, desabou-se o tecto. Os seus se retiraram em dúvida da sua sanidade. Idos os próximos, irados os distantes. O sujeito desafiava os deuses que aprontaram o mundo para os viventes dele só se servirem, sem ousarem mudar a sua obra. Mas Nhamataca não desistiu, covando no dia a noite. Foi seguindo, serpenteando entre vales e colinas, suas mãos deitando e renovando mil vezes as sangradas e calejadas peles. E agora, sentado na ribanceira, guarda com vaidade a sua construção. Aponta o fundo:
Vejam: já esponta um fioziozito de água.
Tal aguinha nem se via. Havia, quando muito, um suor na areia do fundo. Mas os visitantes não contrariam.
E nome que ele vai ter?
Nome que dera ao rio: Mãe-água. Porque o rio tinha vocação para se tornar doce, arrastada criatura. Nunca subiria em fúrias, nunca se deixaria apagar no chão. Suas águas serviriam de fronteira para a guerra. Homem ou barco carregando arma iriam ao fundo, sem regresso. A morte ficaria confinada ao outro lado. O rio limparia a terra, cariciando suas feridas.
Você, Muidinga, não se admire. Afinal, Nhamataca cumpre destino igual ao pai dele.
Com a licença do outro, Tuahir recorda a estoriazinha do pai do fazedor de rios. O homem vivia só, se lamentando: antes mal acompanhado! Habitava na esteira de um rio largo, tão largo que deitava a pequeno qualquer tamanho da outra margem. Lhe doía a vida, indevida em um só indivíduo. Não haveria outra humanidade neste extenso mundo? Até que um dia, do outro lado das águas, lhe pareceu chegar uma voz. Havia um cacimbo cheio, era a estação das brumas. O velho se ergueu e espreitou a lonjura. Lá estava: do outro lado, o esbatente vulto de um gentículo. Deste lado, o pai gritou também. Não entendia rabisco que o outro dizia. Mas ripostava, com ânsia, antes que a miragem, desiludida, desaparecesse. Durante dias, se repetiu a troca de berros, até ao arrebatamento das vozes se converterem uma em outra, sem nenhuma palavra se ter tornado entendível. O velho todo o dia suspirava pelo momento de gritar. Um dia, contudo, o outro se demorou. Um estremecimento lhe arrepiou a tristeza. Ele já sofria de afeição demasiada pelo desconhecido, fosse a saudade de um irmão ainda por nascer. Manobrou, então, um pressentimento: e se, nos anteriores dias, o outro lhe tivesse tentado avisar de qualquer tragédia que estivesse por acontecer? Ou se o outro estivesse doente, necessitado de um braço amigo?
Decidiu então improvisar uma jangada, depressou-se na sua construção. E se lançou nas vagas, transversando a corrente. Em meio da jornada reparou como havia sido grande sua ousadia. E as ondas cresceram, grandes que ele nunca vira. A barcaça não resistia, o caudal do rio a ver com quantos paus se desfaz uma canoa. A água já embarcara, aos bocejos, na almadia. O pai de Nhamataca afundava, sem remédio. Nesse instante, porém, ele viu que um outro barquito avançava em sua direcção. Olhou: era o vulto da outra margem que acorria em rumo avesso, direito a o salvar. Braços fortes o puxaram e ele se anichou, encharquilhado na outra embarcação. Foi então que, desfeitas bruma e lonjura, descobriu que o personagem do outro lado era uma mulher, dona de incendiada beleza. Tudo o resto se passou em silêncio como se perto já não se escutassem. O amor que trocaram é assunto para duas vidas inteiras, abandonadas para sempre num barquito sem rumo.
Nasci num barco, sou filho das águas, sorri Nhama-taca a fechar a estória.
E adianta lição: nenhum rio separa, antes costura os destinos dos viventes. A prova era o seu nascimento. Agora, ao gerar um rio, Nhamataca paga uma dívida para com um tempo mais antigo que o passado. Talvez que um novo curso, nascido a golpes de sua vontade, traga de volta o sonho àquela terra mal amada.
Nós te ajudamos, Nhamataca.
Para Muidinga aquele é um projecto demasiado louco. Melhor é virarem costas às razões de Nhamataca, pouco importando que fossem ou não verdade. Ele e o velho tinham outras intenções, não se podiam desviar por irrealidades. Tuahir negou. Ele acha que devem juntar braços com o fazedor de rios. Tuahir tinha argumento de uma vantagem: quem sabe pudessem aproveitar o nascente rio? A viagem deles se tornaria curta, menos custosa.
Em vez de esperarmos na estrada, fazemos o nosso caminho.
Muidinga acede. Durante dias covam no consistente chão. Não avançam muito porque uma zona pedregosa se entrepõe. O miúdo já tem as palmas da mão a sangrar e lhe despontam dúvidas para um tal sacrifício. Fazer um rio? Esperto é o mar que, em vez da briga, prefere abraçar o rochedo. Muidinga volta a mudar de ideias sobre o empreendimento. Fala com Tuahir, à parte. Lhe faz ver a loucura de Nhamataca. Mas seu companheiro se nega a dar audição.
Desculpa, Muidinga. Nhamataca não está maluco, não. O homem é como a casa: deve ser visto por dentro!
Nessa noite, uma trovoada estoura, com rebentações jamais vistas. A tempestade cresce como o pão na quentura do forno. Os relâmpagos circuitam a noite, tricotando a noite com súbitos fios de luz. Começa uma chuva torrencial, parecia o universo se dissolvia. Os três se perdem em correrias a procurar a impossível direcção de um abrigo. O rapaz grita para que se juntem. Ficam, tremendo, trocando os braços, comunhando um descontrolado medo. De repente, Nhamataca se alerta, apontando o intermitente chão. Havia um sulco que se enchia.
O rio, é o rio!
Nhamataca festeja o nascimento como se fosse um fruto de sua carne. Larga o abraço dos outros, se acerca do febrilhante ribeiro. Ergue os braços ao céu, pedindo luz. Ele quer afagar sua nascente obra. Muidinga e Tuahir clamam para que preste cuidado mas ele se ocupa dando vivas ao vindouro. Seu corpo convulso é visível apenas nos breves e entrecortados instantes dos raios. A memória do acontecido se fará assim por soluços, Nhamataca tombando na torrente do furioso regato. O velho e o moço querem segurar o corpo do covador, mas a corrente, redemoníaca, cresce em fúrias desordenadas. E Nhamataca desaparece, misturado nas súplicas dos outros, o trovejar dos céus e o gorgolejar do rio, seu descendente.
Tuahir ainda segue a tentar vislumbrar sua reaparição mas as margens se esboroam, fareladas. O leito se iguala ao resto da savana, as terras fugindo na torrente. Se houve obra de um homem foi apenas um rio de pouca dura.
Chove toda a manhã com tal empenho que, para não se perderem, Muidinga e Tuahir vagueiam de mãos dadas. Ao meio-dia a chuva pára. O sol se empina no céu, com tamanha vingança que, num instante, chupa os excessos de água sobre a savana. A terra sorve aquele dilúvio, enxugando o mais discreto charco. No inacreditável mudar de cenário, a seca volta a imperar. Onde a água imperara há escassas horas, a poeira agora esfuma os ares. Ouve-se o tempo raspando seus ossos sobre as pedras. Em toda a savana o chão está deitado, sem respirar. A cauda do vento se enrosca longe. Até o capim que nunca tem nenhuns pedidos, até o capim vai miserando.
Muidinga olha a paisagem e pensa. Morreu um homem que sonhava, a terra está triste como uma viúva. Tuahir vagueia em roda procurando encontrar um modo de regressar à estrada. O rapaz confia no entendimento que o velho tem sobre as pedras, em seu atento ler nas folhagens. Tuahir é capaz de saudar um carreiro onde ninguém mais descobre caminho. O mato é a sua cidade.
Agora, porém, os dois parecem vagabundear sem direcção. A fome começa a pedir deferimento. Dia após dia, avançam num círculo, rodopeões. Muidinga começa a desconfiar das certezas do seu guia.
Nos perdemos, Tuahir?
Perder? Nunca, miúdo.
Ele pensamenta, fiando conversa. O que é perder-se, ao fim ao cabo? Muita gente, acreditando ter a certeira direcção, nasce já equivocada. E continua barateando prosa. Quem sabe desejasse só distrair o jovem, para que ele não tomasse a sério o destino. O tempo passa, cai a noite. Os dois viajantes se deitam no relento. O velho não alcança o sono.
Não dorme, tio?
Não. Desconsigo de dormir.
É por causa do homem do rio.
Nada. Nem lembro isso. É que sinto falta das estórias.
Quais estórias?
Essas que você lê nesses caderninhos. Esse fidamãe desse Kindzu já vive quase connosco.
Deixei os cadernos lá no machimbombo. Mas eu já li outro caderno, mais à frente. Lhe posso contar o que diz, quase sei tudo de cabeça, palavra por palavra.
Fala devagarinho para eu compreender. Se adormecer, não pára. Eu lhe ouço mesmo dormindo.

Mia Couto, em Terra Sonâmbula

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Dorgival Dantas | Tarde Demais

Melancolia

Uma cópia do nosso quarto, cada coisa, e pedaços da paisagem lá fora;
não se trata de dor ou desespero, é apenas a cópia da minha alegria;
uma cópia das suas mãos abertas, paradas, uma cópia do seu carinho,
uma cópia dos seus olhos, uma cópia idêntica do seu modo de olhar,
em preto e branco, cópias das tardes que hoje eram sempre a luz,
como tangerinas, das noites em que parece arder um metal diferente,
sua voz, o cabelo, uma festa, a cópia do seu colar, da sua lágrima,
uns amigos, você sorri; não são a dor ou o desespero, são só as ruas,
cópias das ruas, milhões, que deslizam e não dependem
de nós.

Todos estão cegos. Todos estão loucos. Todos estão mortos.
Deuses habilidade súplica suborno não têm nenhum poder
e nos lançamos ao destino, ao veredito da sorte, às leis do acúmulo,
rios hotéis palaces suítes, reproduções disso e daquilo, do que
não vemos nem saberemos, imagens não me sirvam de consolo
mas quando sejam o horror guardem ainda alguma beleza, a cópia
da beleza de quando éramos nós dois e o mundo; não é o fim,
é o dedo de ninguém sobre a tecla que nos copia, somos nós
sem nós em cópias, à perfeita e sem fim ilusão, à perfeição
da vertigem.

Eucanaã Ferraz, em Sentimental 

Isla Negra

Pensei entregar-me a meu trabalho literário com mais dedicação e mais força. O contato com a Espanha tinha me fortificado e amadurecido. As horas amargas de minha poesia deviam terminar. O subjetivismo melancólico de meus 20 Poemas de Amor ou a comoção dolorosa de Residencia en la Tierra chegavam ao fim. Pareceu-me encontrar um veio enterrado, não sob as rochas subterrâneas mas sob as folhas dos livros. Pode a poesia servir aos nossos semelhantes? Pode acompanhar as lutas dos homens? Já tinha caminhado bastante pelo terreno do irracional e do negativo. Devia deter-me e buscar o caminho do humanismo, banido da literatura contemporânea mas enraizado profundamente nas aspirações do ser humano.
Comecei a trabalhar em meu Canto general.
Para isto precisava de um lugar de trabalho. Encontrei uma casa de pedra defronte do mar num lugar desconhecido para todo o mundo, chamado Isla Negra. Dom Eladio Sobrino, o proprietário, um velho socialista espanhol, capitão de navio, estava construindo-a para sua família mas quis vender. Como compraria? Ofereci o projeto de meu livro Canto general mas fui rechaçado pela Editora Ercilla, que então publicava minhas obras. Com ajuda de outros editores, que pagaram diretamente ao proprietário, pude finalmente comprar, no ano de 1939, minha casa de trabalho em Isla Negra.
A ideia de um poema central que agrupasse as incidências históricas, as condições geográficas, a vida e as lutas de nossos povos, apresentava-se a mim como uma tarefa urgente. A costa selvagem da Isla Negra, com o tumultuoso movimento oceânico, permitia que eu me entregasse com paixão à empresa de meu novo canto.

Pablo Neruda, em Confesso que vivi

O Pós-impressionismo de Gauguin

Roses and Little Statue (1890), de Paul Gauguin

Feliz!

Deitado no alto do carro de feno... com os braços e as pernas abertos em X... e as nuvens, os voos passando por cima... Por que estradas de abril viajei assim um dia? De que tempos, de que terras guardei essa antiga lembrança, que talvez seja a mais feliz das minhas falsas recordações?

Mário Quintana, em Sapato Florido

O apanhador no campo de centeio


14

Depois que a tal de Sunny foi embora, me sentei numa cadeira e fumei uns dois cigarros. O dia estava começando a clarear. Puxa, eu estava nas últimas. Ninguém imagina como eu estava deprimido. Foi então que comecei a falar mais ou menos em voz alta com o Allie. Às vezes, quando estou muito deprimido, costumo fazer isso. Fico dizendo a ele para apanhar a bicicleta em casa e me encontrar em frente da casa do Bobby Fallon. O Bobby Fallon morava bem pertinho de nós no Maine – isto é, há muitos anos atrás. Um dia, Bobby e eu combinamos ir de bicicleta até o Lago Sedebego. Íamos levar um lanche e tudo, e nossas espingardinhas de ar comprimido – éramos garotos e estávamos pensando em dar uns tiros. Afinal o Allie ouviu nossa conversa e quis ir também, mas eu não deixei, dizendo que ele era muito criança. Por isso, hoje em dia, de vez em quando – quando estou muito deprimido – fico dizendo a ele: “Tá bem, vai em casa, apanha a bicicleta e me encontra em frente da casa do Bobby. Vai depressa”. Não é que eu não costumasse levá-lo comigo quando ia a esses lugares. Eu levava. Mas naquele dia não deixei. Ele não ficou magoado por isso – nunca ficava magoado por coisa alguma – mas, mesmo assim, penso sempre nisso quando estou muito deprimido.
Afinal, tirei a roupa e me deitei. Na cama, me deu uma bruta vontade de rezar ou coisa parecida. Mas não consegui. Não é sempre que consigo rezar quando tenho vontade. Em primeiro lugar, sou meio ateu. Gosto de Jesus e tudo, mas não dou muita bola para a maioria das outras coisas da Bíblia. Os Apóstolos, por exemplo. Pra falar a verdade, os Apóstolos são uns chatos. Depois que Jesus morreu e tudo eles trabalharam direitinho, mas, enquanto Ele estava vivo, não serviam pra nada. Deixavam Ele na mão o tempo todo. Gosto de todo mundo na Bíblia mais que dos Apóstolos. Pra dizer a verdade, o cara que eu mais gosto na Bíblia é aquele maluco que morava nos túmulos e vivia se cortando com as pedras. Gosto dez vezes mais daquele filho da mãe do que dos Apóstolos. Quando eu estudava no Colégio Whooton, discutia um bocado sobre isso com um garoto chamado Arthur Childs, que morava no fim do corredor. O tal do Childs era Quaker e tudo, e não largava a Bíblia. Era um bom menino e eu gostava dele, mas nunca chegamos a um acordo sobre uma porção de troços da Bíblia, principalmente os Apóstolos. Ele cansou de repetir que, se eu não gostava dos Apóstolos, então não gostava de Jesus nem nada. Se foram escolhidos por Jesus, a gente tinha que gostar deles. Eu respondia que sabia que tinha sido Jesus quem tinha escolhido, mas que a escolha tinha sido feita ao acaso, porque Ele não teve tempo de andar por aí analisando meio mundo. Eu não culpava Jesus nem nada. Ele não tinha culpa de não ter tido tempo. Me lembro que um dia eu perguntei ao tal de Childs se ele achava que Judas, o cara que traiu Jesus e tudo, tinha ido para o inferno depois que se suicidou. Childs respondeu que não tinha nem dúvida. Aí é que discordei dele. Eu disse que era capaz de apostar um milhão que Jesus não tinha mandado Judas para o inferno. Até hoje eu botava dinheiro, se tivesse um milhão. Acho que qualquer um dos Apóstolos teria mandado ele para o inferno – e o mais depressa possível – mas aposto qualquer coisa como Jesus não mandou. O tal de Childs disse que o problema comigo é que eu não ia à missa nem nada. De certo modo, ele tinha razão. Não vou mesmo. Em primeiro lugar, meus pais são de religiões diferentes e por isso nós lá em casa somos todos ateus. Pra falar a verdade, não suporto padre. Todos os que conheci, nas escolas por onde andei, tinham essa voz de juízo final quando faziam os sermões. Juro por Deus que detesto isso. Não sei por que diabo eles não falam com uma voz normal. E é por isso que soam tão cretinos quando falam.
De qualquer maneira, não consegui rezar droga nenhuma. Era só começar e me lembrava logo da tal Sunny me chamando de bobalhão. Acabei sentando na cama e fumando mais um cigarro. Estava com um gosto horrível. Acho que já tinha fumado uns dois maços desde que havia saído do Pencey.
Eu ainda estava sentado ali na cama, fumando, quando de repente alguém bateu na porta. Fiquei torcendo para que as pancadas não fossem na minha porta, mas sabia muito bem que eram. Não sei como é que eu sabia, mas o fato é que eu sabia. E também sabia quem era. Sou meio vidente.
Quem é? – perguntei. Eu estava meio apavorado. Sou um bocado medroso para esse tipo de negócio.
Ninguém respondeu. Bateram de novo, com mais força. Acabei me levantando, só de pijama, e abri a porta. Nem precisei acender a luz, porque já era dia. Dei de cara com a Sunny e o Maurice, o cafetão do elevador.
Quê que há? Quê que vocês querem? – perguntei com uma voz que não era lá das mais firmes.
Pouca coisa – o tal de Maurice disse. – Só cinco dólares.
Maurice era o único a falar. A tal de Sunny só ficava lá em pé, de boca aberta e tudo.
Já paguei. Dei cinco dólares a ela. Pode perguntar.
Puxa, como minha voz estava tremendo.
São dez, chefe. Dez por uma bimbada e quinze até meio-dia. Eu te avisei.
Não foi isso que você disse. Você disse cinco dólares por uma bimbada. Quinze até o meio-dia está certo, mas ouvi perfeitamente...
Abre aí, chefe.
Pra quê? – perguntei.
Puxa, meu coração batia tanto que por pouco não me derrubava no chão. Queria, pelo menos, estar vestido. É horrível a gente estar só de pijama quando acontece um troço desses.
Vamos logo, chefe – Maurice disse. Aí me deu um empurrão, com aquela mão nojenta. Quase caí sentado. O filho da puta era forte pra burro. Quando dei por mim, os dois já estavam dentro do quarto. Pareciam até os donos daquela droga. Ela sentou no peitoril da janela. O Maurice sentou na poltrona e afrouxou o colarinho do uniforme de ascensorista. Puxa, como eu estava nervoso.
Pronto, chefe, vai passando a nota. Tenho que voltar pro trabalho.
Já disse mais de dez vezes. Não devo um centavo a ninguém. Já dei cinco a ela...
Como é... Chega de conversa. Vai passando a nota.
Por que é que eu tenho que te dar mais cinco dólares? – falei, com uma voz de cana rachada. – Você está querendo me tapear.
O tal do Maurice desabotoou a túnica, do primeiro ao último botão. A única coisa que ele tinha embaixo era um colarinho falso, sem camisa nem nada, e uma barrigona cabeluda.
Ninguém tá querendo te tapear. Vai passando a nota, chefe.
Não.
Quando disse isso, o Maurice se levantou da cadeira e começou a andar na minha direção e tudo. Parecia que ele estava muito, muito cansado, ou então muito, muito chateado. Puxa, que medão. Me lembro que eu estava de braços cruzados. Acho que não teria sido tão ruim se eu não estivesse só com a droga do pijama.
Vai passando a nota, chefe.
Ele veio direto para onde eu estava. Não sabia dizer outra coisa. Era só: “Vai passando a nota, chefe”. Era um imbecil total.
Não.
Chefe, você assim vai me obrigar a engrossar um pouco. Não queria fazer isso, mas tou vendo que não tem outro jeito. Você deve cinco dólares à gente.
Não te devo nada. Se você me bater, vou fazer um barulhão danado. Vou acordar o hotel inteiro. Até a polícia e tudo.
Minha voz tremia feito uma filha da mãe.
Então começa. Pode se esgoelar à vontade. Ótimo – ele falou. – Quer que seus velhos fiquem sabendo que você passou a noite com uma puta? Um garoto da alta sociedade, como você?
Ele era um bocado vivo, lá à moda dele. Era mesmo.
Me deixa em paz. Se você tivesse dito dez ainda vá lá. Mas ouvi perfeitamente...
Como é, vai dar ou não vai?
Me imprensou contra a porta. Estava praticamente em cima de mim, com aquela barrigona imunda e cabeluda e tudo.
Me deixa em paz. Dá o fora do meu quarto – respondi. Eu continuava de braços cruzados e tudo. Puxa, como eu era trouxa.
Aí a Sunny falou pela primeira vez:
- Ô, Maurice, quer que eu apanhe a carteira dele? Está ali bem em cima daquele troço.
- Quero, apanha duma vez.
- Ei, deixa a minha carteira aí!
- Pronto, já peguei - Sunny disse. Ela acenou para mim com os cinco dólares. - Tá vendo? Tou tirando só os cinco que você me deve. Não sou nenhuma vigarista.
De repente, comecei a chorar. Dava tudo para não ter chorado, mas chorei.
Não, vocês não são vigaristas, não – eu disse. – Só estão roubando cinco…
Cala a boca – o tal do Maurice disse, me dando um empurrão.
Deixa esse cara aí e vambora, anda – a Sunny disse. – Anda, vambora. Já tamos com a grana que ele deve. Vem, vambora, anda.
Tou indo – disse o tal do Maurice. Mas não foi.
Tou falando sério, Maurice, anda. Deixa ele pra lá.
Nem tou tocando nele – disse o Maurice, inocente como um anjinho. Foi aí que ele me deu um peteleco com toda a força no meu pijama. Não vou dizer onde foi, mas o peteleco doeu pra chuchu. Eu aí chamei ele de imbecil.
Quê que você disse? – ele perguntou, com a mão atrás da orelha, como se fosse surdo. – Que que é? O que é que eu sou?
Eu ainda estava mais ou menos chorando. Continuava nervoso é com raiva.
Você é um idiota – falei. – Você é um vigarista dum imbecil nojento e não dou dois anos para ver você aí pela rua, igual a esses vagabundos raquíticos que atracam a gente pra pedir dinheiro prum café. Você vai andar com um paletó imundo, todo sujo de catarro, e vai ser um...
Aí ele me acertou. Nem tentei sair do caminho, ou me esquivar, nem nada. Só senti aquele murro tremendo no estômago.
Mas não desmaiei nem nada, porque me lembro que ainda estava no chão quando vi os dois saírem e fecharem a porta. Aí fiquei deitado uma porção de tempo, mais ou menos como aconteceu da outra vez com o Stradlater. Só que dessa vez pensei que ia morrer mesmo. No duro. Pensei que estivesse me afogando ou coisa parecida. O caso é que eu mal podia respirar. Quando afinal levantei, tive que ir até o banheiro todo dobrado, apertando a barriga e tudo.
Mas eu sou doido. Verdade. Juro por Deus. Na metade do caminho para o banheiro, comecei a fingir que estava com uma bala no bucho. O tal de Maurice tinha me chumbado. Por isso eu estava indo para o banheiro tomar uma bruta talagada de uísque ou coisa parecida, para acalmar os nervos e me ajudar a entrar mesmo em ação. Me imaginei saindo da porcaria do banheiro de terno e tudo, com minha pistola no bolso e cambaleando um pouco. Aí, em vez de usar o elevador, eu descia pela escada, me agarrando no corrimão e tudo, enquanto um filete de sangue escorria pelo canto da minha boca. Ia descer alguns andares – apertando a barriga, sangue pingando por todo lado – e aí chamava o elevador. Assim que o tal do Maurice abrisse a porta, dava de cara comigo, de pistola na mão, e ia começar a gritar, com aquela voz esganiçada de quem está apavorado, me pedindo para deixar ele em paz. Mas eu chumbava ele assim mesmo. Seis tiros bem no meio daquela barrigona cabeluda. Aí eu jogava a pistola no poço do elevador – depois de apagar as impressões digitais e tudo. Aí me arrastava escada acima até o quarto e chamava a Jane para vir fazer um curativo na minha barriga. Fiquei imaginando a Jane botando um cigarro aceso na minha boca e segurando para eu tragar, enquanto o sangue continuava a correr e tudo.
A culpa é da droga dos filmes de bandido. Por mais que a gente evite, acaba influenciado. Fora de brincadeira.
Fiquei no banheiro quase uma hora, tomando banho e tudo. Depois voltei para a cama. Levei muito tempo para dormir, não estava nem cansado, mas acabei pegando no sono. A vontade que tive foi de me matar: tive vontade de me atirar pela janela. Provavelmente teria pulado mesmo, se tivesse a certeza de que alguém ia me cobrir assim que eu me esborrachasse no chão. Não queria é que um bando de imbecis curiosos ficassem me olhando quando eu estivesse todo ensanguentado.

J. D. Salinger, em O Apanhador no Campo de Centeio