Tuahir
parecia alheio a estas tristezas. Estavam ambos sentados na sombra de
uma massaleira. Um vento soprava e os frutos se embatiam, em
múltiplos batuques. Uma vez mais, a paisagem mudara seus tons e
tamanhos. O arvoredo era mais baixo embora mais cheio. A humidade
crescia, devia haver uma aguinha a correr perto. Tinham saído do
autocarro na madrugada desse dia mas andaram apenas em círculos para
não se afastarem muito da sua moradia. O velho fez sinal para
retomarem caminho. Seguia à frente, suave como ave. Era seu jeito de
calcorrear, pés matreiros, felinamente. Dessa vez, porém, ele se
dispunha com boa qualidade, lembrando seus antigos namoros.
— Se
um dia se casar-se, Muidinga, escolha mulher feiona, dessas que os
outros nunca invejam.
Nem
que fizesse como Rafaelão, seu primo familiar, que escolheu a moça
mais bela e, depois, lhe foi pondo defeito por cima de defeito. Um
dia lhe riscava o rosto, outro lhe cortava os cabelos, outro ainda
lhe queimava a pele. A pobre mulher era de divulgar sustos.
— Deus,
tanta maldade!
— É,
a mulher lhe dava trabalhos muito diários.
Súbitos
ruídos os interrompem, mais diante. Parecem vozear de gente, nas
traseiras de um pequenito monte. Sobem, com cuidado. Era um homem
que, do outro lado da encosta, abria um imenso buraco, facholando com
afinco. A cova era tão funda e comprida que parecia que a intenção
dele era partir o mundo em dupla metade.
Gritam,
pedindo-lhe atenção. Do fundo do buraco o desconhecido faz sinais
com a mão, mostrando que deveriam esperar. Vai subindo com vagares,
demorado como se fosse cobra procurando os pés. Ao chegar perto, se
afina e, sem mais nem porquê, corre para Tuahir. Se abraçam,
amistosos. Muidinga olha, sem compreensão.
— Este
é Nhamataca. Trabalhámos juntos, no tempo colonial.
Se
cumprimentam rodando as mãos sobre os polegares, à maneira da
terra. Os dois velhos amigos se sentam, fiando conversa, recordando
os tempos.
— Sabe,
Muidinga? Nós dois éramos empregados do mesmo patrão.
Cada
um puxa a sua lembrança, em suave escorrer, rindo mesmo dos mais
tristes momentos. O miúdo lhes chama ao presente. Quer saber o que
animava Nhamataca, covando assim.
— Estou
a fazer um rio, responde o outro.
Riem-se,
o rapaz e Tuahir. Mas o homem insiste, no sério. Sim, por aquele
leito fundo haveria de cursar um rio, fluviando até ao infinito mar.
As águas haveriam de nutrir as muitas sedes, confeitar peixes e
terras. Por ali viajariam esperanças, incumpridos sonhos. E seria o
parto da terra, do lugar onde os homens guardariam, de novo, suas
vidas.
Estava
tão seguro que começara por escavar no chão da própria casa.
Ruíram as paredes, desabou-se o tecto. Os seus se retiraram em
dúvida da sua sanidade. Idos os próximos, irados os distantes. O
sujeito desafiava os deuses que aprontaram o mundo para os viventes
dele só se servirem, sem ousarem mudar a sua obra. Mas Nhamataca não
desistiu, covando no dia a noite. Foi seguindo, serpenteando entre
vales e colinas, suas mãos deitando e renovando mil vezes as
sangradas e calejadas peles. E agora, sentado na ribanceira, guarda
com vaidade a sua construção. Aponta o fundo:
— Vejam:
já esponta um fioziozito de água.
Tal
aguinha nem se via. Havia, quando muito, um suor na areia do fundo.
Mas os visitantes não contrariam.
— E
nome que ele vai ter?
Nome
que dera ao rio: Mãe-água. Porque o rio tinha vocação para se
tornar doce, arrastada criatura. Nunca subiria em fúrias, nunca se
deixaria apagar no chão. Suas águas serviriam de fronteira para a
guerra. Homem ou barco carregando arma iriam ao fundo, sem regresso.
A morte ficaria confinada ao outro lado. O rio limparia a terra,
cariciando suas feridas.
— Você,
Muidinga, não se admire. Afinal, Nhamataca cumpre destino igual ao
pai dele.
Com
a licença do outro, Tuahir recorda a estoriazinha do pai do fazedor
de rios. O homem vivia só, se lamentando: antes mal acompanhado!
Habitava na esteira de um rio largo, tão largo que deitava a pequeno
qualquer tamanho da outra margem. Lhe doía a vida, indevida em um só
indivíduo. Não haveria outra humanidade neste extenso mundo? Até
que um dia, do outro lado das águas, lhe pareceu chegar uma voz.
Havia um cacimbo cheio, era a estação das brumas. O velho se ergueu
e espreitou a lonjura. Lá estava: do outro lado, o esbatente vulto
de um gentículo. Deste lado, o pai gritou também. Não entendia
rabisco que o outro dizia. Mas ripostava, com ânsia, antes que a
miragem, desiludida, desaparecesse. Durante dias, se repetiu a troca
de berros, até ao arrebatamento das vozes se converterem uma em
outra, sem nenhuma palavra se ter tornado entendível. O velho todo o
dia suspirava pelo momento de gritar. Um dia, contudo, o outro se
demorou. Um estremecimento lhe arrepiou a tristeza. Ele já sofria de
afeição demasiada pelo desconhecido, fosse a saudade de um irmão
ainda por nascer. Manobrou, então, um pressentimento: e se, nos
anteriores dias, o outro lhe tivesse tentado avisar de qualquer
tragédia que estivesse por acontecer? Ou se o outro estivesse
doente, necessitado de um braço amigo?
Decidiu
então improvisar uma jangada, depressou-se na sua construção. E se
lançou nas vagas, transversando a corrente. Em meio da jornada
reparou como havia sido grande sua ousadia. E as ondas cresceram,
grandes que ele nunca vira. A barcaça não resistia, o caudal do rio
a ver com quantos paus se desfaz uma canoa. A água já embarcara,
aos bocejos, na almadia. O pai de Nhamataca afundava, sem remédio.
Nesse instante, porém, ele viu que um outro barquito avançava em
sua direcção. Olhou: era o vulto da outra margem que acorria em
rumo avesso, direito a o salvar. Braços fortes o puxaram e ele se
anichou, encharquilhado na outra embarcação. Foi então que,
desfeitas bruma e lonjura, descobriu que o personagem do outro lado
era uma mulher, dona de incendiada beleza. Tudo o resto se passou em
silêncio como se perto já não se escutassem. O amor que trocaram é
assunto para duas vidas inteiras, abandonadas para sempre num
barquito sem rumo.
— Nasci
num barco, sou filho das águas, sorri Nhama-taca a fechar a
estória.
E
adianta lição: nenhum rio separa, antes costura os destinos dos
viventes. A prova era o seu nascimento. Agora, ao gerar um rio,
Nhamataca paga uma dívida para com um tempo mais antigo que o
passado. Talvez que um novo curso, nascido a golpes de sua vontade,
traga de volta o sonho àquela terra mal amada.
— Nós
te ajudamos, Nhamataca.
Para
Muidinga aquele é um projecto demasiado louco. Melhor é virarem
costas às razões de Nhamataca, pouco importando que fossem ou não
verdade. Ele e o velho tinham outras intenções, não se podiam
desviar por irrealidades. Tuahir negou. Ele acha que devem juntar
braços com o fazedor de rios. Tuahir tinha argumento de uma
vantagem: quem sabe pudessem aproveitar o nascente rio? A viagem
deles se tornaria curta, menos custosa.
— Em
vez de esperarmos na estrada, fazemos o nosso caminho.
Muidinga
acede. Durante dias covam no consistente chão. Não avançam muito
porque uma zona pedregosa se entrepõe. O miúdo já tem as palmas da
mão a sangrar e lhe despontam dúvidas para um tal sacrifício.
Fazer um rio? Esperto é o mar que, em vez da briga, prefere abraçar
o rochedo. Muidinga volta a mudar de ideias sobre o empreendimento.
Fala com Tuahir, à parte. Lhe faz ver a loucura de Nhamataca. Mas
seu companheiro se nega a dar audição.
— Desculpa,
Muidinga. Nhamataca não está maluco, não. O homem é como a casa:
deve ser visto por dentro!
Nessa
noite, uma trovoada estoura, com rebentações jamais vistas. A
tempestade cresce como o pão na quentura do forno. Os relâmpagos
circuitam a noite, tricotando a noite com súbitos fios de luz.
Começa uma chuva torrencial, parecia o universo se dissolvia. Os
três se perdem em correrias a procurar a impossível direcção de
um abrigo. O rapaz grita para que se juntem. Ficam, tremendo,
trocando os braços, comunhando um descontrolado medo. De repente,
Nhamataca se alerta, apontando o intermitente chão. Havia um sulco
que se enchia.
— O
rio, é o rio!
Nhamataca
festeja o nascimento como se fosse um fruto de sua carne. Larga o
abraço dos outros, se acerca do febrilhante ribeiro. Ergue os braços
ao céu, pedindo luz. Ele quer afagar sua nascente obra. Muidinga e
Tuahir clamam para que preste cuidado mas ele se ocupa dando vivas ao
vindouro. Seu corpo convulso é visível apenas nos breves e
entrecortados instantes dos raios. A memória do acontecido se fará
assim por soluços, Nhamataca tombando na torrente do furioso regato.
O velho e o moço querem segurar o corpo do covador, mas a corrente,
redemoníaca, cresce em fúrias desordenadas. E Nhamataca desaparece,
misturado nas súplicas dos outros, o trovejar dos céus e o
gorgolejar do rio, seu descendente.
Tuahir
ainda segue a tentar vislumbrar sua reaparição mas as margens se
esboroam, fareladas. O leito se iguala ao resto da savana, as terras
fugindo na torrente. Se houve obra de um homem foi apenas um rio de
pouca dura.
Chove
toda a manhã com tal empenho que, para não se perderem, Muidinga e
Tuahir vagueiam de mãos dadas. Ao meio-dia a chuva pára. O sol se
empina no céu, com tamanha vingança que, num instante, chupa os
excessos de água sobre a savana. A terra sorve aquele dilúvio,
enxugando o mais discreto charco. No inacreditável mudar de cenário,
a seca volta a imperar. Onde a água imperara há escassas horas, a
poeira agora esfuma os ares. Ouve-se o tempo raspando seus ossos
sobre as pedras. Em toda a savana o chão está deitado, sem
respirar. A cauda do vento se enrosca longe. Até o capim que nunca
tem nenhuns pedidos, até o capim vai miserando.
Muidinga
olha a paisagem e pensa. Morreu um homem que sonhava, a terra está
triste como uma viúva. Tuahir vagueia em roda procurando encontrar
um modo de regressar à estrada. O rapaz confia no entendimento que o
velho tem sobre as pedras, em seu atento ler nas folhagens. Tuahir é
capaz de saudar um carreiro onde ninguém mais descobre caminho. O
mato é a sua cidade.
Agora,
porém, os dois parecem vagabundear sem direcção. A fome começa a
pedir deferimento. Dia após dia, avançam num círculo, rodopeões.
Muidinga começa a desconfiar das certezas do seu guia.
— Nos
perdemos, Tuahir?
— Perder?
Nunca, miúdo.
Ele
pensamenta, fiando conversa. O que é perder-se, ao fim ao cabo?
Muita gente, acreditando ter a certeira direcção, nasce já
equivocada. E continua barateando prosa. Quem sabe desejasse só
distrair o jovem, para que ele não tomasse a sério o destino. O
tempo passa, cai a noite. Os dois viajantes se deitam no relento. O
velho não alcança o sono.
— Não
dorme, tio?
— Não.
Desconsigo de dormir.
— É
por causa do homem do rio.
— Nada.
Nem lembro isso. É que sinto falta das estórias.
— Quais
estórias?
— Essas
que você lê nesses caderninhos. Esse fidamãe desse Kindzu já vive
quase connosco.
— Deixei
os cadernos lá no machimbombo. Mas eu já li outro caderno, mais à
frente. Lhe posso contar o que diz, quase sei tudo de cabeça,
palavra por palavra.
— Fala
devagarinho para eu compreender. Se adormecer, não pára. Eu lhe
ouço mesmo dormindo.