quinta-feira, 7 de novembro de 2024

O macuco tem ovos azuis

Ah, eu sou do tempo em que todos os telefones eram pretos e todas as geladeiras eram brancas.
Os restaurantes do Rio tinham um prato chamado silveira de galinha. E, como sobremesa, petit-suisse com mel.
Lembro-me de que a novidade mais excitante vinda da civilização americana, pouco depois do cinema falado, era o restaurante automático. Punha-se a moeda e o prato vinha feito, expelido de uma gaveta de vidro!
Lia-se a revista Eu Sei Tudo que era tradução da revista Je Sais Tout. Tinha sempre uma seção chamada “O problema do espaço no lar”, trazendo por exemplo a fotografia de uma cama-escrivaninha-cabide-estante com espaço para guardar talheres e também copos e garrafas, pois era facilmente transformável em bar e sofá. A gente achava formidável e lamentava não ter nenhum problema de espaço no lar.
Havia também uma seção chamada “A pretensa arte moderna” em que apareciam fotografias de quadros por exemplo de Picasso e Modigliani e esculturas por exemplo de Brancusi e através da qual eu aprendi a gostar da (pretensa) arte moderna.
Mas eu ainda era pequenino (um a três anos) quando, morando em Paris durante a Primeira Guerra, Medeiros e Albuquerque dedicou-se aos amores mercenários e durante “pouco mais de um ano” conheceu “quatrocentas e tantas”, passando depois disso a conquistar mulheres de todo tipo graças a uma engenhosa combinação de vários elementos, tais como: a) farda de oficial da Guarda Nacional do Brasil, com cinco dourados galões; b) cartões-torpedos distribuídos principalmente no metrô; c) fichário feito pelo mordomo Antônio; d) investigações encomendadas a policiais públicos ou particulares; e) presentes; f) exame grafológico; g) hipnotismo; h) classificação das damas para 1) encontro em hotel, 2) chá na Rumpel-mayer ou 3) passeio pelo Bois de Boulogne. (Ler Quando Eu Era Vivo, de Medeiros e Albuquerque, editora Record, Rio, 1982.) Confessarei publicamente que mais tarde, entre os anos 1926 e 1928, sendo meu pai assinante do Jornal do Comércio (cujo quilo, depois de lido, eu vendia no armazém de seu Duarte por dez tostões, ao passo que outros jornais, de menor formato, só alcançavam 800 réis), a leitura dominical do dito Medeiros e Albuquerque confirmou a minha vocação de adolescente para o ateísmo.
E também que nos seguintes anos de 1929 e 1930 fui habitar em Icaraí, Niterói (naquele tempo era Icarahy, Nictheroy, mas em compensação a praia era limpinha), na casa de contraparentes entre os quais uma jovem professora pública do Rio que era obrigada a assinar (desconto em folha), com grande raiva, o Jornal do Brasil, órgão oficial da Prefeitura do Distrito Federal, e graças a isto eu fortalecia meu espírito na leitura de Benjamim Costallat e João Ribeiro.
O que não me impediu de escrever um soneto. Mau.
Assim pois, contemplando minha vida pregressa nesta bela tarde de verão quando há evanescentes nuvens róseas lá longe sobre o mar de Ipanema, e me sentindo mais ou menos conformado com minha solidão, lembro-me de que o nome latino desse nobre galináceo e caça fidalga, o macuco, é Tinamus solitarius, e me recordo de ter visto ovos de macuco, e retorno à primeira frase desta pequena composição jornalística chamada crônica, e digo: todos os telefones eram pretos e todas as geladeiras eram brancas, mas os ovos do macuco já eram e ainda são — azuis. Esverdeados, porém azuis.

Rubem Braga, em Recado de primavera

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