quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Sagarana


Em sua obra de estreia, publicada após demorado processo de amadurecimento e depuração, revista, retalhada e podada, o escritor – dissemos – já se apresentava com um conjunto harmonioso de dotes. Nas nove narrativas extensas do volume refloresceram as melhores tradições da arte de contar. Todas elas empolgam por enredos conduzidos com mão de mestre por uma sucessão ascendente de emoções; todas comportam episódios de palpitante interesse, retratos de tipos estranhos, registro de costumes pitorescos, cenas de força patética. Nas mãos do autor o gênero mostra-se de extrema flexibilidade, adaptando-se ao assunto, ao tom, às exigências da estória.
A melhor exemplificação disto encontra-se, talvez, em “O burrinho pedrês”, iniciada de maneira vagarosa, numa profusão de anedotas e historietas que parecem atravancar o livre curso da ação. Mas o assunto – a viagem de uma boiada que avança por etapas, para, recomeça, desvia-se do caminho reto – exigia essa maneira de contar. A coloquialidade do tom disfarça o que a estrutura tem de intrincado. Nas cenas sucessivas predomina a presença ora dos boiadeiros, ora dos bichos; os bois e, especialmente, um burrinho, cujos periódicos desaparecimentos e voltas marcam as etapas da história. “A gente segue a esperteza mansa do bicho, a sua finura de instinto e de inteligência que o faz poupar-se, furtar-se a choques e maus pisos e, por fim, orientar-se e salvar-se numa cheia onde os cavalos se afogam, carregando um bêbado às costas e ainda outro náufrago enclavinhado no rabo” (Oscar Lopes). Estávamos preparados a uma catástrofe que desse solução ao conflito de dois inimigos irreconciliáveis; porém, numa reviravolta que, mais que simples expediente técnico, decorre de uma visão do mundo, sobrevém outro desfecho, igualmente trágico e verossímil, mas totalmente inesperado.
Duelo, pode ser considerada como outro exemplo da harmonização da intriga e da estrutura. As fases de uma caçada humana determinam o ritmo da narrativa, pontuada por pausas naturais. A história ganha nova dimensão depois da morte de um dos dois protagonistas, quando a julgávamos terminada, e encerra-se de modo surpreendente, embora inteiramente plausível.
Em “A hora e vez de Augusto Matraga” (aproveitada depois com êxito pelo cinema) a conversão do valentão arrependido divide-lhe o drama pelo meio: as tentações enfrentadas e vencidas depois de sua reforma íntima são os degraus sucessivos de sua trágica ascensão.
Nessas narrativas e mais duas, uma viagem serve como que de fio condutor. Ótima fórmula regionalista, que capacita o autor para levar-nos a percorrer cenários variados, pôr-nos em contato com personagens típicas, fazer-nos ver a fauna e a flora da terra.
Rotularemos então o João Guimarães Rosa deste livro de regionalista? Alguns críticos o fizeram, procurando filiá-lo a predecessores como Afonso Arinos, Hugo de Carvalho Ramos, José Américo de Almeida. Mas os mais perspicazes hesitaram, porque, não obstante a exuberância da paisagem, cada uma das peças se constituía num ou em vários dramas psicológicos.
Embora revelando-se pintor exímio de sua terra e de sua gente (cujos traços, cores e aromas armazenara maravilhosamente em sua prodigiosa memória para descrevê-los com amorosa minúcia) tampouco pode o autor ser qualificado de prosador realista. O lirismo de novelas como “São Marcos” e “Minha gente” ou a estilização de “Conversa de bois” (em que o narrador onisciente reproduz os pensamentos embrionários não apenas de um pobre menino ignorante e explorado, mas também dos bois, seus amigos) adverte o leitor de que não viaja na companhia de um mero costumbrista. Ora distanciando-se do ambiente, ora identificando-se com ele, o “estreante” nunca se desfaz de um humorismo ao mesmo tempo crítico e cúmplice, cruel e terno, e surpreendentemente compatível com uma atmosfera mágica.
A opulência da linguagem deliciou leitores e crítica. O novo prosador conhecia a fundo a língua literária e a popular, fundindo-as num amálgama particularmente feliz. Alguma vez, porém, deixava entrever que não se contentaria por muito tempo com os recursos existentes: o próprio título, Sagarana, fundia hereticamente elementos heterogêneos, o “saga” escandinavo (“lenda”) e o “rana” indígeno (“espécie de”), anunciando a revolução que se preparava. A declaração de amor às palavras raras e sonoras em “São Marcos” valia como outro indício.

Paulo Rónai, em Rosa & Rónai, O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador

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