A
Carlos Manuel (quatro e meio) e Luís Mauricio (dois anos)*:
É
com vocês tomarem o primeiro avião e virem direto para esta rua já
conhecida dos dois. Se deixarem as férias para dezembro, a situação
não será a mesma. No momento, posso oferecer-lhes uma atração
ímpar: a longa e profunda escavação no eixo da rua, para colocação
de novo encanamento.
Vocês
já perderam a fase da abertura do buraco, que é bem boa. Gente de
ouvido melindroso não aprecia, mas ver o asfalto rachando sob o
impacto da perfuratriz é uma beleza que não tive quando menino. O
ar treme, as mãos do operador tremem no comando; se facilita, o pé
dele some na brincadeira; mas não acontece nada.
Bem,
enquanto a cova se abria, canos de largo diâmetro foram dispostos de
cada lado da rua, e aí está outra diversão sadia e popular, de que
vocês estão-se privando. Sabem o que é tubo largado na via
pública, meninos apartamentizados? Acontece cada cinco anos, na
melhor hipótese. Os garotos vão chegando, apostando corrida por
cima, ou se introduzindo no bojo escuro. Você que é mais taludinho,
Carlos Manuel, já não caberia sentado no tal tubo, mas lá dentro
se pode imaginar uma cabana, um subterrâneo; mede uns quatro metros,
é uma galeria decente. O brinquedo similar dos playgrounds,
todo pintado e catita, não tem esse rude encanto. Com um tubo,
organizam-se excelentes caçadas no Araguaia, perseguições a
bandidos e outras emoções fortes; quando não, serve simplesmente
para a gente se esconder e sujar bem a roupa, o que, nessa idade,
também serve.
Mas
o gostoso mesmo é a longa vala no centro, aliás aberta com a
colaboração da gurizada, que funciona das onze às doze (hora de
almoço dos operários) e das dezesseis em diante. Há meninos que
tapam em vez de abrir, outros abrem e tapam, outros destapam e outros
contemplam, deslumbrados. Brinquedo de terra na rua? Nunca ouviram
falar disso. Não é bem de terra, mas de areia, porque, como vocês
sabem, esta rua é quase marítima; porém o prazer é igual; ninguém
se farta de admirar a rua devolvida a usos infantis, livre de
automóvel, revolvida e alegre. São pulos, empurrões, quedas, pás,
gritos, engenharias, que sei eu? Os meninos somem lá dentro, voltam
sujos e felizes.
A
feira, meus caros, continua a funcionar uma vez por semana, no meio
da bagunça. Só que as barracas se armam na calçada, rente às
casas, e como a nossa é baixa, o barraqueiro nos joga as mangas e
bananas do lado de fora, e nós de dentro lhe jogamos o dinheiro, o
que aumenta o prazer da rua desmanchada. É isso. Desmancharam a rua,
e as crianças, por instinto, viram que era para elas.
Não
demorem, meus netinhos, porque na quadra anterior já botaram os
canos e se tapou o buraco. A turma do asfalto aproxima-se. Teremos
essa felicidade pública até dezembro? O pintor Reis Júnior passou
por aqui e perguntou: “Mas onde estão os meninos desta casa?
Telegrafe a eles que venham. O buraco está fechando, mas eu vou
acompanhá-lo pelas ruas próximas, e direi onde é que eles podem
encontrá-lo”.
Eu,
que sempre escrevi contra buracos, rendo-me a este. Não há melhor
divertimento para crianças. Nem para adultos, se não fôssemos uns
bocós envergonhados. Venham, malandros!
*Carlos
Manuel e Luís Mauricio Graña Drummond, ambos netos de Drummond, que
então viviam com os pais, na Argentina.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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