sexta-feira, 30 de maio de 2025

João Bosco Quartet | Coisa Feita

Salinha cheia

Se abanque, no más – disse o analista de Bagé, indicando o divã.
Eu, ahn, prefiro ficar de pé – disse o moço.
Se abanque, índio velho, que tá incluído no preço.
Não, obrigado...
Deita aí! – disse o analista de Bagé, empurrando o paciente, que caiu de costas no pelego.
O analista de Bagé sentou na sua banqueta e começou a picar fumo para o palheiro. Como o moço não dissesse nada, falou:
E então? Desembucha.
É que eu tenho um probleminha...
Probleminha só pode ser o moleque pequeno.
– “Moleque?”
A peça. O trabuco. O Oduvaldo.
Ah. Não, não é isso.
Então o que é, tchê? Depressa que eu tô com a salinha cheia de louco.
Bem, é que eu...
O quê?
Eu desde pequeno tenho este problema de incontinência...
Incontinência?
Eu ainda faço xixi na cama...
Nisso o analista pulou e gritou:
Meu pelego!
E levantou o divã por uma ponta, despejando o paciente no chão.
Outra vez entrou um senhor no consultório, deitou no divã e contou que ultimamente estava se comportando de modo estranho.
Me aposentei, doutor. E um dia, não sei por quê, me deu vontade de pintar o cabelo de caju.
Sei – disse o analista de Bagé, sem tirar a bomba de chimarrão da boca.
Comecei a usar roupas assim. Camisa aberta até aqui embaixo...
To ouvindo.
Medalhão no peito...
Pensei que fosse devoção.
E me deu esta vontade de só andar com rapazes...
Sim.
Me diga, doutor. Eu sou homossexual?
Não existe gaúcho homossexual.
Mas a gente vê tantos por aí...
São as correntes migratórias. Tu não tem nada, índio velho. Precisa é arranjar um passatempo. Colecionar selo. Ou medalhão, pra não perder os que já tem. Vai pra casa e sossega, tchê!
Se eu fosse homossexual, nem sei o que fazia. Acho que me jogava por essa janela! Aí o analista de Bagé tapou a janela com o corpo e ameaçou:
Te fresqueia. Te fresqueia!

Luís Fernando Veríssimo, em O Analista de Bagé

Garoa


Pequena garoa
Antes da seca foi prosa
Pra flora e fauna.

小さなガレージ
枯れる前に、それは散文だった
動植物のために。

Elilson José Batista, em O Sol dá têmpera à espada-de-são-jorge

Lucy e Linus van Pelt

Do inédito

E quando, morto de mesmice, te vier a nostalgia de climas e costumes exóticos, de jornais impressos em misteriosos caracteres, de curiosas beberagens, de roupas de estranho corte e colorido, lembra-te que para alguém nós somos os antípodas: um remoto, inacreditável povo do outro lado do mundo, quase do outro lado da vida — uma gente de se ficar olhando, olhando, pasmado... Nós, os antípodas, somos assim.

Mário Quintana, em Sapato Florido

O sol também se levanta

 


2

Nesse inverno, Robert Cohn viajou para a América e levou o seu romance, que foi aceito por um bom editor. Sua ida causou grande sensação, segundo ouvi dizer, e creio que foi lá que Frances o perdeu. Várias mulheres o assediaram em Nova York e ele voltou inteiramente mudado. Seu entusiasmo pela América era cada vez maior. Robert já não era uma pessoa tão simples nem tão agradável. Os editores tinham dito maravilhas do seu livro e aquilo lhe subiu à cabeça. Depois, muitas mulheres começaram a interessar-se por ele e ampliaram-se os seus horizontes, que durante quatro anos haviam estado limitados por sua mulher. Em três anos, Robert não vira quase ninguém além de Frances. Eu estava até mesmo convencido de que nunca havia amado, na vida.
Casara-se por uma reação à vida desagradável que levara na Universidade, e Frances o agarrara quando ele descobrira que não havia sido o único homem para sua primeira esposa. Não amara ainda, mas compreendera que exercia alguma atração sobre as mulheres, e o fato de que uma o achasse interessante e quisesse viver com ele não era nenhum milagre. Isso o modificou a tal ponto, que sua companhia tornou-se importuna. E também, jogando partidas de bridge em paradas mais altas do que podia, com seus conhecidos de Nova York, tivera sorte e ganhara várias centenas de dólares. Envaideceu-se com sua habilidade no jogo, e mais de uma vez o vi repetindo que um homem poderia muito bem viver do bridge, se não tivesse outro recurso.
Havia ainda outra coisa: Cohn andara lendo W. H. Hudson. Parece não haver nisso nenhum mal, porém ele lera e relera The Purple Land, livro sinistro, quando lido demasiado tarde na vida. O livro narra de maneira esplêndida as imaginárias aventuras amorosas de um perfeito cavalheiro inglês, num país intensamente romântico, e o cenário é muito bem-descrito.
Tratando-se de um homem de trinta e quatro anos, tomá-lo como um guia para o que a vida pode lhe reservar é tão perigoso como seria, para um homem da mesma idade, saindo de um convento francês, entrar diretamente em Wall Street, munido de uma coleção completa dos livros mais práticos de Alger.* Creio que Cohn tomava cada palavra de The Purple Land em sentido tão literal como se fosse um relatório comercial da R. G. Dun. É certo que fazia algumas reservas, mas de um modo geral julgava-o um livro sério. E não era preciso mais para o entusiasmar. Só compreendi a que ponto isso o alterou no dia em que ele me irrompeu escritório adentro.
Olá, Robert — cumprimentei. — Veio me fazer uma visita?
Gostaria de ir à América do Sul, Jake? — perguntou.
Não.
Por quê?
Não sei. Nunca desejei viajar para lá. Muito caro. Você pode ver quantos sul-americanos quiser, aqui mesmo em Paris.
Não são sul-americanos de verdade.
Para mim parecem um bocado reais.
Eu tinha uma batelada de correspondências a enviar pelo correio e escrevera apenas a metade dela.
Sabe de algum escândalo? — perguntei.
Não.
Nenhum de seus amigos vai se divorciar?
Não. Escute, Jake, se eu pagasse as despesas, você iria comigo à América do Sul?
Mas, por que me escolheu?
Você fala espanhol. E seria mais divertido irmos os dois.
Não. Eu gosto daqui e no verão vou à Espanha.
Sempre desejei fazer uma viagem dessas — disse Cohn, sentando-se. — Quando puder fazê-la, já estarei velho demais.
Que bobagem! Você pode ir para onde quiser. Tem muito dinheiro.
Sei disso. Mas não consigo decidir-me.
Anime-se — disse eu. — Todos os países se parecem com o que vemos nos filmes.
Mas tive pena dele. Levava aquilo a sério.
Não me conformo, quando penso que minha vida vai passando tão depressa e não a vivo realmente.
— Ninguém vive com a intensidade que deseja, exceto os toureiros.
— Os toureiros não me interessam. Levam uma vida anormal. Quero mesmo é dar umas voltas pela América do Sul. Seria uma grande viagem!
Já pensou em ir caçar na África Oriental Inglesa?
Não, isso não me agradaria.
Para lá eu iria com você.
Não estou interessado.
Isso é porque você nunca leu nada sobre o assunto. Procure ler um livro recheado de casos amorosos com belas princesas negras e lustrosas.
Quero ir à América do Sul.
Era mesmo uma obstinação judaica.
Vamos lá embaixo beber alguma coisa?
Você não está trabalhando?
Não — respondi. Descemos a escada até o Café, no andar térreo. Eu descobrira que é esse o melhor meio de a gente livrar-se de amigos. Bebe-se um pouco e depois é só dizer: “Bem, preciso voltar para enviar alguns telegramas”, e pronto. É importantíssimo, no jornalismo, descobrir saídas jeitosas como essa. Faz parte da ética profissional dar sempre a impressão de não estar trabalhando. Bem, mas descemos e tomamos uísque com soda. Cohn olhava para as garrafas nas caixas, em volta da parede.
Bom lugar, este — declarou.
Há muita bebida aqui — concordei.
Escute, Jake — e curvou-se sobre o balcão. — Nunca tem a impressão de que sua vida vai passando sem você aproveitá-la? Não percebe que já viveu a metade do tempo que tem para viver?
Sim, isso me acontece de vez em quando.
Sabe que dentro de trinta e cinco anos já estará morto?
Que diabo! Francamente, Robert!
Estou falando sério.
Isso é coisa que não me preocupa.
Devia preocupar-se.
Tenho tido sempre preocupações. Já estou farto delas — respondi.
Bem, eu queria ir à América do Sul.
Escute, Robert, tanto faz um país como outro. Tenho experiência disso. Não podemos sair de dentro de nós mesmos. Não adianta.
Mas você nunca esteve na América do Sul.
Para o inferno a América do Sul! Se você fosse lá do jeito como está, iria continuar na mesma. Paris é uma boa cidade. Por que não começa a viver aqui mesmo?
Estou saturado de Paris, farto do Quartier.
Então se afaste do Quartier. Ande por aí sozinho e veja o que acontece.
Não me acontece nada. Já andei sozinho durante toda uma noite e nada sucedeu. Apenas um guarda, de bicicleta, pediu para examinar meus documentos.
Não achou a cidade bonita à noite?
Paris não me interessa.
E dali não saíamos. Eu tinha pena dele, mas nada podia fazer porque esbarrava em duas obstinações: a América do Sul resolveria o problema e Paris não lhe agradava. A primeira ideia tirara de um livro, e julgo que a segunda saíra também de um livro.
Bem, preciso subir para enviar uns telegramas.
Precisa mesmo?
Sim, tenho de despachá-los.
Você não se incomoda se eu subir e ficar um pouco no escritório?
Não. Suba.
Sentou-se na sala de espera e ficou lendo os jornais e o Editor and Publisher, e eu trabalhei, com afinco, durante duas horas. Depois pus em ordem os carbonos, assinei a correspondência, coloquei-a em dois envelopes-sacos e chamei um boy para levá-los à Gare Saint Lazare. Entrei na sala de espera e encontrei Robert dormindo na poltrona. Dormia com a cabeça apoiada nos braços. Eu não queria acordá-lo, mas tinha de fechar o escritório e sair. Pousei a mão em seu ombro, ele sacudiu a cabeça.
Não posso fazer isso — disse. E afundou mais a cabeça nos braços. — Não posso, nada vai me obrigar a fazer uma coisa dessas.
Robert — disse eu, sacudindo-lhe o ombro. Ele ergueu os olhos, sorriu e pestanejou.
Falei alto, agora mesmo?
Disse qualquer coisa, mas não muito claro.
Meu Deus! Que sonho terrível!
O ruído da máquina o fez dormir?
Acho que sim. Não dormi na noite passada.
Por quê?
Estive conversando.
Compreendi. Eu tinha o péssimo hábito de imaginar as cenas de alcova de meus amigos. Saímos, fomos ao Café Napolitain tomar um aperitivo e olhar a multidão que passava no Boulevard.

Nota
*Horatio Alger, 1834-1899. Escritor norte-americano, autor de obras destinadas especialmente à juventude. (N. T.)

Ernest Hemingway, em O sol também se levanta

A Formação do Jovem

Não que tenha sido a primeira conversa de homem para homem que tive com meu filho Bentão, mas acho que, desta última vez, fui ainda menos homem que ele do que da outra vez. A primeira vez foi na praia e, vergonhosamente, saí pela tangente, alegando a comissão de erros de português por parte dele, embora, é claro, ele fosse analfabeto na ocasião (ainda é, mas agora tem carteira de estudante). Nós estávamos dentro d’água e ele quis saber se podia me fazer uma pergunta. Claro que sim, respondi, com minha melhor cara de pai companheiro, aprendida nos filmes americanos.
É uma pergunta difícil — disse ele.
Qualquer pergunta para seu pai é difícil, ha-ha. Pode perguntar.
Você dá beijo de novela em minha mãe, não dá?
Eu o quê? Beijo de novela? Sim, beijo de novela. Bem, acho que sim, beijo de novela, claro, sim, acho que sim, de vez em quando eu dou uns beijos de novela nela. Vamos pegar siri?
E você sente uma coisa?
Sente uma coisa, como? Sente uma coisa? E... Não, é só um beijinho de novela, todo marido dá beijo de novela na mulher. Olhe ali, pegue aquele pedaço de pau, hoje está dando siri, vamos lá!
Você sente um arrupeio?
Hein? Um arrupeio?
Eu vi um homem na televisão dando um beijo de novela na mulher e eles dois gemeram e ele deu um arrupeio. Quando você beija minha mãe, você geme e tem um arrupeio?
Um arrup... Bem... Olha lá o siri, pegue o pau, olha lá o siri!
Você sente um arrupeio, assim como o homem da televisão, assim, hrrrrrr?
A palavra certa não é arrupeio! Arrupeio está errado, o certo é arrepio, arrepio, ouviu bem? Você...
Você só diz arrupeio.
Eu... Sim, eu digo arrupeio porque sou meio tabaréu sergipano, aprendi isso em Muribeca. Mas você nunca esteve em Muribeca e é no máximo tabaréu português, portanto tem que dizer arrepio e não arrupeio. Arrupeio é errado, ouviu bem? Aliás, o senhor já fez o dever de casa? Eu vou falar com sua professora e mostrar a ela que o senhor só sabe o B, o C e o H, assim mesmo com o nome de “escadinha”, e conta um-dois-quatro-nove-oito-dez, o senhor ouviu bem?
Olha ali o siri, pai, pegue o pau, olhe o siri!
Mas não tinha siri nenhum por perto quando eu estava na sala, lendo o jornal, e minha mulher apareceu na companhia dele, que vinha com uma cara meio intrigada.
Pronto — disse ela. — Converse aí com seu pai.
Converse com o seu pai o quê? — disse eu, que ainda não tinha me recuperado do arrupeio.
Ele precisa ter uma conversa de homem para homem com você.
Conversa de homem para homem? Ele disse isso?
Não, não disse. Eu é que achei que era conversa de homem para homem. Pai é pai. Bem, com licença, que eu tenho de ir lá dentro tratar o peixe.
Tratar o peixe? Você, tratando peixe? Mentirosa! Você já ameaçou fugir de casa se tivesse que tratar peixe! Não existe essa conversa de homem para homem! Volte aqui! Mulher machista! Não me deixe sozinho aqui! Machista!
Está bem, se você quiser eu fico.
Não, tudo bem, besteira minha, eu compreendo essas coisas, besteira minha. Eu posso perfeitamente conversar com meu filho.
Então tudo bem, eu vou lá para dentro.
Está bem. Espere aí, só um instantinho. O que é que ele quer conversar?
Ele quer saber o que é camisinha.
Hein? O que é... Pra que é que ele quer saber o que é camisinha? Que idéia é essa? Volte aqui! Mulher machista, volte aqui! Se você me deixar sozinho aqui, é o divórcio, entendeu, é o tudo acabado entre nós hoje de madrugada! Fique aqui! Que cara é essa, por que este olhar fixo em mim?
Eu estou esperando que você dê a explicação.
Camisinha... Por que é que você quer saber o que é camisinha, Bentão?
Eu vi na televisão. O homem disse que todo mundo deve usar a camisinha para não ficar doente no hospital. Você usa camisinha?
Eu... Mulher!
Você disse que podia perfeitamente conversar com seu filho.
Sim, claro. Mas você podia ajudar, você bem que podia!
Você me dá uma camisinha sua, pai? Se eu não usar a camisinha, eu também fico doente no hospital?
Bem, a camisinha... Mulher, como é que eu faço?
Se eu soubesse, eu fazia.
Bem, meu filho, a camisinha... Vamos fazer o seguinte, depois eu explico, está bem? É um pouco complicado, eu vou pensar num jeito de explicar, está bem?
Está. Mas você promete que usa a camisinha para não ficar doente no hospital? Eu não quero que você fique doente no hospital.
Prom... Depois eu explico, depois eu explico, filho, está bem?
Está. Essa televisão daqui passa no Rio de Janeiro?
Mais ou menos. Quase tudo.
Então pode não passar o aviso da camisinha e então eu vou telefonar para meu avô para ele usar a camisinha para não ficar doente no hospital.
Telefonar para seu avô? Não, não precisa, o aviso passa lá, pode ter certeza. Eu explico depois, está bem? Depois.
Depois esse que ainda não chegou. Discuti a questão metodológica com a mulher. Para explicar a camisinha, tem de explicar tudo, não adianta enrolar. Como é, vamos comprar uns livrinhos desses em que a abelhinha voa de florzinha em florzinha, o galo pula em cima da galinha e o nenenzinho fica na barriguinha da mãezinha? Vamos ler uns livros de psicologia infantil e pirar de vez? Não, livro de psicologia infantil, não, jamais. Sabem do que mais? Vai ficar tudo por isso mesmo, não vou explicar coisa nenhuma.
Mulher — disse eu, com sotaque sergipano que emprego nessas situações de liderança familiar —, já resolvi o que vou fazer. Não vou fazer é nada, isso é tudo encucação nossa, daqui a pouco ele esquece isso, não vai ter problema nenhum. A mim nunca ninguém ensinou nada, sabia? Nunca ninguém ensinou nada, entendeu?
Eu sei, querido — disse ela.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Mestrinho | Meu Cenário, Me Diz Amor

1565 – Cidade do México

Cerimônia

Cintila a túnica dourada. Quarenta e cinco anos depois de sua morte, Montezuma encabeça a procissão. Os cavaleiros entram, a trote lento, na praça maior da Cidade do México.
Os bailarinos dançam ao som dos tambores e ao lamento dos pífanos. Muitos índios, vestidos de branco, levantam ramos de flores; outros sustentam enormes caçarolas de barro. A fumaça do incenso se mistura aos aromas das comidas picantes.
Na frente do palácio de Cortez, Montezuma desce do cavalo.
A porta se abre. Entre seus pajens, armados com altas e afiadas alabardas, aparece Cortez.
Montezuma humilha sua cabeça, coroada de plumas e ouro e pedras preciosas. Ajoelhado, oferece grinaldas de flores. Cortez toca seu ombro. Montezuma se levanta. Com gesto lento, tira a máscara e descobre os cabelos cacheados e os bigodes de pontas altas de Alonso de Ávila.
Alonso de Ávila, senhor de forca e punhal, dono de índios, terras e minas, entra no palácio de Martín Cortez, marquês do vale de Oaxaca. O filho do conquistador abre sua casa ao sobrinho de outro conquistador.
Hoje começa oficialmente a conspiração contra o rei da Espanha. Na vida da colônia, nem tudo são saraus e torneios, baralhos e caçadas.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Futuro

Gaita de foles e “Maringá”

Uma vez fiz uma viagem do Havre ao Rio de Janeiro em um navio do Lóide já bastante velho, que, não sei por que, vinha todo o tempo adernando para bombordo. Em Portugal, encheu-se de imigrantes e de ex-emigrantes: “patrícios” que tinham prosperado no Brasil e agora retornavam com toda a família de uma viagem de passeio à terrinha. Tudo muito boa gente, mas não muito divertida. Lembro-me da alegria com que saudamos, na noite do segundo dia, um rapaz de boina que apareceu tocando uma gaita de fole... Fez um sucesso tão grande que o comandante o convidou a vir para a primeira classe, dizendo, inclusive, que ele podia fazer as refeições ali.
Nunca me esquecerei daquele vasto refeitório do navio, cheio de pesadas famílias portuguesas a comerem com afinco e a pautarem os dentes com distinção, as mãos em concha a taparem a boca... O médico de bordo sempre com seu vago ar de exilado ou asilado. O comandante, honrando as pessoas com o convite para sua mesa, muito formal; eu sempre o imaginava com um ar nobre, entre os vagalhões, no naufrágio, a declarar que seria o último homem a deixar o navio. Isso devia ser bonito, mas não houve. O mar era implacavelmente liso, dia após dia, a tal ponto que, embora o navio assim tombado sobre o ombro esquerdo não merecesse muita confiança, a gente torcia para haver alguma turbulência no ar e no mar para fazer mal àquelas simpáticas e imensas famílias e prendê-las em suas cabines, destroçadas pelo enjoo. Nada. Bom tempo; sete, oito nós de velocidade... E o tocador de gaita de fole? Cada dia ele parecia mais alegre e tocava com mais afã. O primeiro sinal de que a plateia estava cansada foi o desaparecimento de sua gaita, uma noite. Ele ficou na maior aflição e andava de popa a proa vasculhando e indagando. Houve um passageiro com cara de pateta que sugeriu. “Vai ver, ela caiu n'água...” A resposta continha um palavrão, que deu motivo a protestos em nome das famílias presentes.
Só no dia seguinte, pela manhã, a gaita foi encontrada em um escaler, metida debaixo de uma lona. O homem e sua gaita sumiram, e só de muito longe a gente ouvia o seu som, vindo das profunduras da terceira classe. Respiramos com alívio.
Lembrei-me disso há pouco tempo, quando fui à Escócia em um grupo de brasileiros, e fomos recebidos em um restaurante por grandes e vermelhos homens de saia (kilt) a tocar suas gaitas de fole (bagpipes). Ficamos encantados, mas depois de algum tempo de ouvir gaita e beber, alguns do grupo encetaram uma reação com sambas e marchinhas, e pastorinhas e teu cabelo não nega, mulher rendeira, prenda minha, luar do sertão... Foi pior. Brasileiro que aqui dentro não canta jamais, dana-se a batucar cantando aurora e amélia mulher de verdade, essas coisas.
Razão tinha o Vinicius de Moraes. Ele dizia que não há bar no mundo melhor do que bar de navio; bebida boa, barata, o mar, o embalo do mar... Mas navio sem brasileiro: por algum misterioso motivo, a partir do segundo dia de viagem, quando o barco deixa as águas territoriais, os brasileiros começam a cantar maringá, maringá, né? — dizia ele, contristado.

Rubem Braga, em Recado de primavera

Terra Sunâmbula — Terceiro capítulo


O amargo gosto da maquela

Muidinga acorda com a primeira claridade. Durante a noite, seu sono se estremunhara. Os escritos de Kindzu lhe começam a ocupar a fantasia. De madrugada até lhe parecera ouvir os tais cabritos embriagados de Taímo. E sorri, ao se lembrar. O velho ainda ressona. O miúdo se espreguiça ao sair do machimbombo. O cacimbo é tão cheio que mal se enxerga. A corda do cabrito permanece atada aos ramos da árvore. Muidinga puxa por ela para trazer o bicho às vistas. Então, sente que a corda está solta. O cabrito fugira? Mas, se assim tinha sido, qual a razão daquele vermelho tintando o laço?
Tio, tio! Comeram o cabrito!
O velho sai aos desengonços, tropernando pelas escadas do machimbombo. Primeiro, fica parado, perplexo, a digerir névoas. Depois vai pilando raivas, mãos à cabeça, espicaçador.
Quem disse para amarrar a merda do cabrito aqui?
Grita com superiores ganas de rachar o mundo. Segura a ponta da corda, sacode-a perante o nariz. Muidinga se admira de tais fúrias. Que lamentava o velho assim tão espalhafarto?
Deve ter sido uma hiena, tio...
O velho, ríspido, agarra a cabeça do rapaz e lhe esfrega a corda no rosto.
Veja essa corda, satanhoco. Veja!
O pobre miúdo nem que quisesse. A mão do velho lhe alicateia o pescoço, dobrando seu fracturável corpo sobre os infernos. Me largue, tio. É a súplica que ele consegue, já tombado nos joelhos.
Veja aqui, grita Tuahir. Cortaram essa corda com faca!
Muidinga se arrepinha. Quem estivera ali com tais laminosas intenções? Agora ele entende a fúria do velho. Um cabrito atado só servia para agarrar os olhos dos passeantes.
Mas, tio, não nos encontraram...
Não fala comigo.
Os azedos de Tuahir não esvanecem durante o restante dia. A noite decorre de olhos abertos, vigilantes. O matador do cabrito regressaria? O miúdo se interroga: quem seriam os nocturnos saltinhadores? Matsangas? Naparamas? Simples esfomeados? Quem era que tinha sido não voltou naquela noite. Quando amanhece Muidinga se achega ao velho e se desculpa:
Não volto a fazer sem lhe ouvir.
Tuahir está mais amolecido, respirando aliviado. Fomos salvos pelo machimbombo estar queimado, disse ele. E acrescentou:
Os que vieram não voltam mais. Podemos descansar...
De novo, a morna monotonia se instala. Para distrair o tempo, tiram o banco para fora do autocarro e colocam-no no meio da estrada. Sentam-se a apanhar sol, com mais prazo que os lagartos. Muidinga repara que a paisagem, em redor, está mudando suas feições. A terra continua seca mas já existem nos ralos capins sobras de cacimbo. Aquelas gotinhas são, para Muidinga, um quase prenúncio de verdes. Era como se a terra esperasse por aldeias, habitações para abrigar futuros e felicidades. Mas o mato selvagem não oferece alimento para quem não conhece seus segredos. E a fome começa a beliscar a barriga daqueles dois. O estômago de Muidinga ronrona. O velho lhe pede contas:
Tem fome, não é, miúdo? Quem lhe mandou poupar o cabrito?
O moço está derreado, parece ter regressado ao estado da doença. Está quase parente da estrada, parado e poei-roso. O velho Tuahir se aborrece com a apatia do jovem.
Já esqueceu falar, outra vez? É da fome isso. Sabe o que você faz? Você engole com força. É, engole saliva, faz conta está entrar comida na garganta. A fome fica confusa, assim.
O velho executa, por gestos, a sua própria sugestão. Muidinga não reage. Tuahir ganha um súbito interesse no rosto do rapaz como se estudasse ali os espelhos baços do seu interior. Se levanta, ele e a sua voz, trabalhando juntos numa fúria:
Você ainda continua com essa mania de encontrar seus pais? Está proibido! Ouviste? Nem quero lhe ver pensando nesse assunto. Nunca mais.
Vê-se que se controla para não pontapear o moço, se nota um brilho de violência como se houvessem dentes no seu olhar. Parte os ramos de um arbusto, empurra o banco onde o miúdo permanece sentado.
Olha, lhe vou dizer uma coisa: seus pais faleceram. Sim, eles foram mortos com balas de bandidos. É por causa disso eu sempre estou insistir: abandona essa merda de ideia.
Vira costas. Muidinga parece impassível, sua alma desenhada só em diagonal. Era como se já soubesse, tudo aquilo não constituísse novidade nenhuma. Ou quem sabe não acreditasse na verdade da revelação. Ali ficou, estagnado o resto da manhã. É quase meio-dia quando Tuahir o sacode para anunciar que devem partir pelas redondezas. Era urgente procurar alimento, arranjar mais água.
Vai-se ou não-se?
O moço se ergue, silencioso. E partem, o miúdo segue atrás, contrariado. Aquela era sua primeira incursão pelos matos. A ela se haveriam de seguir outras. Em nenhuma dessas visitas eles se afastariam demasiado do autocarro. Desta primeira vez, eles se descaminham pelo mato, por tempos demorados. Muidinga receia perder o caminho do regresso. E se o velho se perdesse e nunca mais dessem com o machimbombo?
Qual é o problema, Muidinga?
Estou a pensar se nos perdemos...
Se não voltarmos à estrada não perdemos nada.
Era verdade: que valores arrecadava o autocarro agora que as reservas de comida se esgotavam? Porém, para Mui-dinga, não regressar seria enorme desgosto. Ele se admira: o que o prendia àqueles destroços na estrada? Então, lhe veio a resposta clara: eram os cadernos de Kindzu, as estórias que ele vinha lendo cada noite. E sente saudade das linhas, tantas quantos os passos que agora desfia pelos atalhos.
Ao fim da tarde chegam, enfim, a uns antigos terrenos de machamba. Tudo fora abandonado, as culturas se tinham perdido, castanhamente. A terra toda se despira, esperando em vão receber o beijo do arado. Aquelas visões ainda mais os esfaimam, fazendo-os arrotar o seu próprio jejum. O velho se senta numa clareira, na margem da antiga machamba. Recolhe em seu redor secos restos de mandioca. É a única cultura que resta, a única que resistiu à seca. Sacode as raízes e nota dentadas na casca.
Merda! Os ratos chegaram primeiro.
Quando Muidinga se prepara para comer Tuahir grita:
Não comas!
O velho junta às pressas os paus de mandioca e lança--os no capinzal. Andarilha às voltas a curar os nervos. Depois, se senta junto do rapaz e lhe fala:
Vou-lhe contar, miúdo. Foi por causa de mandioca dessa que você apanhou doença.
Tuahir, me conte tudo. Me conte como me encontrou.
O velho, enfim, acede. Limpa o chão onde se vai sentar em preparativo de que se iria demorar. E conta: ele estava no campo de deslocados, vindo de sua aldeia distante. Uma noite lhe pediram para ajudar a enterrar seis crianças recém--falecidas. Os corpos estavam numa cabana, por baixo de uma velha lona. Ninguém sabia quem eram, de onde tinham vindo, a que famílias pertenciam. Estavam despidas, suas roupas tinham sido roubadas mal as crianças perderam força para se defenderem. Tuahir ajudou a arrastar os corpos para um buraco. Enquanto puxava pelas pernas frias se admirava daquele peso tão diminuto. Olhava os braços ondeantes como ramos ossudos, esqueletudos, quando reparou com espanto: os dedos de uma das crianças se cravavam no chão. Não havia dúvida, aqueles dedos se agarravam à vida, lutando contra o abismo. Aquela criança ainda respirava. Era a mais clara e a mais raquítica de todas.
Parem, aquele miúdo ainda está vivo!
Os restantes coveiros se entreolham, duvidosos. E voltam a puxar os corpos: haver um vivo nada altera. Tuahir suplica que parem, os outros se imperturbam. Aqui se enterram os moribundos em viagem sem regresso. O velho sai do grupo, não tem coragem para sepultar um vivente. Já o menino se afundava em areias que atiravam no buraco quando ele se recordou:
Deixem esse: é meu sobrinho...
E você cuida dele?
Sim, eu lhe trato.
E foi assim. Nos princípios, o miúdo só pronunciava estranhas gemências. Passaram-se dias, sem outro alimento que não fosse água. O menino permanecia dobrado em si, vomitando, dolorido da cabeça aos pés. Sem se mexer, ele já trincava seu fim. Tuhair lhe pedia que se levantasse e se mantivesse de pé, nem que fosse por breves tempos. Com ajuda, o moribundo se sustinha. O velho lhe ordenava:
Veja no chão!
Muidinga olhava para o chão, nada notava. Mas as tonturas lhe dificultavam os vistos. O que era que o velho apontava?
Não vês que perdeste a tua sombra?
Era verdade. Por mais que se inclinasse, o moço não produzia nenhuma sombra. Seu corpo parecia mergulhado em eterno meio-dia. Estremecia com o presságio. E o velho pensava: “este já não tem melhora”. Mas ainda assim, insistiu. Nessa altura, o moço ainda segurava algumas palavras. A voz lhe saía em sopro:
Mas eu... o que eu tenho?
Esta doença se chama mantakassa. Você comeu mandioca azeda, dessas amargas que fermentam venenos, dessas que chamamos de maquela.
Ah, a mandioca... eu sei.
O velho tinha consciência do que iria acontecer em seguida. O menino desconhecia, no entanto, tudo que lhe esperava.
Onde estão seus pais?
Meus pais?
O menino cada vez mais se dificultava em falar, atarantonto. Ao ver a criança assim rarefeita, Tuahir sentiu descer-lhe da cabeça o coração. Puxou Muidinga pela mão e lhe prometeu:
Não lhe vou abandonar. Não tenha medo, eu lhe tomo conta.
Tuahir cumpriu. A enfermidade trabalhava no rapaz. Seu corpo se vazava de peso. As humanas faculdades nele se esvaíam. O miúdo quase já não sabia falar, nem andar, nem sequer rir. A última pergunta que fez foi uma noite em que, contemplando seu sofrimento, Tuahir deixou escapar uma lágrima:
Está a chorar de mim?
O velho nem deu resposta, negando com um sacudir de ombros. O miúdo, a seus olhos, já não surgia humano em si, todo. Só vagamente semelhava uma criança. Sua fala se engrunhia, seu corpo se tornava bravio.
Se sabias da mandioca por que comeste então, miúdo?
O velho perguntou mas já sabia a resposta. A fome apertava de mais. Morrer por morrer mais valia ver o amanhã do sol. Muidinga nada respondeu. Apenas pediu que Tuahir chegasse pertinho. Suas forças se estavam a perder. A boca desaguava as últimas palavras, dali a pouco ele já não seria capaz de pronunciar nenhum pensamento. O velho segredou o seguinte conselho: quando morresse, para encontrar caminho do Céu, o miúdo devia escolher só os carreirinhos. Os grandes caminhos nunca lhe levariam lá. Procurasse, sim, os caminhinhos, trilhozitos entre as nuvens, feitos por pé de pouca gente. Depois, não mais falou. O peso da tristeza em sua alma o sufocava. Perder aquele menino, mesmo que desconhecido, era juntar, simultâneas, todas as variedades de dor.
Dobra as pernas, depressa. Não podes morrer de pernas esticadas.
E o velho ajudou o miúdo a dobrar as pernas. Ficou à espera que a morte viesse. Passou-se tempo sem que o moço se tornasse em pessoa concluída. E se passou ao inverso do esperado. No dia seguinte, já Muidinga despertava, fortalecido. Era uma criança a nascer, quase em estado de saúde. O velho se contenta: seus filhos já quase não deixavam memória. Sentia saudade de ser pai, era como se voltasse a ser jovem.
Te vais chamar Muidinga, decidiu.
Era o nome que tinha sido dado a seu filho mais velho, ido e esvaído nas minas do Rand.

Mia Couto, em Terra Sonâmbula

quarta-feira, 28 de maio de 2025

A brasilidade na Arte de Portinari

Índia Carajá (1961), de Cândido Portinari 

Que me ensinem

Meu Deus, e eu que não sei rezar? Como viver então? Não é só para pedir por mim e por outros, mas para sentir, para agradecer, para de algum modo entrar num convento, logo eu que sou tão colérica e feroz.
Existe uma cartomante que me conheceu mocinha. E agora é ela quem me chama e não me cobra nada. Apesar de cartomante é profundamente católica. E tem ido à missa por mim. Obrigada por rezar o que eu não sei.
Oh Deus, eu já fui muito ferida. Mas a quanta gente tenho pelo que agradecer. Só não cito os nomes para não ferir o pudor de quem eu citasse. Tenho recebido olhares que valem por uma reza. E há quem já tenha feito promessa por mim.
E eu? Vou tentar rezar agora mesmo, despudoradamente em público. É assim: Meu Deus – não, é inútil, não consigo. Mas talvez dizer “Meu Deus” já seja uma reza. Há, porém, um pedido que posso fazer e farei agora mesmo: Deus, fazei com que os que eu amo não me sobrevivam, eu não toleraria a ausência. Pelo menos isso eu peço.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Proibido Notícia | Joyce Alane e Dorgival Dantas

Rosas

Todos nós, uma vez por outra, questionamo-nos
sobre aqueles assuntos para os quais não existe
uma resposta pronta: primeiro, a existência de Deus,
o que acontece quando a cortina cai
sem que nada o impeça, nem um beijo,
nem uma visita ao centro comercial,
nem o Super Bowl.

Rosas selvagens”, disse eu, uma manhã.
Vocês têm as respostas?” Se sim,
poderão dizer-ma?”

As rosas riram, suavemente. “Perdoa-nos”,
disseram. “Mas, como vês, agora estamos
absolutamente ocupadas em ser rosas.”

Mary Oliver (versão de Pedro Belo Clara)

Os idos de março

Ao que parece, não foi tão inesperado quanto precavido o destino de César, porque se diz ter sido precedido de maravilhosos sinais e prodígios. No que se refere aos resplendores e fogos do céu, às imagens noturnas que por muitas partes divagavam e às aves solitárias que voavam pela praça, parece que tudo isto não merece ser considerado como indícios de tão grande acontecimento. Estrabão, o filósofo (e geógrafo), refere-se a numerosos homens de fogo que foram vistos correndo pelo céu, e ao escravo de um soldado que lançou muitas chamas de sua mão, de modo que os que o viam pensavam que ele estava pegando fogo — mas quando a chama se extinguiu viu-se que ele não tinha a menor lesão. Tendo César feito um sacrifício, desapareceu o coração da vítima, coisa que se tomou como terrível agouro, isto porque, por natureza, nenhum animal pode existir sem coração. Todavia muitos dizem que um agoureiro lhe anunciou que o aguardava um grande perigo no dia (15) do mês de março, dia que os romanos chamavam de idos (idus). Chegou o dia, e indo César ao Senado, saudou o agoureiro e gracejou: “Já chegaram os idos de março”; ao que contestou este com grande tranquilidade: “Sim, mas ainda não passaram”. No dia anterior, ao jantar com Marco Aurélio, escrevia César umas cartas como era seu costume. Recaindo a conversa sobre qual seria a melhor morte, disse César, antecipando-se a todos: “A não esperada”. Mais tarde, deitado com sua mulher como costumava fazer, repentinamente abriram-se todas as portas e janelas de seu quarto. Perturbado pelo ruído e pela luz — pois que havia um luar muito claro — observou que Calpúrnia dormia profundamente, porém entre sonhos prorrompia em palavras mal pronunciadas e soluços não articulados. Em seu sonho, a mulher de César viu-o destruído no auge de sua glória e majestade— com todas as honrarias decretadas pelo senado, segundo Tito Lívio — e por isso se angustiava e chorava. Quando veio o dia, pediu a César que se houvesse sessão no Senado, que lá não fosse, adiando sua ida para o dia seguinte; e se não acreditava em seus sonhos, que examinasse, por meio de sacrifícios e outros meios de adivinhação, o que seria mais conveniente para ele.

Plutarco, Vidas Paralelas, Caio Júlio César, LXIII (c. 100), em Livro de Sonhos, de Jorge Luís Borges

Numa boa!

Vida Besta, de Galvão Bertazzi

A dissolução

Contente-se com a morte e não a despreze, dado que ela é um dos desejos da natureza. A dissolução é uma das operações naturais trazidas pelas estações da vida, tal como ser jovem e envelhecer, maturar e atingir a maturidade, ter dentes, barba e cabelos grisalhos e procriar, engravidar e parir.
Isto posto, é consistente com o caráter de um homem ponderado aguardar a morte do mesmo jeito que aguarda uma operação da natureza — sem descuido, impaciência ou desdém. Assim como agora você espera a criança sair do ventre de sua esposa, esteja pronto para sua alma desabitar esse envelope.
Não obstante, a fim de se capacitar para reconciliar com a morte, talvez você demande um conforto vulgar que toca o coração. Nesse caso, pense nas coisas das quais você será privado e na moral daqueles com quem a sua alma não mais será misturada.
Não é certo se ofender com os homens. É seu dever cuidar e ser gentil com eles. Lembre-se de que não deixará os homens com os quais compartilha convicções. Viver em meio àqueles cujas convicções partilhamos seria a única possibilidade que poderia nos atrair para o caminho oposto — se é que existe alguma. Agora, entretanto, você mede o quão grande são os problemas oriundos da discordância com aqueles com quem convive, a ponto de dizer: “Venha depressa, ó morte, para que, porventura, eu também não me esqueça de mim mesmo.”

Marco Aurélio, em Meditações

O Apanhador no Campo de Centeio


11

De repente, no caminho para o vestíbulo, comecei a pensar novamente na Jane Gallagher. Aí não houve mais jeito de tirá-la da cabeça. Quando cheguei lá, me sentei numa poltrona caindo aos pedaços e fiquei pensando na Jane e no Stradlater, metidos na porcaria do carro do Ed Banky. Por mais certeza que tivesse de que o Stradlater não tinha conseguido nada com ela – conheço a Jane como a palma da minha mão – mesmo assim não conseguia tirar o troço da cabeça. Conhecia a Jane como a palma da minha mão, no duro. Além de jogar damas, ela gostava de esportes e, depois que ficamos amigos, passamos o verão todo juntos, jogando tênis de manhã e golfe de tarde. Chegamos mesmo a ter bastante intimidade. Não que tenha havido qualquer coisa de físico nem nada – porque não houve mesmo – mas nós passávamos o dia todo juntos. A gente não precisa entrar sempre nesse negócio de sexo para conhecer direito uma garota.
Nós nos conhecemos por causa do cachorro dela, um Dobermann, que vinha se aliviar todo dia no nosso gramado. Minha mão ficava danada da vida, e um dia telefonou para a mãe de Jane e fez um escândalo daqueles por causa do cachorro. Minha mãe é capaz de fazer um bruto escândalo por causa de uma besteira dessas. Aí, alguns dias depois, vi a Jane deitada de bruços na beira da piscina do clube. Cheguei e dei um olá para ela. Sabia que era nossa vizinha, mas nunca tínhamos conversado nem nada. Ela me deu um gelo tremendo no começo, e depois tive um trabalhão para convencê-la de que pouco me importava onde o cachorro dela ia se aliviar. Por mim, podia ser até na sala de visitas. De qualquer maneira, depois disso acabamos amigos e naquela mesma tarde jogamos golfe juntos. Me lembro que ela isolou oito bolas. Oito. Minha maior dificuldade foi convencê-la a pelo menos abrir os olhos na hora de dar a tacada, mas, no fim, consegui que ela fizesse progressos fabulosos. Jogo golfe muito bem. Tem gente que nem acredita quando digo qual é o meu escore normal. Uma vez, quase entrei num curta metragem sobre golfe, mas mudei de ideia no último minuto. Pensei cá comigo que uma pessoa que odeia o cinema tanto quanto eu seria um cretino se aceitasse aparecer num filme.
A Jane era uma garota muito engraçada. Não se podia dizer que fosse propriamente bonita. Para mim era um estouro. Quando ela começava a falar sobre um troço qualquer e ficava excitada, costumava mover a boca em cinquenta direções ao mesmo tempo, lábios e tudo. Era o máximo. E ela nunca fechava a boca completamente. Estava sempre entreaberta, principalmente quando ela se preparava para dar uma tacada ou estava lendo um livro. Lia sem parar, e bons livros. Costumava ler um bocado de poesia e tudo. Foi a única pessoa, fora de minha família, a quem mostrei a luva de beisebol do Allie, com os poemas escritos por todo o lado. Ela não chegou a conhecer o Allie nem nada, porque aquele era o primeiro verão que passava no Maine – antes disso ela costumava ir para Cape Cod – mas contei a ela uma porção de coisas sobre o Allie. Ela se interessava por esse tipo de coisa.
Minha mãe não gostava muito dela. Achava que a Jane e a mãe dela eram metidas a besta, porque não a cumprimentavam quando se encontravam na cidadezinha. E isso acontecia a toda hora, porque a Jane também ia lá com a mãe dela num La Salle conversível, fazer compras no mercado. Minha mãe nem achava a Jane bonita. Mas eu achava. O caso é que eu gostava do jeitinho dela, só isso.
Me lembro de uma tarde. Foi a única vez em que quase nos beijamos. Era um sábado. Eu estava na varanda da casa dela e lá fora chovia que não acabava mais. Estávamos jogando damas. De vez em quando eu gostava de mexer com ela por causa da mania de não tirar nunca as damas da última fila. Mas eu nunca tinha vontade de mexer muito com ela. Bem que eu gosto de gozar uma guria quando tenho uma chance, mas acontece um troço engraçado comigo. As garotas de quem mais gosto são aquelas que nunca me dão muita vontade de mexer com elas. De vez em quando, acho até que elas gostariam duma bobagem dessas – pra dizer a verdade, tenho certeza de que gostariam – mas é difícil começar, depois de se conhecer uma garota por algum tempo sem nunca ter dado um gozo nela. Seja lá como for, eu estava falando sobre aquela tarde quando a Jane e eu quase nos beijamos. Chovia pra diabo. Nós estávamos na varanda quando, de repente, apareceu na porta o beberrão que era casado com a mãe dela e perguntou à Jane se havia cigarros em casa. Eu mal conhecia o sujeito, mas parecia o tipo do cara que só fala com a gente se estiver precisando de alguma coisa.
Era um péssimo caráter. De qualquer maneira, a Jane nem respondeu quando ele perguntou se ela sabia onde estavam os cigarros. O cara perguntou de novo, mas ela continuou calada. Nem tirou os olhos do tabuleiro. Finalmente, o sujeito voltou para dentro. Aí perguntei a ela o que é que estava havendo. Nem a mim ela respondeu. Fingiu que estava se concentrando no lance seguinte e tudo. Aí, de repente, estalou uma lágrima no tabuleiro. Foi num dos quadrados vermelhos – me lembro como se fosse agora. E ela esfregou a lágrima no tabuleiro com o dedinho. Não sei por que, mas o negócio me chateou pra caralho. Aí me levantei e me sentei ao lado dela no sofá – para falar a verdade, quase me sentei no colo dela. Aí ela começou a chorar mesmo, e só me lembro que comecei a beijá-la toda – em qualquer lugar - olhos, nariz, testa, sobrancelhas e tudo, as orelhas – o rosto todo menos a boca. Não sei como, mas ela sempre arranjava um jeitinho de não me dar a boca. De qualquer maneira, nunca mais estivemos tão perto um do outro. Pouco depois ela se levantou, entrou e voltou com um suéter vermelho e branco que eu achava o máximo. Aí fomos à porcaria dum cinema. No caminho, perguntei a ela se o tal de Cudahy – era assim que se chamava o porrista – tinha alguma vez se metido a engraçadinho com ela. Jane era muito garota, mas tinha um corpo infernal, e eu esperava qualquer coisa dum filho da mãe como aquele cara. Mas ela disse que não, e nunca pude descobrir qual era o problema. Tem garotas que a gente não consegue nunca saber qual é o problema delas.
Também não quero dar a impressão de que ela era uma porcaria dum iceberg ou coisa parecida, só porque nunca ficamos de agarramento. Não é isso. Vivíamos o tempo todo de mãos dadas, por exemplo. Não parece grande coisa, reconheço, mas era fabuloso ficar de mãos dadas com ela. Quando estão de mãos dadas com a gente, a maioria das garotas deixam a mão morrer dentro da mão da gente, ou então acham que têm de ficar mexendo os dedos o tempo todo, como se estivessem com medo de estar chateando a gente ou coisa que o valha. Com a Jane era diferente. Nós entrávamos numa droga dum cinema e imediatamente ficávamos de mãos dadas até o filme acabar. E isso sem ficar mudando de posição, sem fazer nenhuma complicação. Com a Jane a gente nem se preocupava se a mão estava suada ou não. Só sabia uma coisa, estava feliz, no duro.
Tem outra coisa que me lembrei agora. Quando estávamos no cinema, aquele dia, a Jane fez um troço que me deixou maluco. Estava ainda no jornal ou coisa parecida, quando, de repente, senti a mão dela no meu pescoço. Foi um gesto engraçado, esse dela. Jane era muito garota e tudo, e as moças que a gente vê pondo a mão no pescoço de alguém têm, quase todas, uns vinte e cinco ou trinta anos, e geralmente fazem isso com o marido ou um filho pequeno. Eu, por exemplo, de vez em quando faço isso com minha irmã menor, a Phoebe. Mas se uma garota é um bocado moça e faz um troço desses, é tão bonito que a gente nem sabe o que fazer.
De qualquer jeito, era nisso que eu estava pensando, sentado naquela poltrona caindo aos pedaços, no vestíbulo do hotel. Pensando na Jane. Por pouco não ficava doido toda vez que chegava na estória dela com o Stradlater na porcaria do carro do Ed Banky. Eu sabia que ela não ia deixar o Stradlater chutar em gol, mas mesmo assim ficava furioso. Pra ser sincero, nem gosto de falar nisso.
Não havia mais ninguém no vestíbulo. Até as louras com pinta de vigaristas já tinham sumido e, de repente, me deu uma bruta vontade de ir embora. O lugar era meio deprimente, e eu não estava cansado nem nada. Por isso, subi até o quarto e vesti o casaco. Aproveitei para dar uma olhada pela janela e ver se todos os tarados continuavam em ação, mas as luzes já estavam apagadas. Peguei o elevador outra vez, desci, chamei um táxi e disse ao chofer para me levar ao Ernie's. O Ernie's é uma boate em Greenwich Village onde meu irmão D. B. ia muito antes de ir se prostituir em Hollywood. De vez em quando me levava com ele. O Ernie é um pretão gordo que toca piano. É metidíssimo a besta e mal cumprimenta as pessoas, a não ser que seja um figurão, um cara famoso ou coisa que o valha, mas toca piano de verdade. É sério, ele é tão bom que chega quase a ser chato. É difícil de explicar, mas é isso mesmo. É claro que gosto de ouvi-lo tocar, mas, de vez em quando, dá vontade de arrebentar a porcaria do piano dele. Acho que é porque, quando está tocando, ele dá a impressão de ser o tipo do camarada que só fala com uma pessoa quando sabe que ela é um figurão.

J. D. Salinger, em O Apanhador no Campo de Centeio