Ao
sair do edifício, o inesperado me tomou. O que antes fora apenas
chuva na vidraça, abafado de cortina e aconchego, era na rua a
tempestade e a noite. Tudo isso se fizera enquanto eu descera pelo
elevador? Dilúvio carioca, sem refúgio possível, Copacabana com
água entrando pelas lojas rasas e fechadas, águas grossas de lama
até o meio da perna, o pé tateando para encontrar calçadas
invisíveis. Até o movimento de maré já tinha, onde se juntasse o
bastante de água começava a atuar a secreta influência da Lua: já
havia fluxo e refluxo de maré. E o pior era o temor ancestral
gravado na carne: estou sem abrigo, o mundo me expulsou para o
próprio mundo, e eu que só caibo numa casa nunca mais terei casa na
vida, esse vestido ensopado sou eu, os cabelos escorridos nunca
secarão, e sei que não serei dos escolhidos para a Arca, pois já
selecionaram o melhor casal da minha espécie.
Pelas
esquinas os carros de motor paralisado, e nem sombra de táxi. E a
alegria feroz de vários homens finalmente impossibilitados de voltar
para casa. A alegria demoníaca dos homens livres ainda mais ameaçava
quem só queria casa própria. Andei sem rumo pela ruas e ruas, mais
me arrastava que andava, parar é que era o perigo. De minha
desmedida desolação eu só conseguia que ela fosse disfarçada.
Alguém, radiante sob uma marquise, disse: que coragem, hein, dona!
Não era coragem, era exatamente o medo. Porque tudo estava
paralisado, eu que tenho medo do instante em que tudo pare tinha que
andar.
E
eis que nas águas vejo um táxi. Avançava cuidadosamente, quase
centímetro por centímetro, tateando o chão com as rodas. Como é
que eu me apoderaria daquele táxi? Aproximei-me. Não podia me dar
ao luxo de pedir, lembrei-me de todas as vezes em que, por ter tido a
doçura de pedir, não me deram. Contendo o desespero, o que sempre
dá uma aparência de força, disse ao chofer: “o senhor vai me
levar para casa! é de noite! tenho filhos pequenos que devem estar
assustados com minha demora, é de noite, ouviu?!” Para minha
grande surpresa, vai o homem e simplesmente diz que sim. Ainda sem
entender, entrei. O carro mal se movia nas ondas lamacentas, mas
movia-se – e chegaria. Eu só pensava: eu não valho tanto. Daí a
pouco já estava pensando: e eu que não sabia que valia tanto. E daí
a pouco era a dona de casa de meu táxi, já tomara posse do direito
do que gratuitamente me fora dado, e energicamente tomava medidas
úteis: torcia cabelos e roupas, tirava os sapatos amolecidos,
enxugava o rosto que mais parecia ter chorado. A verdade, sem pudor,
é que eu tinha chorado. Muito pouco, e misturando motivos, mas
chorado. Depois de arrumar minha casa, encostei-me bem confortável
no que era meu, e de minha Arca assisti ao mundo acabar-se.
Uma
senhora aproximou-se então do carro. Devagar como este avançava,
ela pôde acompanhá-lo agarrada em aflição ao trinco da porta. E
literalmente me implorava para compartilhar do táxi. Era tarde
demais para mim, e seu itinerário me desviaria do meu caminho.
Lembrei-me, porém, de meu desespero de havia cinco minutos, e
resolvi que ela não teria o mesmo. Quando eu lhe disse que sim, seu
tom de imploração imediatamente cessou, substituído por uma voz
extremamente prática: “É, mas espere um pouco, vou até aquela
transversal buscar na casa da costureira o embrulho do vestido que
deixei lá para não molhar.” “Estará ela se aproveitando de
mim?”, indaguei-me na velha dúvida se devo ou não deixar que se
aproveitem de mim. Terminei cedendo. Ela demorou à vontade. E voltou
com um enorme embrulho pousado nas mãos estendidas, como se até seu
próprio corpo pudesse macular o vestido. Instalou-se totalmente, o
que me deixou tímida na minha própria casa.
E
começou o meu calvário de anjo – pois a mulher, com sua voz
autoritária, já tinha começado a me chamar de anjo. Não poderia
ser menos comovente o seu caso: aquela era a noite de uma première
e, se não fosse eu, o vestido se estragaria na chuva ou ela se
atrasaria e perderia a première. Eu já tivera as minhas premières,
e nem as minhas tinham me comovido. “A senhora não sabe o milagre
que me aconteceu”, contou-me com firmeza. “Comecei a rezar na
rua, a rezar para que Deus me mandasse um anjo que me salvasse, fiz
promessa de não comer quase nada amanhã. E Deus me mandou a
senhora.” Constrangida, remexi-me no banco. Eu era um anjo
destinado a proteger premières? a ironia divina me encabulava. Mas a
senhora, com toda a força de sua fé prática, e tratava-se de
mulher forte, continuava impositivamente a reconhecer o anjo em mim,
o que só pouquíssimas pessoas até hoje reconheceram, e sempre com
a maior discrição. Tentei sem jeito a leveza de um sarcasmo: “Não
me supervalorize, sou apenas um meio de transporte.” Enquanto que a
ela nem sequer ocorreu compreender-me, eu a contragosto percebia que
o argumento na verdade não me isentava: anjos também são meios de
transporte. Intimidada, calei-me. Fico muito impressionada com quem
grita comigo: a mulher não gritava, mas claramente mandava em mim.
Impossibilitada de confrontá-la, refugiei-me num doce cinismo:
aquela senhora, que tratava com tanto vigor do próprio êxtase,
devia ser mulher habituada a comprar com dinheiro, e na certa
terminaria por agradecer ao anjo com um cheque, também levando em
conta que a chuva já devia ter lavado toda a minha distinção. Com
um pouco mais de confortável cinismo, em silêncio, declarei-lhe que
dinheiro seria um meio tão legítimo quanto outro de agradecer, já
que a moeda dela era mesmo moeda. Ou então – diverti-me eu – bem
poderia dar-me em agradecimento o vestido da première, pois o que
ela realmente deveria agradecer não era ter um vestido seco, e sim
ter sido atingida pela graça, isto é, por mim. Dentro de um cinismo
cada vez melhor, pensei: “Cada um tem o anjo que merece, veja que
anjo lhe coube: estou cobiçando por pura curiosidade um vestido que
nem sequer vi. Agora quero ver como é que sua alma vai se arrumar
com a ideia de um anjo interessado em roupas.” Parece-me que, no
meu orgulho, eu não queria ter sido escolhida para servir de anjo à
tolice ardente de uma senhora.
A
verdade é que ser anjo estava começando a me pesar. Conheço bem
esse processo do mundo: chamam-me de bondosa, e pelo menos durante
algum tempo fico atrapalhada para ser ruim. Comecei também a
compreender como os anjos se chateiam: eles servem a tudo. Isso nunca
me ocorrera. A menos que eu fosse um anjo muito embaixo na escala dos
anjos. Quem sabe, até, eu era só aprendiz de anjo. A alegria
satisfeitona daquela senhora começava a me deixar sombria: ela
fizera uso exorbitante de mim. Fizera de minha natureza indecisa uma
profissão definida, transformara minha espontaneidade em dever,
acorrentava-me, a mim, que era anjo, o que a essa altura já não
podia mais negar, mas anjo livre. Quem sabe, porém, eu só fora
mandada ao mundo para aquele instante de utilidade. Era isso, pois, o
que eu valia. No táxi, eu não era um anjo decaído: era um anjo que
caía em si. Caí em mim e fechei a cara. Um pouco mais e teria dito
àquela de quem eu era com tanta revolta anjo da guarda: faça o
obséquio de descer já e imediatamente deste táxi! Mas fiquei
calada, aguentando o peso de minhas asas cada vez mais contritas pelo
seu enorme embrulho. Ela, a minha protegida, continuava a falar de
mim, ou melhor, de minha função. Emburrei. A senhora sentiu e
calou-se um pouco desarvorada. Já na altura da Viveiros de Castro a
hostilidade se declarara muda entre nós.
– Escute,
disse-lhe eu de repente, pois minha espontaneidade é faca de dois
gumes também para os outros, o táxi vai antes me deixar em casa e
depois é que segue com a senhora.
– Mas,
disse ela surpreendida e em começo de indignação, depois eu vou
ter que dar uma volta enorme e vou me atrasar! É só um pequeno
desvio para me deixar em casa!
– Pois
é, respondi seca. Mas eu não posso entrar pelo desvio.
– Eu
pago tudo! Insultou-me ela com a mesma moeda com que teria se
lembrado de me agradecer.
– Eu
é que pago tudo, insultei-a.
Ao
saltar do táxi assim como quem não quer nada, tive o cuidado de
esquecer no banco as minhas asas dobradas. Saltei com a profunda
falta de educação que me tem salvo dos abismos angelicais. Livre de
asas, com a grande rabanada de uma cauda invisível e com a altivez
que só tenho quando para de chover, atravessei como uma rainha os
largos umbrais do edifício Visconde de Pelotas.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
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