quarta-feira, 30 de abril de 2025

Gal Costa | O Amor

Consolo na praia

Vamos, não chores…
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te — de vez — nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.

Carlos Drummond de Andrade, em A Rosa do Povo

Celeste, a Ovelha Azul

  

Samba de breque

Esta história é verdade.
Um tio meu vinha subindo a rua Lopes Quintas, na Gávea – era noite – quando ouviu sons de cavaquinho provenientes de um dos muitos casebres que minha avó viúva permite nos seus terrenos. O cavaco cavucava em cima de um samba de breque e esse meu tio, compositor ele próprio, resolveu dar uma estirada até a casa, que era a de um conhecido seu, companheiro de música, uma rapaz operário com mulher e uma penca de filhos. Tinha toda a intimidade com a família e às vezes ficava por lá horas inteiras, com o amigo, cada qual palhetando no seu cavaquinho, puxando música madrugada adentro.
Nessa noite o ambiente era diverso. À luz mortiça da sala meu tio viu a família dolorosamente reunida em torno de uma pequena mesa mortuária, sobre a qual repousava o corpo de um “anjinho”. Era o caçula da casa que tinha morrido, e meu tio, parado à porta, não teve outro jeito senão entrar, dar as condolências de praxe e reunir-se ao velório. O ambiente era de dor discreta – tantos filhos! – de modo que ao fim de poucos minutos, não se sentindo por demais necessário, meu tio resolveu partir. Tocou no braço da mulher e fez-lhe um sinal. Mas esta, saindo da sua perplexidade, pediu-lhe que entrasse para ver o amigo.
Foi encontrá-lo num miserável aposento interior, sentado num catre, o cavaquinho na mão.
Pois é, velhinho. Veja só... O meu caçula...
Meu tio bateu-lhe no ombro, consolando-o. A presença amiga trouxe para o pai uma pequena e doce crise de lágrimas de que ele muito se desculpou com ar machão:
Poxa, seu! Até pareço mulher! Não repara, hein companheiro...
Meu tio, com ar mais machão ainda, fez qual-que-bobagem, essa coisa. Depois o rapaz disse:
Tenho um negocinho para te mostrar...
E teve um gesto vago, apontando a sala onde estava o filho morto, como a significar qualquer coisa que meu tio não compreendeu bem.
Manda lá, conta meu tio que, depois de uma introdução dentro das regras, o rapaz entrou com um samba de breque que, cantando em voz respeitosamente baixa e ainda úmida de choro, dizia mais ou menos o seguinte:

Tava feliz
Tinha vindo do trabalho
E ainda tinha tomado
Uma privação de sentidos no boteco do lado
Que bom que estava o carteado...
O dia ganho
E mais um extra pra família
Resolvi ir para a casa
E gozar
A paz do lar –
Não há maior maravilha!
Mal abro a porta
Dou com uma mesa na sala
A minha mulher sem fala
E no ambiente flores mil
E sobre a mesa
Todo vestido de anjinho
O Manduca meu filhinho
Tinha esticado o pernil.

Diz meu tio que, entre horrorizado e comovido com aquela ingênua e macabra celebração do filho morto, ouviu o amigo, a pipocar lágrimas dos olhos fixos no vácuo, rasgar o breque do samba em palhetadas duras:

 O meu filhinho
Já durinho
Geladinho!

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

Benefício mútuo

Os homens existem para o benefício uns dos outros. Ensine-os ou tolere-os.

Marco Aurélio, em Meditações

O Apanhador no Campo de Centeio


8

Era muito tarde para chamar um táxi ou coisa parecida, por isso fui mesmo a pé até a estação. Não era tão longe, mas fazia um frio danado, a neve dificultava a caminhada e as malas iam chacoalhando como umas desgraçadas de encontro a minhas pernas. Mas, de qualquer maneira, até que me sentia bem com o ar puro e tudo. O único problema era que o frio fazia meu nariz doer, e aumentava a dor que eu já estava sentindo na parte de dentro do meu lábio superior, onde o safado do Stradlater tinha me acertado. Ele tinha arrebentado meu lábio contra os dentes, e estava doendo pra chuchu. Mas minhas orelhas estavam bem quentinhas. Aquele chapéu que eu havia comprado tinha protetores de orelha, que eu tratei de abaixar. Estava pouco ligando para minha aparência.
Tive bastante sorte quando cheguei na estação, porque só precisava esperar uns dez minutos pelo próximo trem. Enquanto esperava, apanhei um bocado de neve e lavei minha cara, que ainda estava cheia de sangue.
Normalmente, eu gosto de andar de trem, principalmente de noite, com as luzes acesas e as janelas tão escuras, e um desses sujeitos passando pelo corredor, vendendo café, sanduíches e revistas. Normalmente eu compro um sanduíche de presunto e mais ou menos quatro revistas. Num trem, de noite, sou até capaz de ler uma dessas estórias imbecis sem vomitar de nojo. Uma dessas estórias com uma porção de machões de queixo ossudo, chamados David, e uma porção de garotas bestas, chamadas Linda ou Márcia, que estão sempre acendendo os cachimbos dos David para eles. Normalmente, consigo ler até mesmo uma dessas estórias cretinas se estou andando de trem, de noite. Mas dessa vez foi diferente. Pura e simplesmente, não estava no estado de espírito necessário. Fiquei só sentado, sem fazer nada. A única coisa que fiz foi tirar meu chapéu de caça e guardá-lo no bolso.
De repente, uma dona tomou o trem em Trenton e sentou ao meu lado. Já era um bocado tarde e tudo, e por isso o vagão estava praticamente vazio, mas ela sentou bem ao meu lado, e não em qualquer banco vazio, porque vinha carregando uma mala enorme e eu estava logo no primeiro banco. Deixou a mala bem no meio do corredor, onde o condutor ou qualquer um podia tropeçar nela. Estava usando umas orquídeas, como se tivesse acabado de sair de uma baita duma festa ou coisa parecida. Acho que ela devia ter uns quarenta ou quarenta e cinco anos, mas era um bocado bonita. Sou doido por mulher. No duro. Não que eu seja nenhum tarado nem nada, embora seja bastante macho. O negócio é que eu gosto mesmo das mulheres. Elas estão sempre deixando a porcaria das malas delas bem no meio dos corredores.
De qualquer modo, nós estávamos sentados lá e, de repente, ela me perguntou:
Desculpe, mas essa etiqueta não é do Colégio Pencey?
Ela estava olhando para minhas malas, em cima da prateleira.
É sim – respondi. Ela tinha razão. Havia mesmo uma droga duma etiqueta do Pencey em uma das minhas malas. Reconheço que era o tipo do negócio idiota de se usar.
Ah, você estuda no Pencey? – perguntou. Ela tinha uma voz agradável. Era mais uma voz agradável de telefone. Ela bem que devia carregar uma porcaria dum telefone com ela por toda parte.
É, eu estudo lá, sim – respondi.
Ah, que interessante. Então talvez você conheça meu filho, o Ernest Morrow. Ele também está lá no Pencey.
Conheço sim. Ele é da minha turma.
O filho dela era sem dúvida o maior sacana que já tinha passado pelo Pencey, em toda a infeliz história do colégio. Ele estava sempre andando pelo corredor, depois de tomar banho, batendo com a toalha encharcada na bunda dos outros. É esse o tipo de cara que ele era.
Ah, que interessante! – ela disse, mas sem ser besta nem nada. Estava só querendo ser simpática. – Vou contar ao Ernest que nós nos encontramos – continuou ela. – Posso saber o seu nome, meu filho?
Rudolph Schmidt – respondi. Não estava com a mínima vontade de contar a ela toda a história da minha vida. Rudolph Schmidt era o nome do zelador do nosso dormitório.
Você gosta do Pencey? – ela perguntou.
O Pencey? Não é de todo mau. Não é nenhum paraíso nem nada, mas é tão bom quanto a maioria dos colégios. Alguns professores são um bocado conscienciosos.
O Ernest adora o Pencey.
É, eu sei que ele gosta de lá – eu disse. Aí comecei a embromar um pouco. – Ele se adapta muito bem às coisas. No duro. Ele realmente sabe se adaptar ao meio.
Você acha? – ela perguntou. Parecia interessada pra burro.
O Ernest? Claro que sim.
Aí fiquei olhando enquanto ela tirava as luvas. Puxa, a mulherzinha estava coberta de pedraria.
Acabei de quebrar uma unha saindo do táxi.
Olhou para e mim e sorriu. Ela tinha um sorriso tremendamente simpático. Verdade. A maioria das pessoas ou não sabem sorrir ou têm um sorriso pavoroso.
Eu e o pai do Ernest às vezes nos preocupamos com ele. Às vezes pensamos que ele não faz amigos com facilidade.
Como assim?
Bem, ele é um rapaz muito sensível. Ele nunca foi de ter muitos amigos. Talvez porque encara as coisas com seriedade demais para a idade dele.
Sensível. Essa era a maior. O tal do Morrow tinha tanta sensibilidade quanto um assento de privada.
Olhei bem para ela. Não me parecia nenhuma imbecil. Parecia mesmo que era capaz de saber direitinho que bom sacana que era o filho dela. Mas não se sabe nunca, quando se trata da mãe de alguém. Todas as mães são um pouquinho amalucadas. Mas o fato é que eu estava simpatizando com a mãe do Morrow. Ela era cem por cento.
A senhora aceita um cigarro?
Ela olhou em volta: – Acho que não se pode fumar neste carro, Rudolph – ela disse. Rudolph. Essa foi infernal!
Não faz mal não. A gente pode fumar até eles começarem a reclamar – respondi.
Aceitou um cigarro, que eu acendi para ela. Fumava de uma maneira simpática. Tragava e tudo, mas não engolia a fumaça, como a maioria das mulheres da idade dela. Tinha um bocado de charme. Para dizer mesmo a verdade, ela era um bocado atraente sexualmente.
Ela estava me olhando de um jeito meio esquisito. – Pode ser que eu esteja enganada – ela disse, de repente – mas acho que seu nariz está sangrando, meu filho.
Acenei com a cabeça e apanhei meu lenço.
Me acertaram uma bola de neve – falei. – Uma dessas bem geladas.
Eu provavelmente teria contado a ela tudo que tinha de fato acontecido, mas ia tomar muito tempo. Mas eu simpatizava com ela. Estava começando a me sentir chateado de haver dito que meu nome era Rudolph Schmidt.
O Ernie – eu disse – ele é um dos sujeitos mais populares do Pencey. A senhora sabe disso?
Não, não sabia.
Sacudi a cabeça afirmativamente.
Na verdade, custou um bocado até o pessoal todo conhecer bem o Ernie. Ele é um sujeito engraçado. Um sujeito estranho, de certo modo – a senhora compreende? Por exemplo, a primeira vez que eu encontrei com ele. Nessa primeira vez, pensei que ele era um sujeito meio metido a besta. Foi o que eu pensei. Mas ele não é, não. O caso é que ele tem uma personalidade muito original, e a gente custa um pouco a conhecer ele bem.
A mãe dele não disse nada, mas, puxa, valia a pena ver a cara dela. Parecia colada na poltrona. É sempre assim, a gente fala com a mãe de alguém, e a única coisa que elas querem ouvir é como o filho delas é bacana pra chuchu.
Aí eu comecei a embromar mesmo.
Ele falou à senhora sobre as eleições? – perguntei. – As eleições na turma?
Ela fez que não com a cabeça. Tinha posto a mulherzinha em transe. No duro.
Bem, muitos de nós queríamos que o Ernie fosse o chefe da turma. Era realmente uma escolha unânime. Quer dizer, ele era o único sujeito realmente capaz de ocupar o cargo – eu disse. Puxa, agora ninguém me segurava mais. – Mas quem acabou sendo eleito foi outro cara, o Harry Fencer. E sabe por quê? Pela única e exclusiva razão de que o Ernie não quis ser candidato. Só porque ele é tão modesto, tão tímido e tudo. Ele recusou... Puxa, ele é modesto mesmo. A senhora deve procurar fazer com que ele se modifique um pouco nesse ponto.
Olhei para ela.
Ele falou à senhora sobre isso?
Não, não me disse nada.
Sacudi a cabeça. – O Ernie é assim mesmo. É evidente que não ia contar. Esse é o defeito dele – ser tão tímido e modesto. A senhora deve realmente tentar fazer com que ele seja um pouco mais desembaraçado.
Nesse exato instante, o condutor apareceu para conferir a passagem dela, e me deu uma chance de parar com a embromação. Mas até que eu estava satisfeito de ter dito aquelas besteiras. Um sujeito assim como o Morrow, que está sempre batendo com a toalha na bunda dos outros – pra machucar mesmo – não é safado só quando é garoto. É safado a vida toda. Mas aposto que, depois de toda aquela baboseira que eu falei, a mãe dele vai pensar sempre nele como o sujeito tímido e modesto pra burro, que não deixou a gente elegê-lo chefe da turma. Certamente vai pensar, não se sabe nunca. As mães não são lá muito espertas nesse tipo de coisa.
A senhora aceita um drinque? – perguntei. Estava com vontade de beber um troço qualquer. – Podemos ir até o carro-restaurante. Vamos?
Meu filho, você tem idade para pedir bebidas alcoólicas? – ela perguntou. Mas sem ser desagradável. Ela era simpática demais para ser desagradável.
Poder não posso, lá isso é verdade, mas normalmente me servem por causa da minha altura – respondi. – E, além disso, eu tenho um bocado de cabelo branco.
Virei de lado e mostrei a ela os meus cabelos brancos. Ela ficou fascinada com o troço.
Vamos, a senhora não quer me acompanhar? – insisti. Eu bem que gostaria que ela fosse comigo.
Acho que não, mas muito obrigada, meu filho. E, de qualquer maneira, o carro-restaurante deve estar fechado. Já é muito tarde sabe?
Ela tinha razão. Eu já havia até esquecido da hora. Aí ela olhou para mim e perguntou aquilo que eu estava mesmo com medo que ela perguntasse.
O Ernest me escreveu dizendo que voltava para casa na quarta-feira, que as férias de Natal iam começar na quarta-feira. Espero que você não tenha sido chamado para casa de repente por causa de doença na família.
Ela realmente parecia preocupada. Era evidente que não estava perguntando só porque era enxerida nem nada.
Não, todo mundo vai bem lá em casa – respondi. – Sou eu mesmo. Tenho que fazer uma operação.
Oh! Que pena! – disse ela. E estava com pena mesmo. Me arrependi imediatamente de ter dito aquilo, mas agora já era tarde demais.
Não é nada sério, não. Estou só com um tumorzinho no cérebro.
Ah, não! – ela falou. Levantou a mão até a boca e tudo.
Ah, vai correr tudo bem. É bem perto da superfície, e é bem pequenininho e tudo. Eles podem tirar o troço em dois minutos.
Aí eu comecei a ler um horário de trem que tinha trazido no bolso. Só para parar de mentir. Quando eu começo, posso ficar mentindo horas a fio, se me dá vontade. Sem brincadeira. Horas.
Não conversamos muito depois disso. Ela começou a ler o Vogue que tinha trazido, e eu fiquei olhando algum tempo pela janela. Ela desceu em Newark. Desejou que tudo corresse bem na operação. Sempre me chamando de Rudolph. Aí me convidou para visitar o Ernie durante o verão em Gloucester, Massachussets. Disse que a casa deles era bem em frente da praia e tinha quadra de tênis e tudo, mas eu só agradeci e disse a ela que ia para a América do Sul com minha avó. Essa era mesmo de amargar, porque minha avó quase nunca sai nem de casa, a não ser talvez para ir a uma porcaria duma matinée ou coisa que o valha. Mas eu não ia visitar aquele filho da puta do Morrow nem por todo o dinheiro do mundo, nem que eu estivesse desesperado.

J. D. Salinger, em O Apanhador no Campo de Centeio

terça-feira, 29 de abril de 2025

Cimafunk, Chucho Valdés, La Tribu | Mambo Influenciado

Dissonância cognitiva (Os cinco sentidos)

Quem não quer respirar –
Nem a queima da Amazônia
muda a sua visão.

Quem não quer escutar –
Não faz sentido
Os acordes de um violão.

Quem não que enxergar –
Passa desapercebida
A trave no seu coração.

Quem não quer saborear –
Todo veneno do mundo
Não tira o sabor do melão.

Quem não quer acariciar –
Contatos, beijos, abraços
Estão fora do seu sermão.

Elilson José Batista, em Sal da Palavra

O crime foi em Granada

Imagem na internet, sem autoria

Justamente quando escrevo estas linhas, a Espanha oficial celebra muitos – tantos! – anos desde a insurreição. Neste momento, em Madri, o Caudilho vestido de ouro e azul, rodeado pela guarda moura, junto ao embaixador norte-americano, ao da Inglaterra e a vários outros, passa as tropas em revista. Tropas compostas, em sua maioria, de rapazes que não conheceram aquela guerra.
Eu é que a conheci. Um milhão de espanhóis mortos! Um milhão de exilados! Parecia que jamais se apagaria da consciência humana esse espinho sangrento. No entanto, os rapazes que agora desfilam diante da guarda moura provavelmente ignoram a verdade dessa história tremenda.
Tudo começou para mim na noite de 19 de julho de 1936. Um chileno simpático e aventureiro, chamado Bobby Deglané, era empresário de catch-as-catch-can no grande circo Price de Madri. Manifestei-lhe minhas reservas sobre a seriedade desse esporte e ele me convenceu de que eu fosse ao circo, junto com García Lorca, para verificar a autenticidade do espetáculo. Convenci Federico e ficamos de nos encontrar ali numa hora combinada. Passaríamos o tempo vendo as truculências do Troglodita Mascando, do Estrangulador Abissínio e do Orangotango Sinistro.
Federico faltou ao encontro marcado. Já estava a caminho da morte. Nunca mais nos vimos. Seu encontro era com outros estranguladores. E desse modo a guerra da Espanha, que mudou minha poesia, começou para mim com o desaparecimento de um poeta.
Que poeta! Nunca vi reunidos como nele a graça e o gênio, o coração alado e a cascata cristalina. Federico García Lorca era o duende dissipador, a alegria centrífuga que recolhia no seio e irradiava como um planeta a felicidade de viver. Ingênuo e brincalhão, cômico e provinciano, músico singular, mímico esplêndido, impressionável e supersticioso, radiante e gentil, era uma espécie de resumo das idades da Espanha, do florescimento popular, um produto árabeandaluz que iluminava e perfumava como um jasmineiro todo o cenário daquela Espanha, ai de mim!, desaparecida.
Seduzia-me o grande poder metafórico de García Lorca e me interessava tudo o que escrevia. Por sua vez ele me pedia às vezes que eu lesse para ele meus últimos poemas e, no meio da leitura, me interrompia aos gritos: “Não continua, não continua, que me influencias!”
No palco e no silêncio, na multidão e na intimidade, era um multiplicador da beleza. Nunca vi ninguém com tanta magia nas mãos, nunca tive um irmão mais alegre. Ria, cantava, fazia música, saltava, inventava, era uma chispa constante. Pobrezinho! Tinha todos os dons do mundo e, assim como foi um trabalhador de ouro, uma abelha-mestra da poesia maior, era um perdulário de seu talento.
Escuta – dizia, tomando-me pelo braço –, estás vendo essa janela? Não achas que é chorpatélica?
E que significa chorpatélica?
Também não sei mas temos que saber o que é ou não chorpatélico. Senão estamos perdidos. Olha esse cachorro como é chorpatélico!
Ou me contava que num colégio de meninos de tenra idade, em Granada, convidaram-no para uma comemoração do Quixote e que, quando chegou na sala de aula, todos os meninos cantaram sob a direção da diretora:

Sempre sempre será celebrado
de um a outro confim
este livro que foi comentado
por Dom F. Rodriguez Marín.

Certa vez dei uma conferência sobre García Lorca, anos depois de sua morte, e um dos espectadores me perguntou:
Porque o senhor disse na Ode a Federico que por ele “pintam de azul os hospitais”?
Olhe, companheiro – respondi –, fazer perguntas desse tipo a um poeta é como perguntar a idade das mulheres. A poesia não é uma matéria estática mas uma corrente fluida que muitas vezes escapa das mãos do próprio criador. Sua matéria-prima está composta de elementos que são e ao mesmo tempo não são, de coisas existentes e inexistentes. De qualquer modo tratarei de responder-lhe com sinceridade. Para mim a cor azul é a mais bela das cores. Tem a implicação do espaço humano, como a abóbada celeste, em direção à liberdade e à alegria. A presença de Federico, sua magia pessoal, impunham uma atmosfera de júbilo ao seu redor. Meu verso provavelmente quer dizer que inclusive os hospitais, inclusive a tristeza dos hospitais, podiam se transformar sob o sortilégio de sua influência e se verem convertidos subitamente em belos edifícios azuis.
Federico teve uma antevisão de sua morte. Certa vez que voltava de uma tournée teatral me chamou para contar um fato muito estranho. Com os artistas de “La Barraca” tinha chegado a um povoado longínquo de Castilla, acampando nas redondezas. Fatigado pelas preocupações da viagem, Federico não conseguia dormir. Ao amanhecer levantou-se e saiu a vagar sozinho pelos arredores. Fazia frio, esse frio de punhal que Castilla reserva para o viajante, para o forasteiro. A névoa se desprendia em massas brancas e convertia tudo em sua dimensão fantasmagórica.
Um grande gradil de ferro oxidado, estátuas e colunas em ruínas, caídas entre as folhas secas. Deteve-se na porta de uma antiga propriedade. Era a entrada para o extenso parque de uma quinta feudal. O abandono, a hora e o frio tornavam a solidão mais penetrante. Federico sentiu-se subitamente oprimido pelo que viria daquele amanhecer, por algo confuso que ali tinha que acontecer. Sentou-se num capitel tombado.
Um carneiro pequenino começou a pastar entre as ruínas e sua aparição era como um pequeno anjo de névoa que humanizava subitamente a solidão, caindo como uma pétala de ternura sobre a solidão do lugar. O poeta sentiu-se acompanhado.
De súbito um bando de porcos entrou também no recinto. Eram quatro ou cinco animais escuros, porcos negros semisselvagens com fome feroz e patas de pedra.
Federico presenciou então uma cena espantosa. Os porcos lançaram-se sobre o cordeiro e, ante o horror do poeta, despedaçaram-no e o devoraram.
Esta cena de sangue e solidão fez com que Federico ordenasse a seu teatro ambulante continuar imediatamente o caminho.
Ainda transido de horror, três meses antes da guerra civil, Federico me contava esta história terrível.
Vi depois, cada vez com maior clareza, que aquele acontecimento foi a representação antecipada de sua morte, a premonição de sua incrível tragédia.

Federico García Lorca não foi fuzilado; foi assassinado. Naturalmente ninguém podia pensar que o matariam algum dia. De todos os poetas da Espanha era o mais amado, o mais querido e o mais semelhante a um menino pela sua alegria maravilhosa. Quem poderia crer que tivesse sobre a terra, e sobre sua terra, monstros capazes de um crime tão inexplicável?
Aquele crime foi para mim o acontecimento mais doloroso de uma longa luta. A Espanha sempre foi um campo de gladiadores, uma terra com muito sangue. A praça de touros, com seu sacrifício e sua elegância cruel, repete – ornamentado festivamente – o antigo combate mortal entre a sombra e a luz.
A Inquisição encarcera Frei Luís de León, Quevedo padece em seu calabouço, Colón caminha com grilhões nos pés. E o espetáculo máximo foi o ossário no Escorial, como agora é o Monumento a los Caídos com uma cruz sobre um milhão de mortos e sobre prisões escuras e incontáveis.

Pablo Neruda, em Confesso que vivi

Téo & O Mini Mundo

O milagre

Dias maravilhosos em que os jornais vêm cheios de poesia... e do lábio do amigo brotam palavras de eterno encanto... Dias mágicos... em que os burgueses espiam, através das vidraças dos escritórios, a graça gratuita das nuvens…

Mário Quintana, em Sapato Florido

Servos

Haja ou não deuses, deles somos servos.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

Capítulo XVI. Do que sucedeu ao engenhoso fidalgo na venda que ele imaginava ser castelo


O vendeiro, que viu D. Quixote atravessado no asno, perguntou a Sancho que mal trazia. Respondeu-lhe este que nada era, que tinha dado uma queda dum penedo abaixo, e que trazia algum tanto amolgadas as costelas.
Tinha o vendeiro por mulher uma, não da condição costumada nas de semelhante trato, porque naturalmente era caritativa, e se condoia das calamidades do próximo. Acudiu esta logo a curar a D. Quixote, e fez com que uma sua filha donzela, rapariga, e de bem bom parecer, a ajudasse a tratar do hóspede.
Servia também na venda uma moça asturiana, larga de cara, cabeça chata por detrás, nariz rombo, torta de um olho, e do outro pouco sã. Verdade é que a galhardia do corpo lhe descontava as outras faltas; não tinha sete palmos dos pés à cabeça; e os ombros, que algum tanto lhe cargavam, a faziam olhar para o chão mais do que ela quisera.
Esta gentil moça pois ajudou a donzela, e entre ambas engenharam uma cama suficientemente má para D. Quixote, num sótão, que dava visíveis mostras de ter noutro tempo servido de palheiro muitos anos, no qual se alojava também um arrieiro, que tinha a sua cama feita um pouco adiante da do nosso D. Quixote, e ainda que era das enxergas e mantas dos machos, levava ainda assim muita vantagem à do cavaleiro, que só se compunha de quatro tábuas mal acepilhadas, sobre dois bancos desiguais, e dum colchão que em delgado mais parecia colcha, recheado de godelhões, que, se não mostrassem por alguns buracos serem de lã, ao toque e pela dureza pareciam calhaus, dois lençóis como de couro de adarga, e um cobertor cujos fios se podiam contar sem escapar um único.
Nesta amaldiçoada cama se deitou D. Quixote, e logo a vendeira e sua filha o emplastraram de alto a baixo, alumiando-lhes Maritornes (que assim se chamava a asturiana); e vendo a vendeira o corpo de D. Quixote tão pisado em muitas partes, disse que mais pareciam aquilo pancadas, que só queda.
Não foram pancadas — acudiu Sancho — é que o penedo tinha muitos bicos, e cada um deles lhe fez sua pisadura.
E ajuntou logo:
Olhe, senhora, se faz isso de modo que sobejam algumas estopas, que não faltará quem delas precise, que também a mim me doem um pouco os lombos.
Pelo que vejo — disse a vendeira — também vós caístes?
Não caí — respondeu Sancho — mas do susto que tive de ver cair a meu amo de tal modo me dói o corpo, que é como se me tivessem dado mil bordoadas.
Podia muito bem ser isso — disse a donzela — que a mim muitas vezes me tem acontecido sonhar que caía duma torre abaixo, e não acabava nunca de chegar ao chão; e quando despertava do sonho, achava-me tão moída e quebrantada, como se tivera caído deveras.
Assim mesmo é que é, senhora — respondeu Sancho Pança; — também eu, sem sonhar nada, e estando mais acordado do que estou agora, acho-me com pouco menos pisaduras que meu amo o senhor D. Quixote.
Como se chama este cavaleiro? — perguntou a asturiana Maritornes.
D. Quixote de la Mancha — respondeu Sancho — é cavaleiro de aventuras, e dos melhores e mais fortes que de longo tempo para cá se tem visto neste mundo.
Que vem a ser cavaleiro de aventuras? — replicou a serva.
Tão novata sois no mundo, que o ignorais?— respondeu Sancho — pois sabei, irmã, que cavaleiro de aventuras vem a ser um sujeito que em duas palhetadas se vê desancado, e Imperador. Hoje está a mais desditada criatura do mundo, e a mais necessitada, e amanhã terá duas ou três coroas reais para as dar ao seu escudeiro.
Então como é que vós, pertencendo a tão bom senhor — perguntou a vendeira — não tendes, ao que parece, pelo menos algum condado?
Ainda é cedo — respondeu Sancho — porque não há senão um mês que andamos buscando as aventuras, e por enquanto ainda não topamos com alguma que o fosse em bem; muitas vezes se busca uma coisa, e se acha outra. Verdade é que se o meu amo o senhor D. Quixote sara desta queda ou destas feridas, e eu não ficar estropiado, não troco as minhas esperanças pelo melhor título de Espanha.
Todas estas práticas estava D. Quixote escutando muito atento; e, sentando-se na cama conforme pôde, pegando na mão da vendeira, lhe disse:
Crede, formosa senhora, que vos podeis chamar feliz por terdes albergado neste vosso castelo a minha pessoa, que é tal, que, se eu a não louvo, é pelo que se costuma dizer que o louvor em boca própria é vitupério; porém o meu escudeiro vos dirá quem sou. Só vos digo que hei-de conservar eternamente na memória o serviço que me haveis feito para o agradecer enquanto a vida me durar; e prouvera aos céus que o amor me não tivesse tão rendido e sujeito às suas leis, e aos olhos daquela formosa ingrata, que digo pela boca pequena que os desta formosa senhora se tornariam senhores do meu alvedrio.
Confusas estavam a bodegueira, a filha e a boa de Maritornes, ouvindo os ditos do cavaleiro andante, que elas entendiam como se fossem em grego, ainda que bem percebiam endereçarem-se todos a oferecimentos e requebros; e, por não acostumadas com semelhante linguagem, olhavam para ele, e admiravam-se, parecendo-lhes não ser homem como os outros; e, agradecendo-lhe em estilo tabernático, o deixaram. A asturiana Maritornes curou a Sancho, que o não precisava menos que o amo.
Tinha o arrieiro conchavado com ela que naquela noite se haviam de refocilar juntos, dando-lhe ela a sua palavra de que, em estando sossegados os hóspedes, e os amos adormecidos, iria ter com ele, e satisfazer-lhe o gosto enquanto mandasse.
Conta-se desta moça que nunca jamais promessas daquela casta as deixava por cumprir, ainda que as desse num monte e sem testemunhas, pois timbrava muito de fidalga, e não tinha por afronta estar naquele serviço de moça de locanda, porque dizia ela que desgraças e maus sucessos a haviam reduzido a tal estado.O duro, estreito, apoucado, e fingido leito de D. Quixote ficava logo à entrada daquele estrelado sótão; e ao pé tinha Sancho arranjado a sua jazida, que só constava duma esteira de junco e duma manta, que mais parecia de estopa tosada, que de lã.
A estes dois leitos seguia-se o do arrieiro, engenhado, como dito fica, das enxergas e mais composturas dos dois melhores machos que trazia, os quais ao todo eram doze, luzidios, anafados e famosos, porque era um dos arrieiros ricos de Arevalo, segundo diz o autor desta história, que dele faz particular menção, pelo ter mui bem conhecido; e até querem dizer que era algum tanto seu parente; além do que Cid Hamete Benengeli foi historiador muito curioso e muito pontual em todas as coisas; e bem se vê que sim, pois nas que ficam referidas (com serem mínimas e rasteiras) não as quis deixar no escuro; de que poderão tomar exemplo os historiadores graves, que nos contam as ações tão acanhadas e sucintamente, que mal se lhes toma o gosto, deixando no tinteiro por descuido, malícia, ou ignorância, o mais substancial.
Bem haja mil vezes o autor de Tablante de Ricamonte e o do outro livro, onde se contam os feitos do Conde de Tomilhas; e com que pontualidade se descreve tudo!
Digo pois, que, tanto como o arrieiro visitou a sua récova, e lhe deu a segunda ração, se estendeu nas enxergas, e ficou à espera da sua pontualíssima Maritornes.
Já estava Sancho emplastrado e deitado; e, ainda que procurava dormir, não lho consentia a dor das costelas; e D. Quixote, com o dolorido das suas, tinha os olhos abertos, que nem lebre.
Toda a venda era em silêncio, não havendo em toda ela outra luz senão a de uma lanterna pendurada ao meio do portal.
Esta maravilhosa quietação, e os pensamentos que o nosso cavaleiro sempre trazia dos sucessos que a cada passo se contam nos livros ocasionadores de sua desgraça, trouxe-lhe à imaginação uma das estranhas loucuras que bem se podem figurar, e foi julgar-se ele chegado a um famoso castelo (que, segundo já dissemos, castelos eram em seu entender todas as vendas em que pernoitava), e que a filha do vendeiro era a filha do castelão, a qual, vencida da sua gentileza, se havia dele enamorado, prometendo-lhe que naquela noite, às escondidas dos pais, havia de vir passar com ele um bom pedaço; e tendo por firme e verdadeira toda esta quimera por ele próprio fabricada, entrou a afligir-se e a pensar no perigoso transe em que a sua honestidade se ia ver; propondo porém em seu coração não cometer falsidade à sua senhora Dulcinéia del Toboso, ainda que diante se lhe pusesse a Rainha Ginevra com a sua camareira Quintanhona.
Pensando pois nestes disparates, chegou o tempo e a hora (que para ele foi minguada) de vir a asturiana, a qual em camisa e descalça, com os cabelos metidos numa coifa de algodão, a passo atento e sutil entrou à procura do arrieiro no aposento onde os três jaziam.
Mal era chegada à porta, quando D. Quixote a sentiu; e sentando-se na cama, apesar dos emplastros, e com dores das costelas, estendeu os braços para receber a sua formosa donzela, a asturiana, que toda encolhida e calada ia com as mãos adiante procurando o seu querido. Topou ela com os braços de D. Quixote, o qual lhe travou rijamente da mão, e puxando-a para si, sem que ela ousasse proferir palavra, a fez sentar-se sobre a cama.
Apalpou-lhe logo a camisa; e ainda que ela era de serapilheira, a ele lhe pareceu de delgado e finíssimo bragal. Trazia a moça nos pulsos umas contas de vidro, que a ele se representavam preciosas pérolas orientais. Os cabelos, que algum tanto atiravam para crinas, pareciam-lhe fios de luzentíssimo ouro da Arábia, cujo esplendor ao do próprio sol escurecia; e o bafo, que sem dúvida alguma cheirava a alguns restos de carne da véspera, representou-se-lhe um hálito suave e aromático. Finalmente, na fantasia a ideou tal qual como tinha lido em seus livros acerca da outra Princesa, que veio ver o mal ferido cavaleiro, vencido dos seus amores, com todos os adornos que se aqui declaram.
Tamanha era a cegueira do pobre fidalgo, que nem o tato, nem o cheiro, nem outras coisas, que em si trazia a boa donzela, o desenganavam, com serem tais, que fariam vomitar a quem quer que não fosse arrieiro; antes lhe parecia que tinha nos braços a deusa da formosura. Estreitando-a neles, com voz amorosa e baixa lhe disse:
Quisera achar-me em termos, formosa e alta senhora, de poder pagar tamanha mercê como esta que me haveis feito com a vista da vossa grande formosura. Porém a fortuna, que se não cansa de perseguir aos bons, quis prostrar-me neste leito, onde me acho tão moído e quebrantado, que, por maior vontade que eu tivesse de vos satisfazer, de modo nenhum o poderia. A esta impossibilidade acresce outra maior; e é a fé que tenho prometido guardar à sem igual Dulcinéia del Toboso, única senhora dos meus mais ocultos pensamentos. A não se me pôr isto diante, não seria eu cavaleiro tão sandeu, que deixasse fugir a venturosa ocasião que a vossa grande bondade me faculta.
Maritornes estava aflitíssima, e tressuando de ver-se tão apertada por D. Quixote, e sem perceber nem atender ao que ele dizia, procurava, sem dizer chus nem bus, desenlear-se da prisão. O bom do arrieiro, que estava bem desperto com os seus danados desejos, desde o instante em que a moça entrou a porta a sentiu, e esteve atentamente escutando quanto D. Quixote dizia; e cioso de que a asturiana o tivesse com outro falseado, foi-se achegando mais à cama de D. Quixote, e esteve muito quedo à espera de ver em que parariam aqueles palavreados que ele não podia entender; porém como viu que a moça forcejava para se ver solta, e D. Quixote trabalhava para a reter, pareceu-lhe mal a história, levantou o braço ao alto, e desfechou tão terrível murro nos estreitos queixos do enamorado cavaleiro, que lhe deixou a boca toda a escorrer em sangue; e não contente com isto, saltou-lhe sobre as costelas, e com os pés lhas palmilhou à sua vontade, e mais que a trote. O leito, que era um pouco fraco, e de fundamentos mal seguros, não podendo sofrer o contrapeso do arrieiro, deu consigo em terra.
Àquele ruído despertou o vendeiro, e logo imaginou que haviam de ser pendências de Maritornes, porque, tendo bradado por ela, não lhe respondia. Com esta suspeita ergueu-se, e acendendo uma candeia, se foi para onde tinha sentido a balbúrdia.
A moça, vendo que o amo vinha, e que não era homem para graças, toda medrosa e alvorotada, fugiu para a cama de Sancho Pança, que estava afinal adormecido, e ali se encolheu novelando-se toda.
O vendeiro entrou dizendo:
Onde estás, traste? isto são por força coisas tuas.
Despertou Sancho; e sentindo aquele vulto quase em cima de si, pensou estar com um pesadelo, e começou a atirar punhadas para uma e outra banda, apanhando não sei quantas a Maritornes. Ela, com a dor, embaraçando-se pouco de decências, retribuiu a Sancho com tantas, que sem vontade lhe espantaram de todo o sono. Vendo-se tratado daquele feitio, e sem saber por quem, levantou-se como pôde, abraçou-se com a rapariga, e entre os dois se travou a mais renhida e engraçada escaramuça do mundo.
O arrieiro, reconhecendo à luz da candeia do bodegão como a sua dama andava, largou a D. Quixote para acudir por ela. Outro tanto fez o dono da casa, mas com propósito diferente, porque o seu foi de castigar a moça, por crer sem dúvida que ela só era a ocasionadora de todo aquele concerto; e assim como se costuma dizer: o gato ao rato, o rato à corda, a corda ao pau, o arrieiro dava em Sancho, Sancho na moça, a moça em Sancho, o vendeiro na moça; e todos com tamanha azáfama, que nem fôlego tomavam.
O bonito foi quando a candeia se apagou. Na escuridão batiam tão sem dó todos para o monte, que onde quer que acertavam a mão não deixavam coisa sã.
Jazia acaso na venda aquela noite um quadrilheiro, dos que chamam da Santa Irmandade velha de Toledo, o qual, ouvindo o desconforme barulho da peleja, agarrou da sua varinha, e da caixa de lata dos seus títulos, e entrou às escuras no aposento, bradando:
Parem da parte da Justiça! parem da parte da Santa Irmandade!
O primeiro com quem topou foi o esmurrado de D. Quixote que estava no seu leito derribado, de boca para o ar e sem sentidos; e, lançando-lhe às apalpadelas a mão às barbas, não cessava de clamar:
Acudam à Justiça!
Vendo porém que o vulto se não bolia, supôs que estava morto, e que os mais que na casa eram deviam ser os matadores. Com esta suspeita reforçou a voz, dizendo:
Feche-se a porta da venda. Sentido que não saia viva alma, que mataram aqui um homem.
Este brado sobressaltou a todos, e cada um deixou a desavença instantaneamente. Retirou-se o vendeiro para o seu quarto, o arrieiro para as suas enxergas, e a moça para o seu rancho. Só os mal-aventurados D. Quixote e Sancho é que se não puderam mover donde jaziam.
Largou então o quadrilheiro a barba de D. Quixote, e saiu a buscar luz, para ver e prender os delinquentes; mas não a achou, porque o vendeiro de propósito havia apagado a lâmpada, quando se retirou para o seu cubículo, e foi-lhe forçoso recorrer à chaminé, onde, com muito trabalho e tempo, o quadrilheiro acendeu outra luz.

Miguel de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Rosa Passos e Nelson Faria | Um Café Lá Em Casa

Fábula

Minha pátria é minha infância.
Por isso vivo no exílio.
Talvez o barco contasse
deste percurso no tempo.
De como seria o escafandro
isento de tal mergulho.
Minha pátria é sob a pele:
Cargueiro no mar de névoa.
Antigamente os conflitos
não aspiravam a ser.
De como fiquei trancado
na torre em que era dono.
E a certeza como faca
engolindo a própria lâmina.
De como se libertaram
os mitos presos na forca,
e o exato espanto vindo da terra,
dos gestos do imperador.

Cacaso, em Poesia completa

Megalomania



Contam que Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé (segundo ele, “mais eficiente que purgante de maná e japonês na roça”), desenvolveu um método para separar os casos graves dos que são só – como diz o analista de Bagé – “loucos de faceiros”. Enquanto preenche a ficha, ela dá a cada paciente em potencial uma cuia de chimarrão no formato de um seio. Depois vai anotando: “Quis chupar a cuia em vez da bomba”, “Começou a gemer e acariciar a cuia”, “Atirou contra a parede”, etc. Assim, quando recebe o paciente, o analista de Bagé já sabe o que esperar. Mas nada preparou o analista de Bagé para a entrada no seu consultório do megalômano de Carazinho. o diálogo entre os dois já começou mal.
Te deita no divã.
Não deito.
Te deita, bagual!
Não deito!
E por que não deita?
Em primeiro lugar, porque só quem mandava em mim era o meu pai, que já está no Grande Galpão do céu capando anjo pra fazer linguiça. Em segundo lugar, que o analista aqui sou eu.
E com isto o analista de Bagé derrubou o outro com um peitaço e o segurou sobre o pelego do divã com um joelho na omoplata. Gritou:
Diz qual é teu problema!
Não digo pra qualquer um!
Diz senão te arranco esses bigodes dois a dois.
Todos dizem que eu tenho mania de ser melhor do que os outros, mas eu não acredito neles.
E por que não?
Porque é tudo gente inferior.
O analista de Bagé saiu de cima do outro, mas deixou o facão bem à vista, para evitar incomodação. O outro continuou.
Eu tenho megalomania.
Não tem – disse o analista de Bagé, brabo. Sabia que era verdade, mas não aguentava fanfarrão.
Quer saber mais do que eu?
Sei mais do que tu, teu irmão, tua mãe e teu pai, se fosse conhecido.
Nisso o megalômano de Carazinho subiu em cima do divã, apontou um dedo para o analista de Bagé e ameaçou: – Olha que eu te transformo em pedra. O analista de Bagé abriu a camisa e ofereceu o peito: – Pois transforma. Quero ver. Transforma! O outro mudou de tática. Ergueu a mão como numa bênção e disse: – Eu te perdoo. Aí o analista de Bagé avançou.
Na sala de espera Lindaura esperou meia hora antes de entrar no consultório.
Tinha ordens do analista de Bagé sobre como agir de acor do com os sons que ouvia. “Resfolego, não liga. Gemido, vai pra casa. Grito, te prepara. Mobília quebrada, entra.” Decidiu entrar. Encontrou o megalômano de Carazinho inconsciente embaixo do divã virado, com só metade do bigode. Depois o analista de Bagé explicou:
Doença é uma coisa. Convencimento é outra.
O outro era “metido a gran cosa”. Mas ele perdera mesmo a paciência quando ouvira o outro dizer:
Sou o maior megalômano do mundo!
Aparecia cada um.

Luís Fernando Veríssimo, em O Analista de Bagé

Hagar, o Horrível

Linguagem Politicamente Correta

Era o ano de 1971. Eu fora convidado a fazer uma conferência no Union Theological Seminary de Nova York. Na minha fala usei várias vezes a palavra “homem” com o sentido universal de “todos os seres humanos”, incluindo não só os homens, que a palavra nomeava claramente, como também as mulheres, que a palavra deixava na sombra. Era assim que se falava no Brasil.
Depois da conferência, fui jantar no apartamento do presidente. Sua esposa, delicada mas firmemente, deu-me a devida reprimenda.
Não é politicamente correto usar a palavra ‘homem’ para significar também as mulheres. Como também não é correto usar o pronome ‘ele’ para se referir a Deus. Deus tem genitais de homem? Esse jeito de falar não foi inventado pelas mulheres... Foi inventado pelos homens numa sociedade em que eles tinham a força e a última palavra... É sempre assim: quem tem força tem a última palavra...”
O que aprendi daquela mulher naquele jantar é que as palavras não são inocentes. Elas são armas que os poderosos usam para ferir e dominar os fracos.
Os brancos norte-americanos inventaram a palavra “niger” para humilhar os negros. E trataram de educar suas crianças. Criaram uma brincadeira que tinha um versinho que ia assim: “Eeny, meeny, miny, moe, catch a niger by the toe... — agarre um crioulo pelo dedão do pé...” (Aqui no Brasil, quando se quer diminuir um negro, usa-se a palavra “crioulo”: aquele criolão... ).
Foi para denunciar esse uso ofensivo da palavra que os negros cunharam o slogan “black is beautiful” — “o negro é bonito”. A essa linguagem de protesto, purificada de sua função de discriminação, deu-se o nome de “linguagem politicamente correta” (pclanguage).
A regra fundamental da linguagem politicamente correta é a seguinte: nunca use uma palavra que humilhe, discrimine ou zombe de alguém. Encontre uma forma alternativa de dizer a mesma coisa.
Não se deve dizer “ele é aleijado”, “ele é cego”, “ele é deficiente”, etc. O ponto crucial é o verbo “ser”. O verbo ser torna a deficiência de uma pessoa parte da sua própria essência. Ela é a sua deficiência. A pclanguage, ao contrário, separa a pessoa da sua deficiência. Em vez de “João é cego”, “João é portador de uma deficiência visual...”. Essa regra se aplica a mim também.
Por exemplo: “Rubem Alves é velho”. Inaceitável. Porque chamar alguém de velho é ofendê-lo, muito embora eu não saiba quem foi que decretou que velhice é ofensa. (O título do livro do Hemingway deveria ser mudado para O idoso e o mar?...)
As salas de espera dos aeroportos são lugares onde se pratica a linguagem politicamente correta o tempo todo. Aí, então, na hora em que se convocam os “portadores de necessidades especiais” para embarcar, as necessidades especiais sendo cadeiras de roda, bengalas, crianças de colo, convocam-se também os velhos, eu inclusive. Mas, sem saber que palavra ou expressão usar para se referir aos velhos sem ofendê-los, houve alguém que concluiu que o caminho mais certo seria chamar os velhos pelo seu contrário. Assim, ao invés de convocar velhos ou idosos pelos alto-falantes, a voz convoca os “jovens”, isto é, os cidadãos da “melhor idade”. É claro que a “melhor idade” só pode ser a juventude...
A linguagem politicamente correta pode se transformar em ridículo... Chamar velhice de “melhor idade” só pode ser gozação.
Quero então fazer uma sugestão que agradará aos velhos. A voz chama para embarcar os “cidadãos da idade é terna...”. Não é bonito ligar a velhice com a ternura?

Rubem Alves, em Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo