Deve
ser um vinho bem enérgico a política, dizia eu comigo, ao sair da
casa de Lobo Neves; e fui andando, fui andando, até que na rua dos
Barbonos vi uma sege, e dentro um dos ministros, meu antigo
companheiro de colégio. Cortejamo-nos afetuosamente, a sege seguiu,
e eu fui andando... andando... andando...
– Por
que não serei eu ministro?
Esta
ideia, rútila e grande, – trajada ao bizarro, como diria o padre
Bernardes, – esta ideia começou uma vertigem de cabriolas e eu
deixei-me estar com os olhos nela, a achar-lhe graça. E não pensei
mais na tristeza de Lobo Neves; senti a atração do abismo. Recordei
aquele companheiro de colégio, as correrias nos morros, as alegrias
e travessuras, e comparei o menino com o homem, e perguntei a mim
mesmo por que não seria eu como ele. Entrava então no Passeio
Público, e tudo me parecia dizer a mesma coisa. – Por que não serás
ministro, Cubas? – Cubas, por que não serás ministro de Estado?
Ao
ouvi-lo, uma deliciosa sensação me refrescava todo o sistema.
Entrei, fui sentar-me num banco, a cavar comigo aquela ideia. E
Virgília que havia de gostar! Alguns minutos depois vejo
encaminhar-se para mim uma cara, que me não pareceu desconhecida.
Conhecia-a, fosse donde fosse.
Imaginem
um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e pálido. As
roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro de
Babilônia; o chapéu era contemporâneo do de Gessler. Imaginem
agora uma sobrecasaca mais larga do que pediam as carnes, – ou,
literalmente, os OSSOS da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a um
amarelo sem brilho; o pêlo desaparecia aos poucos; dos oito
primitivos botões restavam três. As calças, de brim pardo, tinham
duas fortes joelheiras, enquanto as bainhas eram roldas pelo tacão
de um botim sem misericórdia nem graxa. Ao pescoço flutuavam as
pontas de uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando um
colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete, um colete de
seda escura, roto a espaços, e desabotoado.
– Aposto
que me não conhece, Senhor Doutor Cubas? disse ele.
– Não
me lembra...
– Sou
o Borba, o Quincas Borba.
Recuei
espantado... Quem me dera agora o verbo solene de um Bossuet ou de
Vieira, para contar tamanha desolação!
Era
o Quincas Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro
de colégio, tão inteligente e abastado. O Quincas Borba! Não;
impossível; não pode ser. Não podia acabar de crer que essa figura
esquálida, essa barba pintada de branco, esse maltrapilho
avelhentado, que toda essa ruína fosse o Quincas Borba. E era. Os
olhos tinham um resto da expressão de outro tempo, e o sorriso não
perdera certo ar escarninho, que lhe era peculiar. Entretanto, ele
suportava com firmeza o meu espanto. No fim de algum tempo arredei os
olhos; se a figura repelia, a comparação acabrunhava.
– Não
é preciso contar-lhe nada, disse ele enfim; o senhor adivinha tudo.
Uma via de misérias, de atribulações e de lutas. Lembra-se das
nossas festas, em que eu figurava de rei? Que trambolhão! Acabo
mendigo...
E
alçando a mão direita e os ombros, com um ar de indiferença,
parecia resignado aos golpes da fortuna, e não sei até se contente.
Talvez contente. Com certeza, impassível. Não havia nele a
resignação cristã, nem a conformidade filosófica.
Parece
que a miséria lhe calejara a alma, a ponto de lhe tirar a sensação
da lama. Arrastava os andrajos, como outrora a púrpura: com certa
graça indolente.
– Procure-me,
disse eu, poderei arranjar-lhe alguma coisa.
Um
sorriso magnífico lhe abriu os lábios. – Não é o primeiro que me
promete alguma coisa, replicou, e não sei se será o último que não
me fará nada. E para quê? Eu nada peço, a não ser dinheiro;
dinheiro sim, porque é necessário comer, e as casas de pasto não
fiam. Nem as quitandeiras. Uma coisa de nada, uns dois vinténs de
angu, nem isso fiam as malditas quitandeiras... Um inferno, meu... ia
dizer meu amigo... Um inferno! o diabo! todos os diabos! Olhe, ainda
hoje não almocei.
– Não?
– Não;
sai muito cedo de casa. Sabe onde moro? No terceiro degrau das
escadas de São Francisco, à esquerda de quem sobe; não precisa
bater na porta. Casa fresca, extremamente fresca. Pois saí cedo, e
ainda não comi...
Tirei
a carteira, escolhi uma nota de cinco mil-réis, – a menos limpa, –
e dei-lha. Ele recebeu-ma com os olhos cintilantes de cobiça.
Levantou a nota ao ar, e agitou-a entusiasmado.
– In
hoc signo vinces! bradou.
E
depois beijou-a, com muitos ademanes de ternura, e tão ruidosa
expansão, que me produziu um sentimento misto de nojo e lástima.
Ele, que era arguto, entendeu-me; ficou sério, grotescamente sério,
e pediu-me desculpa da alegria, dizendo que era alegria de pobre que
não via, desde muitos anos, uma nota de cinco mil-réis.
– Pois
está em suas mãos ver outras muitas, disse eu.
– Sim?
acudiu ele, dando um bote para mim.
– Trabalhando,
conclui eu.
Fez
um gesto de desdém; calou-se alguns instantes; depois disse-me
positivamente que não queria trabalhar. Eu estava enjoado dessa
abjeção tão cômica e tão triste, e preparei-me para sair.
– Não
vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele,
escarranchando-se diante de mim.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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