Em
sua obra de estreia, publicada após demorado processo de
amadurecimento e depuração, revista, retalhada e podada, o escritor
– dissemos – já se apresentava com um conjunto harmonioso de
dotes. Nas nove narrativas extensas do volume refloresceram as
melhores tradições da arte de contar. Todas elas empolgam por
enredos conduzidos com mão de mestre por uma sucessão ascendente de
emoções; todas comportam episódios de palpitante interesse,
retratos de tipos estranhos, registro de costumes pitorescos, cenas
de força patética. Nas mãos do autor o gênero mostra-se de
extrema flexibilidade, adaptando-se ao assunto, ao tom, às
exigências da estória.
A
melhor exemplificação disto encontra-se, talvez, em “O burrinho
pedrês”, iniciada de maneira vagarosa, numa profusão de anedotas
e historietas que parecem atravancar o livre curso da ação. Mas o
assunto – a viagem de uma boiada que avança por etapas, para,
recomeça, desvia-se do caminho reto – exigia essa maneira de
contar. A coloquialidade do tom disfarça o que a estrutura tem de
intrincado. Nas cenas sucessivas predomina a presença ora dos
boiadeiros, ora dos bichos; os bois e, especialmente, um burrinho,
cujos periódicos desaparecimentos e voltas marcam as etapas da
história. “A gente segue a esperteza mansa do bicho, a sua finura
de instinto e de inteligência que o faz poupar-se, furtar-se a
choques e maus pisos e, por fim, orientar-se e salvar-se numa cheia
onde os cavalos se afogam, carregando um bêbado às costas e ainda
outro náufrago enclavinhado no rabo” (Oscar Lopes). Estávamos
preparados a uma catástrofe que desse solução ao conflito de dois
inimigos irreconciliáveis; porém, numa reviravolta que, mais que
simples expediente técnico, decorre de uma visão do mundo, sobrevém
outro desfecho, igualmente trágico e verossímil, mas totalmente
inesperado.
Duelo,
pode ser considerada como outro exemplo da harmonização da intriga
e da estrutura. As fases de uma caçada humana determinam o ritmo da
narrativa, pontuada por pausas naturais. A história ganha nova
dimensão depois da morte de um dos dois protagonistas, quando a
julgávamos terminada, e encerra-se de modo surpreendente, embora
inteiramente plausível.
Em
“A hora e vez de Augusto Matraga” (aproveitada depois com êxito
pelo cinema) a conversão do valentão arrependido divide-lhe o drama
pelo meio: as tentações enfrentadas e vencidas depois de sua
reforma íntima são os degraus sucessivos de sua trágica ascensão.
Nessas
narrativas e mais duas, uma viagem serve como que de fio condutor.
Ótima fórmula regionalista, que capacita o autor para levar-nos a
percorrer cenários variados, pôr-nos em contato com personagens
típicas, fazer-nos ver a fauna e a flora da terra.
Rotularemos
então o João Guimarães Rosa deste livro de regionalista? Alguns
críticos o fizeram, procurando filiá-lo a predecessores como Afonso
Arinos, Hugo de Carvalho Ramos, José Américo de Almeida. Mas os
mais perspicazes hesitaram, porque, não obstante a exuberância da
paisagem, cada uma das peças se constituía num ou em vários dramas
psicológicos.
Embora
revelando-se pintor exímio de sua terra e de sua gente (cujos
traços, cores e aromas armazenara maravilhosamente em sua prodigiosa
memória para descrevê-los com amorosa minúcia) tampouco pode o
autor ser qualificado de prosador realista. O lirismo de novelas como
“São Marcos” e “Minha gente” ou a estilização de “Conversa
de bois” (em que o narrador onisciente reproduz os pensamentos
embrionários não apenas de um pobre menino ignorante e explorado,
mas também dos bois, seus amigos) adverte o leitor de que não viaja
na companhia de um mero costumbrista. Ora distanciando-se do
ambiente, ora identificando-se com ele, o “estreante” nunca se
desfaz de um humorismo ao mesmo tempo crítico e cúmplice, cruel e
terno, e surpreendentemente compatível com uma atmosfera mágica.
A
opulência da linguagem deliciou leitores e crítica. O novo prosador
conhecia a fundo a língua literária e a popular, fundindo-as num
amálgama particularmente feliz. Alguma vez, porém, deixava entrever
que não se contentaria por muito tempo com os recursos existentes: o
próprio título, Sagarana, fundia hereticamente elementos
heterogêneos, o “saga” escandinavo (“lenda”) e o
“rana” indígeno (“espécie de”), anunciando a
revolução que se preparava. A declaração de amor às palavras
raras e sonoras em “São Marcos” valia como outro indício.
Paulo Rónai, em Rosa & Rónai, O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador
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