quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Maioridade penal, por Laerte

Não Estou Preparado

Sou do tempo em que (aliás, sou do tempo de qualquer coisa antiga em que vocês pensem aí, venho descobrindo isto cada vez mais rápido) gordura e barriga eram vistas de maneira muito diversa da de hoje. O gordo era forte e, se bem que as tetéias (ou peixões, ou uvas, ou sereias ou tantas outras gírias que já designaram as boazudas) não fossem gordas, magrinhas como as que hoje estão na moda não fariam muito sucesso. Mulher tinha de ter carne e, preferivelmente, seguir o modelo violão.
Jejuo em competência para falar no assunto, pois, ai de mim, nunca passei da marca de amador esforçado, nesse como em tantos outros terrenos. Mas, como acredito haver companheiros ou colegas meus entre vocês, bem como curiosos que queiram saber como se passa a vida na hoje chamada — xingo o primeiro que usar essa expressão em relação a mim — “bela idade”, continuo um violonista convicto, como continuam os de minha faixa etária, na sondagem informal que vivo fazendo. Parece haver qualquer coisa na malhação de hoje em dia que não deixa a cintura afinar, ou então estreita os quadris. Aí o tronco da mulher erecta (é só da mulher que estou falando), silhuetado, parece um retângulo sem graça e sem mistério. O fato é que a mulher violão legítima, padrão nacional, está em desuso, ostracismo mesmo, mais uma vítima da globalização, mais uma sombra que gradualmente se esvai no passado e que, no futuro, todo mundo talvez esqueça que existiu.
Conversa de velho, dirão as que porventura se sentirem atingidas. Certo, certo, mas nem por isso menos verdadeira. Aliás, pelo contrário, ainda mais verdadeira exatamente por isso, porque traz em si, entre as mentiras que contou e experiências reais que sua memória hoje enevoada já não distingue, a experiência do velho, tanto assim que reza antigo provérbio árabe que “quem não tem um velho que procure comprar um”. Que é que vocês estão pensando? Tem muito velho por aí em melhor forma do que a maioria dessa juventude criada com hambúrgueres e pizzas. A velhice está na cabeça etc. etc.
Bem, chega de mentiras que mal consolam e reconheço que as linhas acima foram um nariz-de-cera, embora sem querer. Eu ando tendo uns ataques de aparente demência senil e aí começo a querer repetir essas bobagens, fazendo força para acreditar nelas. Tenho mais é que seguir os conselhos de Zecamunista, lá de Itaparica, que já passou dos setenta e me falou de sobrolho severamente franzido, no bar de Espanha.
Não importa o que lhe digam — sentenciou ele —, idade só ensina uma coisa básica, uma única coisa: idade é uma merda. E, quanto mais velho você fica, mais isso se radicaliza. Eu tenho a impressão de que, se por um acaso, o sujeito envelhecesse até uns duzentos anos, cheio de achaques, claro, mas vivo, só diria isso. Sintetiza toda a sabedoria acumulada pela raça humana ao longo de milênios, tudo pode ser resumido nela. Se eu fosse Jorge Luís Borges, escrevia uma história sobre isso. Eu, que só tenho setenta, já estou compreendendo isso, quanto mais um cara de 200 anos. A idade só leva vantagem sobre a alternativa, que também é uma merda. Enfim, somado tal com qual, isso menos aquilo, noves fora lá e cá, tudo junto é uma merda só. Aliás, o merdismo, como podemos chamar essa nova visão filosófica...
Felizmente Zecamunista é um orador que facilmente entra em transporte espiritual e, quando nesse estado, não vê nada ou ninguém em torno, de maneira que pude sair sem ter que assinar a ata de fundação da primeira academia merdologista do Brasil, que é bem capaz de ele ter fundado, lá em Itaparica. E novamente, já um tanto envergonhado dos colegas de profissão e pouco tendo para explicar ao editor, reconheço que, nas linhas acima, só fiz encompridar o nariz-de-cera. Chega disso, não preciso desses recursos baratos, só entrei nessas para ajudar os professores de jornalismo a mostrar a seus alunos o que é um nariz-de-cera, eu faço qualquer coisa pela educação da juventude.
Mas, sim, chega disso. Meu assunto é bem outro. É que, no meu tempo, havia, em certas damas, declarada admiração por barrigas masculinas. Nos rapazes tipo esses moços, pobres moços, ninguém achava nada demais uma barriguinha e, ao contrário, havia alguns barrigudos na faculdade que faziam enorme sucesso com as mulheres, em época na qual fazer sucesso com as mulheres dava muito mais trabalho do que hoje. E, para homens bem estabelecidos na vida, já mais maduros, acho que até a falta de barriga era notada. Um comendador sem barriga era incogitável, o mesmo podendo ser dito de um amante rico. Até nas caricaturas isso era retratado.
Não estava, pois, preparado para o que vem aí. A malha médica, que fecha seu implacável cerco cada vez mais assiduamente, a ponto de eu descobrir todo dia um órgão novo que não sabia que tinha, deu para fazer umas reuniões confabulatórias até com minha família e, repentinamente, minha barriga surgiu. Quer dizer, ela estava aí mesmo, onde se encontra no momento, mas na dela, procurando, acho eu, passar tão despercebida quanto possível.
Me mediram todo, me pesaram todo, trocaram mensagens cifradas e, enfim, resolveram que minha barriga é a responsável por tudo o que me aflige e aflige a família e amigos próximos. Eu nunca tinha sabido que pular a marca dos não sei quantos centímetros de barriga era capaz de causar tanta doença. Diabetes é inevitável, assim como uns dois infartos por semestre. Suspeito até que fiquei careca por causa da barriga. Vou ter de passar fome. Já comecei, aliás. A doutora me consolou, explicou que não era tão mau assim e ia até ter efeitos positivos na minha percepção do universo feminino. Como assim, o sofrimento para manter a boa forma? Han-han, disse ela, TPM mesmo.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

Fábio Brazza part. Srta Paola | Pedaço de Paz

Teofania

Sabe-se que um deus só vem porque quer
e que é capaz de desaparecer
a seu bel-prazer, por mero capricho.
Nisso ele se assemelha mais a um bicho

selvagem, feito serpente ou veado,
do que a gente. Uns são intempestivos.
É no momento menos indicado
que nos capturam e mantêm cativos.

Assim é o Amor, por exemplo. Não
há quem não reconheça a divindade
de tal deus. Não: os próprios cristãos dão
a mão à palmatória e têm saudade

do realismo do mundo pagão
quando o veem chegar como quem não quer
nada e ofuscar tudo. Outros são
diferentes. Todos vêm por prazer,

isso é claro mas, por exemplo, o Sono
não deixa de abraçar-nos todo dia
enquanto somos jovens: dir-se-ia
ser nosso escravo e não suave dono.

Mas isso não se deve nem pensar
pois se ele ouvir o nosso pensamento
e resolver provar-nos a contento
ser mesmo deus, desaparecerá,

pois que ele é deus mostra-o nem tanto o fato
de que vem sem ser chamado e escraviza,
em teatros, aulas, ônibus, vigílias,
o desejo que almeja dominá-lo

quanto a própria insônia, teofania
negativa do Sono, quando somem
as doces nuvens e as torres macias
do príncipe dos deuses e dos homens

e não se abrem as águas da lagoa
ou os portões de chifre ou de marfim
e nossa imaginação se esboroa
em prosa e a noite cansa até o fim.

Não se iludam. Nem o mais poderoso
dos soporíferos substituiria
ver abolirem-se as categorias
pela espontânea ação de um deus gasoso.

Tais deuses só na velhice sabemos
o que são. O jovem nem desconfia
ser divino o próprio Tesão ou mesmo,
tremo só de lembrar, a Poesia.

Antonio Cícero, em Guardar

Pau dos Ferros em 1953

Pau dos Ferros em 1953, por Pablo Einstein Batista (2024) Aquarela e lápis de cor sobre papel de algodão – 13,5 x 19 cm

De velhas e novas tábuas

1.

Aqui me acho sentado, esperando, com velhas tábuas partidas ao meu redor, e também novas tábuas inscritas pela metade. Quando chegará minha hora?
a hora de minha descida, meu declínio: pois ainda uma vez quero ir até os homens.
Por isso espero agora; pois primeiro devem me chegar os sinais de que é a minha hora — o leão rindo e o bando de pombas.
Entrementes falo comigo mesmo, como uma pessoa que tem tempo. Ninguém me conta algo novo: assim, conto-me a mim mesmo.

Friedrich Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra

O Curioso Caso de Benjamin Button


II

Bons dias — disse Mr. Button, nervosamente, ao empregado da Chesapeake Dry Goods Company.
Preciso comprar roupas para o meu filho.
Que idade tem o seu filho?
Cerca de seis horas — respondeu Mr. Button, sem a necessária reflexão.
A seção de artigos para bebês fica nos fundos. — Bem, não creio.. não tenho certeza de que é isso que quero. É que trata-se de um bebê invulgarmente grande. Excepcionalmente... hum… grande. — Eles têm os tamanhos maiores para bebês.
Onde fica a seção para meninos? — perguntou Mr. Button, mudando desesperadamente de rumo. Tinha a sensação de que o empregado fareja-ria, com certeza, o seu vergonhoso segredo.
Aqui mesmo.
Bem... — hesitou. Repugnava-lhe a ideia de vestir no filho roupas de homem. Se ao menos conseguisse encontrar um traje infantil muito grande poderia cortar-lhe aquela comprida e horrorosa barba, pintar-lhe o cabelo branco de castanho e ocultar, assim, o pior e manter algum do seu amor-próprio — para não falar no seu lugar na sociedade de Baltimore.
Mas uma inspeção desesperada na seção para meninos revelou não existirem trajes que servissem ao recém-nascido Button. Pôs a culpa na loja, evidentemente — em casos assim, culpa-se a loja.
Que idade disse que o seu rapaz tem? — perguntou curiosamente o empregado.
Tem dezesseis.
Oh, queira perdoar. Pensei que tinha dito seis horas. Encontrará a seção para jovens na coxia seguinte.
Mr. Button virou-se desanimadamente. Depois parou, recuperou o ânimo e estendeu o dedo para um manequim vestido que se encontrava na vitrine. — Ali está! — exclamou. — Levo aquele traje, o que o manequim está vestindo.
O empregado olhou fixamente.
Mas — protestou — aquele não é um traje para criança. Quero dizer, poderá ser, mas para usar como traje de fantasia. O senhor mesmo poderia usá-lo!
Embrulhe-o — insistiu nervosamente o freguês. — É aquele que eu quero.
O estupefato empregado obedeceu.
De novo no hospital, Mr. Button entrou no berçário e quase atirou o embrulho ao filho.
Aqui estão as suas roupas — rosnou.
O velho tirou o barbante do embrulho e observou o conteúdo com um olhar intrigado.
Parecem um pouco esquisitas para mim
queixou-se. — Não quero fazer papel de macaco...
Já fez de mim um macaco! — explodiu Mr. Button, furiosamente. — Não se preocupe com o quanto parece esquisito. Vista-as... ou eu... ou eu te desanco. — Engoliu com dificuldade depois de dizer a última palavra, mas sentiu, apesar disso, que dissera as palavras adequadas.
Está bem, pai. — Este assentimento era uma simulação grotesca de respeito filial.
Já viveu mais tempo do que eu e, por isso, sabe mais do que eu. Farei como quer.
Como acontecera antes, o som da palavra “pai” fez Mr. Button estremecer violentamente.
E apresse-se.
Estou me apressando, pai.
Quando o filho acabou de se vestir, Mr. Button olhou para ele, deprimido. O vestuário constava de meias de bolinhas, calças cor-de-rosa e uma camisa com cinto e uma larga gola branca. Sobre esta agitava-se uma comprida barba esbranquiçada que descia quase até à cintura. O efeito não era nada bom. — Espere!
Mr. Button empunhou uma tesoura hospitalar e, com três tesouradas rápidas, amputou uma grande extensão da barba. Mas, apesar dessa melhoria, o conjunto ficou aquém da perfeição. O resto-lho esparso do cabelo que restara, os olhos lacrimosos e os dentes velhos e amarelos pareciam destoar peculiarmente do aspecto vistoso do traje. No entanto, Mr. Button manteve-se inexorável e estendeu a mão:
Anda, vamos! — disse, firmemente. O filho deu-lhe, confiante, a mão.
Como vai me chamar, pai? — perguntou em voz trêmula, enquanto saíam do berçário. — Apenas por “bebê”, durante algum tempo? Até se lembrar de um nome melhor?
Mr. Button soltou um grunhido.
Não sei — respondeu, irritado. — Acho que vamos te chamar de Matusalém.

F. Scott Fitzgerald, em O Curioso Caso de Benjamin Button

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

The Beauty Of Game of Thrones

Calvin

Escrever (III)

Escrever para jornal não é tão impossível: é leve, tem que ser leve, e até mesmo superficial: o leitor, em relação a jornal, não tem nem vontade nem tempo de se aprofundar.
Mas escrever o que se tornará depois um livro exige às vezes mais força do que aparentemente se tem.
Sobretudo quando se teve que inventar o próprio método de trabalho, como eu e muitos outros. Quando conscientemente, aos 13 anos de idade, tomei posse da vontade de escrever — eu escrevia quando era criança, mas não tomara posse de um destino —, quando tomei posse da vontade de escrever, vi-me de repente num vácuo. E nesse vácuo não havia quem pudesse me ajudar.
Eu tinha que eu mesma me erguer de um nada, tinha eu mesma que me entender, eu mesma inventar por assim dizer a minha verdade. Comecei, e nem sequer era pelo começo. Os papéis se juntavam um ao outro — o sentido se contradizia, o desespero de não poder era um obstáculo a mais para realmente não poder. A história interminável que então comecei a escrever (com muita influência de O lobo da estepe, Hermann Hesse), que pena eu não a ter conservado: rasguei, desprezando todo um esforço quase sobre-humano de aprendizagem, de autoconhecimento. E tudo era feito em tal segredo. Eu não contava a ninguém, vivia aquela dor sozinha. Uma coisa eu já adivinhava: era preciso tentar escrever sempre, não esperar por um momento melhor porque este simplesmente não vinha. Escrever sempre me foi difícil, embora tivesse partido do que se chama vocação. Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.

Clarice Lispector, em Crônicas para jovens: de escrita e vida

Trio em lá menor


I

Adagio cantabile

Maria Regina acompanhou a avó até o quarto, despediu-se e recolheu-se ao seu. A mucama que a servia, apesar da familiaridade que existia entre elas, não pôde arrancar-lhe uma palavra, e saiu, meia hora depois, dizendo que Nhanhã estava muito séria. Logo que ficou só, Maria Regina sentou-se ao pé da cama, com as pernas estendidas, os pés cruzados, pensando.
A verdade pede que diga que esta moça pensava amorosamente em dous homens ao mesmo tempo. Um de 27 anos, Maciel — outro de cinquenta, Miranda. Convenho que é abominável, mas não posso alterar a feição das cousas, não posso negar que se os dous homens estão namorados dela, ela não o está menos de ambos. Uma esquisita, em suma; ou, para falar como as suas amigas de colégio, uma desmiolada. Ninguém lhe nega coração excelente e claro espírito; mas a imaginação é que é o mal, uma imaginação adusta e cobiçosa, insaciável principalmente, avessa à realidade, sobrepondo às cousas da vida outras de si mesma; daí curiosidades irremediáveis.
A visita dos dous homens (que a namoravam de pouco) durou cerca de uma hora. Maria Regina conversou alegremente com eles, e tocou ao piano uma peça clássica, uma sonata, que fez a avó cochilar um pouco. No fim discutiram música. Miranda disse cousas pertinentes acerca da música moderna e antiga; a avó tinha a religião de Bellini e da Norma, e falou das toadas do seu tempo, agradáveis, saudosas e principalmente claras. A neta ia com as opiniões do Miranda; Maciel concordou polidamente com todos.
Ao pé da cama, Maria Regina reconstruía agora tudo isso, a visita, a conversação, a música, o debate, os modos de ser de um e de outro, as palavras do Miranda e os belos olhos do Maciel. Eram onze horas, a única luz do quarto era a lamparina, tudo convidava ao sonho e ao devaneio. Maria Regina, à força de recompor a noite, viu ali dous homens ao pé dela, ouviu-os, e conversou com eles durante uma porção de minutos, trinta ou quarenta, ao som da mesma sonata tocada por ela: lá, lá, lá...

II

Allegro ma non troppo

No dia seguinte a avó e a neta foram visitar uma amiga na Tijuca. Na volta a carruagem derribou um menino que atravessava a rua, correndo. Uma pessoa que viu isto atirou-se aos cavalos, e, com perigo de si própria, conseguiu detê-los e salvar a criança, que apenas ficou ferida e desmaiada. Gente, tumulto, a mãe do pequeno acudiu em lágrimas. Maria Regina desceu do carro e acompanhou o ferido até à casa da mãe, que era ali ao pé.
Quem conhece a técnica do destino adivinha logo que a pessoa que salvou o pequeno foi um dos dous homens da outra noite; foi o Maciel. Feito o primeiro curativo, o Maciel acompanhou a moça até à carruagem e aceitou o lugar que a avó lhe ofereceu até à cidade. Estavam no Engenho Velho. Na carruagem é que Maria Regina viu que o rapaz trazia a mão ensanguentada. A avó inquiria a miúdo se o pequeno estava muito mal, se escaparia; Maciel disse-lhe que os ferimentos eram leves. Depois contou o acidente: estava parado, na calçada, esperando que passasse um tílburi, quando viu o pequeno atravessar a rua por diante dos cavalos; compreendeu o perigo, e tratou de conjurá-lo, ou diminuí-lo.
Mas está ferido — disse a velha.
Cousa de nada.
Está, está — acudiu a moça —, podia ter-se curado também.
Não é nada — teimou ele —, foi um arranhão; enxugo isto com o lenço.
Não teve tempo de tirar o lenço; Maria Regina ofereceu-lhe o seu. Maciel, comovido, pegou nele, mas hesitou em maculá-lo.
Vá, vá, dizia-lhe ela —; e, vendo-o acanhado, tirou-lho e enxugou-lhe, ela mesma, o sangue da mão.
A mão era bonita, tão bonita como o dono; mas parece que ele estava menos preocupado com a ferida da mão que com o amarrotado dos punhos. Conversando, olhava para eles disfarçadamente e escondia-os. Maria Regina não via nada, via-o a ele, via-lhe principalmente a ação que acabava de praticar, e que lhe punha uma auréola. Compreendeu que a natureza generosa saltara por cima dos hábitos pausados e elegantes do moço, para arrancar à morte uma criança que ele nem conhecia. Falaram do assunto até a porta da casa delas; Maciel recusou, agradecendo, a carruagem que elas lhe ofereciam, e despediu-se até à noite.
Até à noite! — repetiu Maria Regina.
Esperou-o ansiosa. Ele chegou, por volta de oito horas, trazendo uma fita preta enrolada na mão, e pediu desculpa de vir assim; mas disseram-lhe que era bom pôr alguma cousa e obedeceu.
Mas está melhor!
Estou bom, não foi nada.
Venha, venha — disse-lhe a avó, do outro lado da sala. — Sente-se aqui ao pé de mim: o senhor é um herói.
Maciel ouvia sorrindo. Tinha passado o ímpeto generoso, começava a receber os dividendos do sacrifício. O maior deles era a admiração de Maria Regina, tão ingênua e tamanha, que esquecia a avó e a sala. Maciel sentara-se ao lado da velha, Maria Regina defronte de ambos. Enquanto a avó, restabelecida do susto, contava as comoções que padecera, a princípio sem saber de nada, depois imaginando que a criança teria morrido, os dous olhavam um para o outro, discretamente, e afinal esquecidamente. Maria Regina perguntava a si mesma onde acharia melhor noivo. A avó, que não era míope, achou a contemplação excessiva, e falou de outra cousa; pediu ao Maciel algumas notícias de sociedade.

III

Allegro appassionato

Maciel era homem, como ele mesmo dizia em francês, très répandu; sacou da algibeira uma porção de novidades miúdas e interessantes. A maior de todas foi a de estar desfeito o casamento de certa viúva.
Não me diga isso! — exclamou a avó. — E ela?
Parece que foi ela mesma que o desfez: o certo é que esteve anteontem no baile, dançou e conversou com muita animação. Oh! abaixo da notícia, o que fez mais sensação em mim foi o colar que ela levava, magnífico...
Com uma cruz de brilhantes? — perguntou a velha. — Conheço; é muito bonito.
Não, não é esse.
Maciel conhecia o da cruz, que ela levara à casa de um Mascarenhas; não era esse. Este outro ainda há poucos dias estava na loja do Resende, uma cousa linda. E descreveu-o todo, número, disposição e facetado das pedras; concluiu dizendo que foi a joia da noite.
Para tanto luxo era melhor casar — ponderou maliciosamente a avó.
Concordo que a fortuna dela não dá para isso. Ora, espere! Vou amanhã, ao Resende, por curiosidade, saber o preço por que o vendeu. Não foi barato, não podia ser barato.
Mas por que é que se desfez o casamento?
Não pude saber; mas tenho de jantar sábado com o Venancinho Correia, e ele conta-me tudo. Sabe que ainda é parente dela? Bom rapaz; está inteiramente brigado com o barão...
A avó não sabia da briga; Maciel contou-lha de princípio a fim, com todas as suas causas e agravantes. A última gota no cálix foi um dito à mesa de jogo, uma alusão ao defeito do Venancinho, que era canhoto. Contaram-lhe isto, e ele rompeu inteiramente as relações com o barão. O bonito é que os parceiros do barão acusaram-se uns aos outros de terem ido contar as palavras deste. Maciel declarou que era regra sua não repetir o que ouvia à mesa do jogo, porque é lugar em que há certa franqueza.
Depois fez a estatística da rua do Ouvidor, na véspera, entre uma e quatro horas da tarde. Conhecia os nomes das fazendas e todas as cores modernas. Citou as principais toilettes do dia. A primeira foi a de mme. Pena Maia, baiana distinta, très pschutt. A segunda foi a de mlle. Pedrosa, filha de um desembargador de São Paulo, adorable. E apontou mais três, comparou depois as cinco, deduziu e concluiu. Às vezes esquecia-se e falava francês; pode mesmo ser que não fosse esquecimento, mas propósito; conhecia bem a língua, exprimia-se com facilidade e formulara um dia este axioma etnológico — que há parisienses em toda a parte. De caminho, explicou um problema de voltarete.
A senhora tem cinco trunfos de espadilha e manilha, tem rei e dama de copas...
Maria Regina ia descambando da admiração no fastio; agarrava-se aqui e ali, contemplava a figura moça do Maciel, recordava a bela ação daquele dia, mas ia sempre escorregando; o fastio não tardava a absorvê-la. Não havia remédio. Então recorreu a um singular expediente. Tratou de combinar os dous homens, o presente com o ausente, olhando para um, e escutando o outro de memória; recurso violento e doloroso, mas tão eficaz, que ela pôde contemplar por algum tempo uma criatura perfeita e única.
Nisto apareceu o outro, o próprio Miranda. Os dous homens cumprimentaram-se friamente; Maciel demorou-se ainda uns dez minutos e saiu.
Miranda ficou. Era alto e seco, fisionomia dura e gelada. Tinha o rosto cansado, os cinquenta anos confessavam-se tais, nos cabelos grisalhos, nas rugas e na pele.
Só os olhos continham alguma cousa menos caduca. Eram pequenos, e escondiam-se por baixo da vasta arcada do sobrolho; mas lá, ao fundo, quando não estavam pensativos, centelhavam de mocidade. A avó perguntou-lhe, logo que Maciel saiu, se já tinha notícia do acidente do Engenho Velho, e contou-lho com grandes encarecimentos, mas o outro ouvia tudo sem admiração nem inveja.
Não acha sublime? — perguntou ela, no fim.
Acho que ele salvou talvez a vida a um desalmado que algum dia, sem o conhecer, pode meter-lhe uma faca na barriga.
Oh! — protestou a avó.
Ou mesmo conhecendo — emendou ele.
Não seja mau — acudiu Maria Regina —, o senhor era bem capaz de fazer o mesmo, se ali estivesse.
Miranda sorriu de um modo sardônico. O riso acentuou-lhe a dureza da fisionomia. Egoísta e mau, este Miranda primava por um lado único: espiritualmente, era completo. Maria Regina achava nele o tradutor maravilhoso e fiel de uma porção de ideias que lutavam dentro dela, vagamente, sem forma ou expressão. Era engenhoso e fino e até profundo, tudo sem pedantice, e sem meter-se por matos cerrados, antes quase sempre na planície das conversações ordinárias; tão certo é que as cousas valem pelas ideias que nos sugerem. Tinham ambos os mesmos gostos artísticos; Miranda estudara direito para obedecer ao pai; a sua vocação era a música.
A avó, prevendo a sonata, aparelhou a alma para alguns cochilos. Demais, não podia admitir tal homem no coração; achava-o aborrecido e antipático. Calou-se no fim de alguns minutos. A sonata veio, no meio de uma conversação que Maria Regina achou deleitosa, e não veio senão porque ele lhe pediu que tocasse; ele ficaria de bom grado a ouvi-la.
Vovó — disse ela —, agora há de ter paciência...
Miranda aproximou-se do piano. Ao pé das arandelas, a cabeça dele mostrava toda a fadiga dos anos, ao passo que a expressão da fisionomia era muito mais de pedra e fel. Maria Regina notou a graduação, e tocava sem olhar para ele; difícil cousa, porque, se ele falava, as palavras entravam-lhe tanto pela alma, que a moça insensivelmente levantava os olhos, e dava logo com um velho ruim. Então é que se lembrava do Maciel, dos seus anos em flor, da fisionomia franca, meiga e boa, e afinal da ação daquele dia. Comparação tão cruel para o Miranda, como fora para o Maciel o cotejo dos seus espíritos. E a moça recorreu ao mesmo expediente. Completou um pelo outro; escutava a este com o pensamento naquele; e a música ia ajudando a ficção, indecisa a princípio, mas logo viva e acabada. Assim Titânia, ouvindo namorada a cantiga do tecelão, admirava-lhe as belas formas, sem advertir que a cabeça era de burro.

IV

Minuetto

Dez, vinte, trinta dias passaram depois daquela noite, e ainda mais vinte, e depois mais trinta. Não há cronologia certa; melhor é ficar no vago. A situação era a mesma. Era a mesma insuficiência individual dos dous homens, e o mesmo complemento ideal por parte dela; daí um terceiro homem, que ela não conhecia.
Maciel e Miranda desconfiavam um do outro, detestavam-se a mais e mais, e padeciam muito, Miranda principalmente, que era paixão da última hora. Afinal acabaram aborrecendo a moça. Esta viu-os ir pouco a pouco. A esperança ainda os fez relapsos, mas tudo morre, até a esperança, e eles saíram para nunca mais. As noites foram passando, passando... Maria Regina compreendeu que estava acabado.
A noite em que se persuadiu bem disto foi uma das mais belas daquele ano, clara, fresca, luminosa. Não havia lua; mas a nossa amiga aborrecia a lua — não se sabe bem por quê — ou porque brilha de empréstimo, ou porque toda a gente a admira, e pode ser que por ambas as razões. Era uma das suas esquisitices. Agora outra.
Tinha lido de manhã, em uma notícia de jornal, que há estrelas duplas, que nos parecem um só astro. Em vez de ir dormir, encostou-se à janela do quarto, olhando para o céu, a ver se descobria alguma delas; baldado esforço. Não a descobrindo no céu, procurou-a em si mesma, fechou os olhos para imaginar o fenômeno; astronomia fácil e barata, mas não sem risco. O pior que ela tem é pôr os astros ao alcance da mão; por modo que, se a pessoa abre os olhos e eles continuam a fulgurar lá em cima, grande é o desconsolo e certa a blasfêmia. Foi o que sucedeu aqui. Maria Regina viu dentro de si a estrela dupla e única. Separadas, valiam bastante; juntas, davam um astro esplêndido. E ela queria o astro esplêndido. Quando abriu os olhos e viu que o firmamento ficava tão alto, concluiu que a criação era um livro falho e incorreto, e desesperou.
No muro da chácara viu então uma cousa parecida com dous olhos de gato. A princípio teve medo, mas advertiu logo que não era mais que a reprodução externa dos dous astros que ela vira em si mesma e que tinham ficado impressos na retina. A retina desta moça fazia refletir cá fora todas as suas imaginações. Refrescando o vento recolheu-se, fechou a janela e meteu-se na cama.
Não dormiu logo, por causa de duas rodelas de opala que estavam incrustadas na parede; percebendo que era ainda uma ilusão, fechou os olhos e dormiu. Sonhou que morria, que a alma dela, levada aos ares, voava na direção de uma bela estrela dupla. O astro desdobrou-se, e ela voou para uma das duas porções; não achou ali a sensação primitiva e despenhou-se para outra; igual resultado, igual regresso, e ei-la a andar de uma para outra das duas estrelas separadas. Então uma voz surgiu do abismo, com palavras que ela não entendeu:
É a tua pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscilar por toda a eternidade entre dous astros incompletos, ao som desta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá...

Machado de Assis, em Gazeta de Notícias, 20 de janeiro de 1886

Agir com segurança

Da mesma forma que ao caminhar você toma cuidado para não pisar em um prego ou virar o pé, tome cuidado para não ferir as suas próprias faculdades mentais. Se tomássemos cuidado com isso em cada uma de nossas ações, agiríamos com mais segurança.

Epiteto, em Encheiridion, 38

Dewey Dell


A primeira vez que eu e Lafe fomos colher algodão. Pai não quer suar, porque se arriscaria a morrer da doença que tem, por isso todo mundo nos vem ajudar. E Jewel não se importa com nada, ele não parece de nosso sangue nessa coisa de demonstrar interesse. E Cash é como se serrasse nas tábuas os dias compridos, quentes e tristes, para pregá-las em alguma coisa. E Pai pensa que os vizinhos sempre se mostrarão solícitos, pois sempre esteve muito ocupado em deixar que os vizinhos trabalhem para ele, sem imaginar mais nada. E não creio, também, que Darl pense nisso, porque se senta à mesa, para o jantar, com os olhos postos além da comida e da lâmpada, cheios de terra tirada de sua cabeça, e com as órbitas cheias da distância para além da plantação.
Colhemos algodão ao longo do renque, os bosques cada vez mais próximos e mais próxima a sombra secreta, avançando na direção da sombra secreta com meu saco e o saco de Lafe. Porque eu disse: “Talvez eu queira ou não, quando o saco estiver pela metade.” Porque eu disse: “Se o saco estiver cheio quando chegarmos aos bosques, não terá sido por minha vontade.” Eu disse: “Se não estiver escrito que terei de fazer isto, o saco não estará cheio e eu voltarei pelo renque próximo, mas se o saco estiver cheio, não terei jeito a dar.” E colhemos algodão na direção da sombra secreta e nossos olhos procuravam os do outro, e nossas mãos se tocavam e eu sem dizer nada. Eu disse: “Que está fazendo?” E ele disse: “Estou pondo algodão no seu saco.” E, assim, o saco estava cheio quando chegamos ao fim do renque de algodão e eu não pude evitar.
E assim aconteceu porque não tive outro jeito. Aconteceu então, e eu vi Darl e ele soube. Ele disse que sabia sem precisar falar, da mesma forma que me disse que Mãe está morrendo sem precisar falar, e eu soube que ele sabia por que, se ele dissesse que sabia, com palavras, eu não teria acreditado que ele estivera ali por perto e nos vira. Mas ele disse que sabia mesmo, e eu disse: “Você vai contar a Pai, você vai matá-lo?” Disse-lhe isto sem falar, e ele disse: “Por quê?”, também sem falar. E por isso é que eu lhe posso falar com certeza, com ódio, porque ele sabe.
Ele fica parado à porta, olhando para ela. “Que deseja, Darl?”, eu digo. “Ela vai morrer”, ele diz. E aquela velha ave de rapina Tull que vem vê-la morrer, mas eu posso enganá-los. “Quando ela vai morrer?”, eu digo. “Antes de voltarmos”, ele diz. “Nesse caso, por que leva Jewel?”, eu digo. “Preciso dele para me ajudar com a carga”, ele diz.

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Jacob Collier | Live in Lisbon 2022

18.05.1961

Nasci num lugar pobre,
onde o hospital era longe,
onde era longe a estrada
e os anjos não conheciam:

Nasci mês de maio, azul
de tardes macias,
de pai José,
mãe Maria.

Batizaram-me: Terra Prometida.
Terra pobre, onde a felicidade passa
longe, mas daqui eu a vejo
e todo o meu corpo brilha.

Eucanaã Ferraz, em Livro primeiro

O amor da velhice

O amor dos dois surgira no tempo em que ele é mais puro: a adolescência. Riam, passeavam pela praça, comiam pipoca e faziam planos para quando se casassem.
Naquele tempo, antes dos progressos da ciência, grassava uma praga mortífera chamada tuberculose, que atacava os pulmões. Para ela não havia remédio a não ser comida, repouso e ar puro. De resto, era o próprio corpo que tinha de se curar. Pois ela, a tuberculose, invejosa da felicidade dos dois jovens, alojou-se nos pulmões do moço. Ele teve de deixar a cidade e a namorada em busca de ar puro, no alto das montanhas, num sanatório, tal como Thomas Mann descreveu no livro A montanha mágica.
Quem ia para tais lugares de cura se despedia com um “adeus” e um olhar de “nunca mais”. Na melhor das hipóteses, muitos anos haveriam de passar.
Anos se passaram, o tempo se arrastava, a espera se alongou. E, quando a espera é muito longa, os sentimentos se enfraquecem. Os pais, preocupados com o futuro incerto da filha e movidos pela prudência, convenceram-na a levar a vida, a parar de esperar.
E aconteceu com a jovem o que aconteceu com Fermina Daza, que de longe e às escondidas namorava Florentino Ariza, na estória de Gabriel García Márquez O amor nos tempos do cólera. Fermina foi obrigada pelos pais a trocar o modesto escriturário Florentino, que ela amava, pelo sólido doutor Urbino, portador de futuros, que ela não amava.
A mocinha prudente se casou. O namorado doente se casou. E por mais de cinquenta anos não se viram. Quando ele tinha 76 anos, ficou viúvo. Quando ela tinha 76 e ele 79, ela ficou viúva. E ficou sabendo que ele, o amor da sua juventude, estava vivo. A curiosidade e a saudade foram fortes demais. Ela não resistiu. Foi à sua procura. Encontraram-se. E, de repente, eram de novo namorados adolescentes apaixonados. Resolveram se casar. Os filhos protestaram. Os filhos, todos eles, não suportam a ideia de que os velhos também amem. Especialmente se forem seus pais...
Mas os dois velhos, já no fim da vida, sabendo que o tempo de amor que lhes restava era curto, não deram ouvidos aos filhos – casaram-se e mudaram-se para uma cidade do interior.
Viveram um ano de amor intenso, que provocou metamorfoses: ele se descobriu poeta, começou a escrever poesia. Além disso, tirou seu violino de cima do guarda-roupa, onde ficara por muitos anos porque a sua primeira mulher não gostava da música do instrumento, e passou a fazer parte da orquestra da cidade. Confessou a um sobrinho:
Se Deus me der dois anos com esta mulher, minha vida terá valido a pena…
Bem que Deus se esforçou. Mas o corpo já estava cansado. Morreu de amor, como temia o Vinícius. Achei essa história tão comovente que a transformei num texto.
Passaram-se semanas da sua publicação. Eram dez horas da noite. Eu trabalhava no meu escritório. O telefone tocou. Voz aveludada de mulher do outro lado.
É o professor Rubem Alves?
Sim — respondi.
Quero agradecer a belíssima crônica que o senhor escreveu, com o título “E os velhos se apaixonarão de novo...”. O senhor já deve ter adivinhado quem está falando...
Não, não adivinhei — respondi. Aí ela se revelou:
Sou a viúva.
Foi o início de uma deliciosa conversa de mais de quarenta minutos, interurbano, em que ela contou detalhes que eu desconhecia. O medo que ela teve quando ele resolveu mandar consertar o violino! Ela temia que os dedos dele já estivessem duros demais...
Ah! Que metáfora fascinante para um psicanalista sensível. Sim, sim! Nem os violinos ficam velhos demais nem os dedos ficam impotentes para produzir música! E aí foi contando, contando, revivendo, sorrindo, chorando — tanta alegria, tanta saudade, uma eternidade inteira num grão de areia... Ao terminar, ela fez esta confissão comovente:
Pois é, professor. Na idade da gente, a gente não mexe muito com as coisas do sexo. Nós vivíamos de ternura!
O que me fez lembrar da observação de Kundera sobre a necessidade de “salvar o amor da tolice da sexualidade”. A sexualidade pertence à ordem da biologia, o que nos aproxima dos animais. Mas o amor pertence à ordem da poesia. Abelardo e Heloísa se amaram até a morte.

Rubem Alves, em Cantos do Pássaro Encantado

Téo & O Mini Mundo

 

1558 – Michmaloyan

Os tzitzime

Prenderam e estão castigando Juan Téton, índio predicador do povo de Michmaloyan, no vale do México, e também quem o escutou e acatou. Andava Juan anunciando o fim de um ciclo e dizia que estava próximo o laço dos anos. Então, dizia, chegará a completa escuridão, se secarão os verdores e haverá fome. Em animais se transformarão todos os que não lavem a cabeça para apagar o batismo. Os tzitzime, espantosos pássaros negros, baixarão do céu e comerão todos os que não tenham tirado de si as marcas dos padres.
Também tinha anunciado os tzitzime Martín Océlotl, que foi preso e açoitado, despojado e desterrado de Texcoco. Também ele disse que não haverá lume na festa do fogo novo e que se acabará o mundo por culpa dos que esqueceram as lições dos pais e avós e já não sabem a quem devem o ter nascido e crescido. Através das sombras se abaterão sobre nós os tzitzime, dizia, e devorarão as mulheres e os homens. Segundo Martín Océlotl, os frades missionários são tzitzime disfarçados, inimigos de toda alegria, que ignoram que nascemos para morrer e que depois de mortos não temos prazer os regozijo.
E algo assim também opinam sobre os frades os antigos senhores que sobreviveram em Tlaxcala. Coitados, dizem. Coitados. Devem estar doentes ou loucos. Ao meio-dia, à meia-noite e ao quarto da madrugada, quando todos se regozijam, estes gritam e choram. Mal grande haverão de ter. São homens sem sentido. Não buscam prazer ou alegria, e sim tristeza e solidão.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Carmen


Em frente a todas as farmácias da cidade havia dezenas de carros velhos, com crianças brigando no banco de trás. Eu via as mães delas dentro da Payless, da Walgreen’s ou da Lee’s, mas nós não nos cumprimentávamos. Mesmo mulheres que eu conhecia… agíamos como se nunca tivéssemos nos visto. Esperávamos na fila enquanto as outras compravam xarope para tosse de hidrato de terpina com codeína e assinavam num enorme livro de registro para finalizar a compra. Às vezes assinávamos nosso nome verdadeiro, outras vezes nomes inventados. Dava para perceber que, como eu, elas não sabiam o que era pior. Às vezes eu via as mesmas mulheres em quatro ou cinco farmácias diferentes no mesmo dia. Outras esposas ou mães de viciados. Os farmacêuticos compartilhavam da nossa cumplicidade, nunca demonstrando que nos reconheciam de compras anteriores. Salvo uma vez em que um jovem farmacêutico da Fourth Street Drugs me chamou de volta ao balcão. Eu fiquei apavorada. Pensei que ele fosse me denunciar. Ele era muito tímido e ficou vermelho quando se desculpou por estar se intrometendo na minha vida. Disse que sabia que eu estava grávida e que tinha ficado preocupado por eu estar comprando tanto xarope para tosse. Explicou que o xarope tinha um teor alto de álcool e que eu poderia facilmente me tornar alcoólatra sem me dar conta. Eu não disse que o xarope não era para mim. Disse obrigada, mas comecei a chorar assim que dei as costas e saí correndo da farmácia, chorando porque queria que Noodles se livrasse das drogas antes que o bebê nascesse. “Por que é que você está chorando, mamãe? A mamãe está chorando!” Willie e Vincent estavam pulando no banco de trás. “Senta!”, falei, esticando o braço para trás e dando um tapa na cabeça de Willie. “Senta. Eu estou chorando porque estou cansada e vocês dois não ficam quietos.”
A polícia tinha feito uma grande batida na cidade e outra maior ainda em Culiacán, então não havia heroína em Albuquerque. Noodles tinha me dito que ia segurar as pontas só com o xarope para tosse e parar de se drogar, para estar limpo quando o bebê chegasse dali a dois meses. Eu sabia que ele não ia conseguir. Ele nunca tinha ficado tão viciado antes e agora, ainda por cima, tinha arrebentado a coluna trabalhando numa obra de construção. Pelo menos estava recebendo auxílio-doença.
Ele estava de joelhos, falando, tinha engatinhado até o telefone. Eu sei, eu sei, eu fui às reuniões. Eu também estou doente, sou uma facilitadora, uma coviciada. Só o que posso dizer é que sinto amor, pena, carinho por ele. Ele estava tão magro, tão doente. Eu faria qualquer coisa para que ele não sofresse daquele jeito. Ajoelhei e pus os braços em volta dele. Ele desligou o telefone.
Porra, Mona, pegaram o Beto”, ele disse. Depois me beijou e me abraçou, chamou os meninos e os abraçou também. “Ei, meninos, deem uma mão pro seu velho, sejam as minhas muletas pra eu conseguir chegar até o banheiro.” Quando os meninos saíram, eu entrei e fechei a porta. Ele estava tremendo tanto que eu tive que entornar o xarope dentro da boca dele. O cheiro me deu ânsia de vômito. O suor e as fezes dele, o trailer inteiro fediam a laranja podre por causa do xarope.
Preparei o jantar para os meninos e eles ficaram vendo O agente da UNCLE na televisão. Todos os meninos da escola usavam calça Levi’s e camiseta, menos Willie. Ele estava na terceira série e usava calça preta e camisa branca. Penteava o cabelo como o cara louro da série de televisão. Os meninos dormiam numa cama-beliche num quartinho minúsculo. Noodles e eu dormíamos no outro quarto. Eu já tinha um moisés ao pé da nossa cama, fraldas e roupas de bebê em todos os cantos vagos do trailer. Nós éramos donos de um terreno de dois acres em Corrales, perto da vala limpa, num bosque de choupos. No início tínhamos planos de começar a construir nossa casa de adobe, plantar uma horta, mas logo depois que compramos o terreno Noodles se viciou de novo. A maior parte do tempo ele continuou trabalhando em obras, mas nada aconteceu em relação à nossa casa e agora o inverno estava chegando.
Fiz uma xícara de chocolate quente e fui me sentar no degrau, do lado de fora. “Noodles, vem ver!” Mas ele não respondeu. Ouvi o barulho de outra tampa de xarope sendo aberta. O pôr do sol estava espetacular, cheio de cores berrantes. As imensas montanhas Sandia estavam de um tom forte de rosa e os rochedos ao pé delas, vermelhos. Choupos amarelos refulgiam na margem do rio. Uma lua cor de pêssego já começava a raiar. O que havia comigo? Eu estava chorando de novo. Detesto ver coisas lindas sozinha. Então ele veio, beijou meu pescoço e pôs os braços em volta de mim.
Você sabia que elas são chamadas de Sandias porque têm um formato parecido com o de melancias?”
Não”, eu disse, “é por causa da cor delas.” Tínhamos tido essa discussão no nosso primeiro encontro e depois mais centenas de vezes. Ele riu e me beijou, carinhoso. Estava bem agora. Isso é que é horrível nas drogas, pensei. Elas funcionam. Ficamos sentados lá, vendo bacuraus darem rasantes sobre o campo.
Noodles, não tome mais nenhum xarope. Eu vou guardar o resto e dar pra você só quando você estiver passando mal, tá bem?”
Tá bem.” Ele não estava me ouvindo. “O Beto estava indo comprar droga em Juárez, da La Nacha. O Mel está lá. Ele vai experimentar a droga, mas não tem como trazer. Não pode atravessar a fronteira. Eu preciso que você vá. Você é a pessoa perfeita pra isso. É anglo-saxã, está grávida e tem cara de boazinha. Você parece uma boa moça.”
Eu sou uma boa moça, pensei.
Você vai de avião pra El Paso, pega um táxi para atravessar a fronteira e depois pega um avião pra voltar. Tranquilo.”
Eu me lembrei da vez em que fiquei esperando no carro em frente ao prédio onde La Nacha morava, de sentir medo naquele bairro.
Eu sou a pior pessoa pra isso. Não posso deixar as crianças. Não posso ir pra cadeia, Noodles.”
Você não vai pra cadeia. Aí é que tá. A Connie pode ficar com os meninos. Ela sabe que você tem família em El Paso. Você pode dizer que houve algum tipo de emergência. Os meninos vão adorar ficar na casa da Connie.”
E se a polícia me parar, perguntar o que eu estou fazendo lá?”
A gente ainda tem a identidade da Laura. Ela parece com você, talvez não seja tão bonita, mas vocês duas são louras de olhos azuis. Você leva um pedacinho de papel com o nome ‘Lupe Vega’ e o endereço do apartamento ao lado do da Nacha. Diz que está procurando sua empregada, que ela não apareceu, que ela está te devendo dinheiro, alguma coisa assim. É só você se fingir de boba, fazer com que eles te ajudem a procurar por ela.”
Acabei concordando em ir. Ele disse que Mel estaria lá e que era para eu prestar atenção quando ele fosse experimentar a droga. “Você vai saber se é da boa.” Sim, eu conhecia a cara de quem estava tendo um bom barato. “Aconteça o que acontecer, não deixe o Mel sozinho na sala. Mas saia de lá sozinha, não saia junto com ninguém, nem com o Mel. Peça pro motorista do táxi voltar para pegar você uma hora depois. Não deixe que eles chamem um táxi pra você.”
Eu me arrumei, liguei para Connie, disse a ela que o meu tio Gabe tinha morrido em El Paso e perguntei se ela podia ficar com os meninos naquela noite e talvez também no dia seguinte. Noodles me deu um envelope grosso, cheio de dinheiro, fechado com fita adesiva. Arrumei uma mochila para os meninos. Eles ficaram felizes de ir para lá. Os seis filhos de Connie eram como primos. Quando eu os levei até a porta, Connie os fez entrar, depois saiu para a varanda e me abraçou. Seu cabelo preto estava enrolado em bobes de metal, como um penteado de teatro kabuki. Ela estava usando um short jeans e uma camiseta, parecia ter catorze anos.
Você não precisa mentir pra mim, Mona”, ela disse.
Você já fez isso alguma vez?”
Já, várias vezes. Mas não depois que tive filhos. Você não vai fazer isso de novo, aposto. Tome cuidado. Eu vou rezar por você.”

Ainda estava quente em El Paso. Desci do avião e fui andando pela pista alcatroada, que afundava debaixo dos meus pés de tão mole, sentindo aquele cheiro de poeira e sálvia de que me lembrava da minha infância. Pedi ao motorista do táxi que me levasse até a ponte, mas antes desse uma volta ao redor do lago dos jacarés.
Jacarés? Aqueles jacarés velhos já morreram faz anos. Quer dar uma volta na praça assim mesmo?”
Quero”, respondi. Então, me recostei e fiquei vendo os bairros passarem pela janela. Algumas coisas tinham mudado, mas, quando criança, eu tinha andado tanto de patins por aquela cidade inteira que tinha a sensação de conhecer cada velha casa, cada árvore. O bebê estava chutando e se esticando dentro da minha barriga. “Está gostando da minha velha cidade?”
O que foi?”, o motorista do táxi perguntou.
Desculpe, eu estava falando com o meu bebê.”
Ele riu. “E ele respondeu?”
Atravessei a ponte. Ainda estava me sentindo feliz só de sentir os cheiros de lenha queimada, pó de caliche, chili e a baforada de enxofre que vinha da fundição. Minha amiga Hope e eu adorávamos dar respostas engraçadinhas quando os guardas da fronteira perguntavam nossa nacionalidade. Transilvana. Moçambicana.
Americana”, eu disse. Ninguém pareceu reparar em mim. Por precaução, não peguei nenhum dos táxis que estavam parados perto da fronteira e andei mais alguns quarteirões. Comi um dulce de membrillo. Nem quando era criança eu gostava daquele doce, mas gostava do fato de ele vir numa caixinha de madeira e de você usar a tampa como colher. Depois de examinar todas as joias de prata, cinzeiros de concha e Don Quixotes, eu me forcei a entrar num táxi e entreguei ao motorista o pedacinho de papel com o nome de Lupe e o endereço errado. “Cuanto?”
Vinte dólares.”
Dez.”
Bueno.” Então, não consegui mais fingir que não estava com medo. O motorista dirigiu rápido por um bom tempo. Reconheci a rua deserta e o prédio de cimento. Ele parou alguns prédios depois. Num espanhol macarrônico, pedi que ele voltasse dali a uma hora. Por vinte dólares. “Okay. Una hora.”
Foi difícil subir as escadas até o quarto andar. Minha barriga de grávida estava enorme e minhas pernas estavam inchadas e doloridas. Eu parava para tomar fôlego a cada patamar, arfando. Meus joelhos e minhas mãos tremiam. Bati na porta do apartamento 43, Mel abriu e eu cambaleei porta adentro.
Ei, amor, o que é que você tem?”
Água, por favor.” Sentei num sofá de vinil sujo. Mel me trouxe uma coca-cola diet, limpou o gargalo com a camisa, sorriu. Ele estava sujo, mas era bonito, se movimentava como um guepardo. Tinha virado uma lenda àquela altura, por ter fugido de prisões, por ser um foragido. Armado e perigoso. Ele trouxe uma cadeira para que eu apoiasse os pés, massageou meus tornozelos.
Onde está La Nacha?” Ninguém nunca se referia àquela mulher só como Nacha. Ela era “A Nacha”, o que quer que isso significasse. Ela entrou, vestindo um terno preto de homem e uma camisa branca. Sentou numa cadeira atrás de uma mesa. Eu não sabia dizer se ela era um travesti ou uma mulher tentando parecer um homem. Era bem morena, quase negra, com um rosto maia; usava batom e esmalte vermelho-escuro, óculos escuros. Seu cabelo era curto, gomalinado. Ela estendeu a mão curta, aberta, na direção de Mel sem olhar para mim. Entreguei o dinheiro para ele. Vi La Nacha contar o dinheiro.
Foi aí que fiquei apavorada mesmo. Eu pensava que estava comprando drogas para Noodles. Minha única preocupação era que ele não passasse mal. Tinha imaginado que dentro do envelope houvesse um maço grosso de notas de dez e de vinte. Mas havia milhares de dólares na mão de La Nacha. Noodles não tinha me mandado ali só para comprar heroína para ele. Eu estava fazendo uma compra grande e perigosa. Se a polícia me pegasse, eu seria tratada como traficante, não como usuária. Quem iria cuidar dos meninos? Fiquei com ódio de Noodles.
Mel viu que eu estava tremendo. Acho que tive até ânsia de vômito. Ele revirou os bolsos e puxou um comprimido azul. Eu fiz que não. O bebê.
Ah, pelo amor de Deus. É só um Valium. Você vai ferrar com esse bebê mais ainda se não tomar. Toma. Você precisa segurar as pontas! Tá ouvindo?”
Eu fiz que sim. O desdém dele funcionou como uma sacudida. Fiquei calma antes mesmo de o comprimido fazer efeito.
O Noodles falou pra você que eu vou experimentar a droga, não falou? Se for da boa, eu aviso e aí você pega o balão e se manda. Você sabe onde botar?” Eu sabia, mas não faria isso de jeito nenhum. E se o balão furasse e a droga contaminasse o bebê?
Mel era um demônio, conseguia ler meus pensamentos. “Se você não enfiar lá, eu vou enfiar. Não vai furar. O seu bebê está todo embrulhadinho numa bolsa à prova de drogas, totalmente a salvo de todos os males do mundo externo. Depois que ele nascer, meu bem, aí é outra história.”
Mel ficou observando La Nacha pesar o pacote e fez que sim com a cabeça quando ela o entregou a ele. Ela não tinha olhado para mim nem uma única vez. Fiquei vendo Mel injetar. Ele botou algodão e água numa colher, salpicou uma pitada de heroína marrom por cima, aqueceu. Amarrou o garrote, espetou uma veia na mão, fazendo um pouco de sangue subir pela seringa, depois apertou o êmbolo e soltou o garrote, enquanto seu rosto instantaneamente se esticava. Ele estava num túnel de vento. Fantasmas voadores levaram Mel para outro mundo. Senti vontade de mijar, de vomitar. “Onde é o banheiro?” La Nacha apontou para uma porta. Encontrei o banheiro no fim do corredor pelo cheiro. Quando voltei, lembrei que Noodles tinha falado para eu não deixar Mel sozinho. Mel estava sorrindo. Ele me entregou a camisinha, enrolada como uma bola.
Prontinho, amor, faça uma boa viagem. Agora vai, guarda esse troço direitinho, como uma boa menina.” Eu me virei e fingi estar enfiando a camisinha dentro de mim, mas na verdade só botei dentro da minha calcinha apertada. Do lado de fora, no escuro do hall, transferi a bolota para o meu sutiã.
Fui descendo os degraus devagar, como se estivesse bêbada. Estava escuro, imundo.
No segundo patamar, ouvi a porta lá de baixo se abrir, barulhos vindos da rua. Dois adolescentes subiram a escada correndo. “Fíjate no más!” Um deles me imprensou na parede, o outro pegou minha bolsa. Não havia nada lá a não ser algumas notas de dinheiro soltas, maquiagem. O resto estava dentro de um bolso interno do meu casaco. Ele me deu um soco.
Vamo estuprar ela”, o outro disse.
Como? Só se você tiver um pau de mais de um metro.”
Vira ela de costas, bato.
Bem na hora em que ele me deu outro soco, uma porta se abriu e um velho veio descendo a escada correndo, com uma faca na mão. Os garotos deram as costas e saíram correndo de volta lá para fora. “Você está bem?”, o velho me perguntou em inglês.
Eu fiz que sim. Pedi que ele fosse comigo até a rua. “Deve ter um táxi me esperando aqui em frente, espero.”
Você fica aqui. Se o táxi estiver lá, eu peço pro motorista buzinar três vezes.”
A sua mãe ensinou você a se comportar como uma dama, pensei enquanto me perguntava o que mandaria a etiqueta numa situação como aquela. Será que eu devia oferecer dinheiro ao velho? Não ofereci. O sorriso banguela que ele me deu quando abriu a porta do táxi para mim foi um sorriso doce.
Adiós.”

Fiquei enjoada no pequeno avião bimotor para Albuquerque. Eu estava com cheiro de suor e do sofá e da parede manchada de urina. Pedi um sanduíche extra e também mais amendoim e leite.
Comendo por dois agora, hein!”, o texano sentado na minha frente disse, sorrindo.
Fui dirigindo do aeroporto para casa. Pegaria os meninos depois de tomar um banho. Enquanto seguia pela estrada de terra em direção ao nosso trailer, vi Noodles do lado de fora, com sua japona de marinheiro, fumando e andando de um lado para o outro.
Parecia desesperado; nem sequer veio me cumprimentar. Entrou no trailer e eu fui atrás.
Ele se sentou na beira da cama. Os apetrechos dele estavam em cima da mesa, prontos e à espera. “Deixa eu ver.” Eu lhe entreguei a camisinha. Ele abriu o armário acima da cama e botou a droga na pequena balança. Depois se virou e me deu um tapa na cara com toda a força. Ele nunca tinha me batido. Fiquei lá sentada, paralisada, ao lado dele. “Você deixou o Mel sozinho com a droga, não deixou? Não deixou?”
Tem heroína suficiente aí pra me botar na cadeia por muito tempo”, eu disse.
Eu falei pra você não sair de perto dele. O que é que eu vou fazer agora?”
Chama a polícia”, eu disse, e ele me deu outro tapa. Esse eu nem senti. Tive uma contração forte. Braxton-Hicks, pensei comigo. Quem diabo foi Braxton-Hicks? Continuei lá sentada, fedendo a Juárez, e fiquei vendo Noodles entornar o conteúdo da camisinha dentro de uma lata de filme. Em seguida, ele salpicou um pouco da droga no algodão que estava na sua colher. Sentindo um embrulho no estômago, eu tive a certeza de que, se tivesse que escolher entre mim e os meninos ou as drogas, ele iria sempre escolher as drogas.
Um jato de água quente escorreu pelas minhas pernas até o tapete. “Noodles! A bolsa estourou! Eu tenho que ir pro hospital.” Mas já era tarde, ele já tinha injetado. A colher fez um clique ao cair na mesa, o tubo de borracha caiu do braço dele. Ele se recostou no travesseiro. “Pelo menos é da boa”, sussurrou. Tive outra contração. Forte. Arranquei o vestido imundo que estava usando e me lavei com uma esponja, vesti uma túnica branca. Outra contração. Liguei para o serviço de emergência. Noodles tinha apagado. Será que eu devia deixar um bilhete para ele? Talvez ele ligasse para o hospital quando acordasse. Não. Ele não ia pensar em mim nem por um instante.
A primeira coisa que ele ia fazer era injetar o resto da droga que tivesse sobrado no algodão, tirar mais uma provinha. Senti um gosto de cobre na boca. Dei um tapa na cara de Noodles, mas ele não se mexeu.
Abri a lata de heroína, segurando-a com um lenço de papel. Despejei uma boa quantidade na colher. Acrescentei um pouco de água, depois fechei a linda mão de Noodles em torno da lata. Senti outra contração dolorosa. Sangue e muco escorriam pelas minhas pernas. Vesti um suéter, peguei meu cartão do Medi-Cal e fui lá para fora, esperar a ambulância.
Eles me levaram direto para a sala de parto. “O bebê está saindo!”, eu disse. A enfermeira pegou meu cartão, perguntou algumas coisas, telefone, nome do marido, quantos filhos já tinha tido, qual era a data prevista para o nascimento do bebê.
Ela me examinou. “Você já está completamente dilatada. A cabeça está bem aqui.”
As dores estavam vindo uma atrás da outra. A enfermeira correu para chamar um médico. Enquanto ela estava fora da sala, o bebê nasceu, uma menininha. Carmen. Eu me inclinei e a peguei no colo. Deitei-a, quente e úmida, na minha barriga. Estávamos sozinhas na sala silenciosa. Então eles vieram e nos empurraram correndo na maca para debaixo da luz forte. Alguém cortou o cordão e eu ouvi a bebê chorar. Senti uma dor pior ainda quando a placenta saiu e, então, vieram botar uma máscara na minha cara. “O que vocês estão fazendo? Ela já nasceu!”
O médico está vindo. Você precisa de uma episiotomia.” Eles amarraram as minhas mãos.
Cadê a minha bebê? Onde ela está?” A enfermeira saiu da sala. Eu estava presa às laterais da cama. Um médico entrou. “Por favor, me desamarre.” Ele me desamarrou e foi tão gentil que eu fiquei assustada. “O que houve?”
Ela nasceu cedo demais”, ele disse, “pesava muito pouquinho. Ela não resistiu. Eu sinto muito.” Ele deu tapinhas no meu braço, constrangido, como se estivesse dando tapinhas num travesseiro. Estava olhando para a minha ficha. “Esse é o telefone da sua casa? Você quer que eu ligue para o seu marido?”
Não”, respondi. “Não tem ninguém em casa.”

Lucia Berlin, em Manual da faxineira: Contos escolhidos