sábado, 21 de janeiro de 2023

O Lobo do Mar | Capítulo 29

Idiota! — gritei, furioso comigo mesmo.
Eu tinha acabado de descarregar o bote e levado seu conteúdo para um ponto mais elevado da praia, onde pretendia armar acampamento. Havia um pouco de madeira espalhada pela areia e, ao ver uma lata de café trazida da despensa do Ghost, tive a ideia de acender um fogo.
Que completo idiota! — eu não conseguia parar de dizer.
Pare com isso — disse Maud em tom de suave reprimenda, perguntando por que eu era um completo idiota.
Esqueci os fósforos — resmunguei. — Não trouxe um único fósforo. Agora não poderemos esquentar café, sopa, chá, nada!
Não era o… Crusoé que esfregava pauzinhos? — ela perguntou com voz arrastada.
Mas li uma porção de relatos verídicos de náufragos que tentaram fazer isso em vão — respondi. — Lembro de Winters, um jornalista famoso por suas incursões no Alasca e na Sibéria. Encontrei-o no Bibelot certa vez, e ele me contou da ocasião em que tentou fazer fogo esfregando pauzinhos. Foi hilário. Eu não seria capaz de imitar seu relato, mas era uma história de fracasso. Lembro que ele concluiu, com os olhos negros brilhando: “Senhores, os ilhéus dos Mares do Sul podem ser capazes de fazer isso, os malaios também, mas acreditem quando lhes digo que está além das capacidades do homem branco.”
Ah, bem, já chegamos até aqui sem fogo — ela disse animada. — Não há razão para que não possamos ir em frente sem ele.
Mas pense no café! — lamentei. — E é um ótimo café, ainda por cima. Tirei da reserva pessoal de Wolf Larsen. E veja que boa madeira temos ali.
Confesso que desejava intensamente aquele café, e pouco tempo depois eu ficaria sabendo que Maud também tinha uma fraqueza pelo grão. Além disso, fazia tanto tempo que nos alimentávamos de uma dieta fria que estávamos gelados por dentro e por fora. Qualquer coisa aquecida teria sido um grande alento. De todo modo, parei de reclamar e fui preparar uma tenda para Maud com a lona da vela.
Eu tinha previsto uma tarefa simples, pois dispunha de remos, mastro e espicha de vela, além de corda de sobra. Mas como eu não tinha nenhuma prática naquilo, e como cada detalhe era uma nova experiência, e cada detalhe bem-sucedido uma invenção, o dia passou sem que um abrigo se materializasse. Choveu naquela noite, e Maud ficou encharcada e precisou voltar para o bote.
Na manhã seguinte, cavei uma vala rasa ao redor do acampamento, mas uma hora mais tarde uma ventania desviada pelo paredão de rocha atrás da praia levantou a tenda e a desmanchou na areia, uns trinta metros adiante.
Maud riu de minha expressão desconsolada e eu disse:
Assim que o vento parar, pretendo entrar no bote para explorar a ilha. Deve haver uma estação e homens em algum lugar. E a estação deve ser visitada por navios. Algum governo deve proteger todas essas focas. Mas quero deixá-la bem instalada antes de partir.
Gostaria de ir com você — ela se limitou a dizer.
Seria melhor se você ficasse. Já passou por provações suficientes. É um milagre que tenha sobrevivido. Remar e velejar no bote com esse clima chuvoso será bastante desconfortável. É de descanso que você precisa, e eu acharia melhor que você ficasse aqui descansando.
Algo suspeitamente parecido com lágrimas embaçou seus lindos olhos antes que ela os baixasse e virasse a cabeça um pouco para o lado.
Eu preferia ir com você — ela disse em voz baixa, com apenas um toque de apelo. — Talvez eu possa ajudar… — sua voz engasgou — …um pouco. E, se algo acontecesse com você, pense no que seria de mim aqui sozinha.
Ah, pretendo ser muito cauteloso — respondi. — E só me afastarei até o ponto em que possa retornar antes de anoitecer. Sim, considerando tudo, creio que é muito melhor que a senhorita fique, durma, descanse e não faça nada.
Ela virou a cabeça e me encarou. Um olhar firme, porém afetuoso.
Por favor, por favor — disse com imensa ternura.
Entesei-me para recusar e balancei a cabeça. Ela continuou esperando e olhando para mim. Tentei verbalizar minha recusa, mas trepidei. Seus olhos brilharam de contentamento e no mesmo instante eu soube que havia sido derrotado. Depois daquilo, seria impossível dizer não.
O vento diminuiu à tarde e nos preparamos para iniciar a jornada na manhã seguinte. Não havia meio de penetrar na ilha a partir da enseada, pois os paredões se erguiam perpendiculares à areia e brotavam de dentro do mar nos dois cantos.
A manhã irrompeu cinza e pesada, mas também calma. Acordei cedo e aprontei o bote.
Tolo! Imbecil! Idiota! — gritei quando chegou a hora de acordar Maud, mas dessa vez gritei de brincadeira, dançando pela praia sem chapéu, fingindo desespero.
Sua cabeça despontou por baixo do canto da vela.
O que foi agora? — ela perguntou sonolenta, mas curiosa.
Café! — gritei. — O que acha de uma boa xícara de café? Café quente! Pelando!
Céus — ela murmurou —, você me assustou, por que ser cruel dessa maneira? Aqui estava eu, preparando a alma para aguentar esta manhã sem café, e você vem me tirar do sério com essas promessas vãs.
Apenas observe — falei.
Encontrei alguns gravetos e pedrinhas secas nas reentrâncias das rochas. Parti os gravetos em pedaços menores e dividi as pedrinhas em lascas com o canivete. Rasguei uma página do meu caderno e peguei um cartucho de espingarda na caixa de munição. Tirei a bucha do cartucho com o canivete e despejei a pólvora sobre uma pedra lisa. Depois extraí a espoleta e a posicionei no meio da pólvora. Estava pronto. Maud continuava me observando da tenda. Segurei o papel com a mão esquerda e com a mão direita atingi a espoleta usando uma pedra. Surgiu uma nuvem de fumaça branca, depois uma chama, e então a beirada do papel pegou fogo.
Maud comemorou batendo palmas e exclamou:
Prometeu!
Mas eu estava ocupado demais para prestar atenção em sua alegria. A chama débil precisava ser cuidada com carinho para ganhar força e sobreviver. Eu a alimentei, adicionando lascas e gravetos aos poucos, até que estivesse estalando e crepitando. Tornar-me náufrago numa ilha não fazia parte dos meus cálculos, portanto não tínhamos chaleira nem utensílios de cozinha de qualquer tipo, mas improvisei com a lata usada para baldear o bote e mais tarde, à medida que fomos consumindo nosso estoque de alimentos enlatados, acumulamos um conjunto imponente de panelas.
Fervi a água, mas foi Maud quem preparou o café. E como ficou bom! Contribuí com uma lata de carne de gado frita com farelo de biscoito e água. O café da manhã foi um sucesso e permanecemos junto ao fogo por muito mais tempo que um explorador intrépido julgaria sensato, bebendo café quente e discutindo nossa situação.
Eu estava seguro de que encontraríamos uma estação numa das enseadas, pois sabia que as colônias do mar de Bering possuíam esse tipo de guarnição, mas Maud ofereceu a teoria, creio que para me preparar de antemão para uma possível decepção, de que tínhamos descoberto uma colônia de focas desconhecida. Mesmo assim, ela estava bastante animada e conseguia se divertir reconhecendo a gravidade dos nossos problemas.
Se você está certa — falei —, precisamos estar prontos para passar o inverno aqui. Nossa comida não vai durar tanto, mas temos as focas. Elas vão embora no outono, portanto devo começar logo a obter um estoque de carne. Além disso, precisamos construir uma cabana e recolher madeira. Também podemos tentar usar gordura de foca para a iluminação. De modo geral, vamos ter muito o que fazer caso a ilha seja desabitada. O que não será o caso, estou seguro.
Mas ela estava certa. Navegamos ao longo da costa com um vento de través, procurando enseadas com a luneta e desembarcando em algumas ocasiões, sem encontrar sinais de vida humana. Apesar disso, descobrimos que não éramos os primeiros a chegar a Endeavour Island. Bem no alto da praia da segunda enseada depois da nossa encontramos a carcaça arruinada de um bote naufragado. Era um bote de caça à foca, pois as forquetas estavam amarradas com gaxeta, havia um estojo de armas no lado a estibordo e se podia ler, em letras brancas quase invisíveis, Gazelle Nº 2. Fazia tempo que o bote tinha chegado ali, pois estava cheio de areia e sua madeira tinha aquela aparência gasta provocada por uma longa exposição ao clima. Na área da popa, encontrei uma espingarda enferrujada calibre dez e uma faca de marinheiro com a lâmina quebrada e corroída a ponto de ficar quase irreconhecível.
Eles conseguiram ir embora — falei com animação, mas em seguida senti algo afundando no peito e tive a impressão de que havia ossos desbotados em algum lugar daquela praia.
Eu não queria que o ânimo de Maud fosse arruinado por uma descoberta desse tipo, portanto coloquei o bote de volta no mar e contornei o canto nordeste da ilha. A costa no lado sul não tinha praias, e no início da tarde contornamos o promontório negro e completamos a circunavegação da ilha. Estimei sua circunferência em quarenta quilômetros e sua largura em algo entre três e oito quilômetros, ao passo que meus cálculos mais conservadores indicavam a presença de duzentas mil focas em suas praias. A ilha era mais elevada em seu extremo sudoeste, e os promontórios e paredões iam diminuindo aos poucos até a parte nordeste, que estava apenas alguns metros acima do mar. Com a exceção de nossa pequena enseada, as outras praias se estendiam em suave inclinação por uns setecentos e cinquenta metros até o que eu poderia chamar de prados rochosos, cobertos aqui e ali por líquens e grama túndrica. Era nessas regiões que as focas se agrupavam, com os velhos machos guardando seus haréns enquanto os jovens vagavam solitários.
Essa breve descrição dá conta de Endeavour Island. Úmida e pantanosa onde não era árida e pedregosa, açoitada por tempestades e chicoteada pelas ondas, com a atmosfera retumbando eternamente com os urros de duzentos mil anfíbios, era um lugar melancólico e miserável para se passar uma temporada. Maud, que tinha me preparado para uma decepção e se mantido alegre e altiva o dia inteiro, caiu em prantos quando desembarcamos de novo em nossa pequena enseada. Fez tudo que pôde para esconder de mim, mas eu sabia que ela estava abafando os soluços dentro da tenda enquanto eu tentava acender outro fogo.
Era a minha vez de manter uma atitude positiva, e desempenhei o papel com toda a minha capacidade. Fui tão bem-sucedido que consegui trazer de volta alegria a seus olhos adoráveis e música a seus lábios, pois ela cantou para mim antes de se deitar cedo. Era a primeira vez que eu a ouvia cantar e fiquei deitado ao lado do fogo escutando em êxtase, pois ela era nada menos que uma artista em tudo que fazia e sua voz, ainda que não fosse potente, era maravilhosamente doce e expressiva.
Passei a noite novamente no bote, acordado, olhando as primeiras estrelas que apareciam em muito tempo e refletindo acerca da situação. Uma responsabilidade daquele tipo era algo novo para mim. Wolf Larsen tinha toda a razão. Eu passara a vida andando com as pernas do meu pai. Meus advogados e contadores cuidavam do meu dinheiro por mim. Nunca tive responsabilidade alguma. Até que aprendi a ser responsável por mim mesmo a bordo do Ghost. E agora, pela primeira vez na vida, eu era responsável por outra pessoa. Era exigida de mim a mais séria das responsabilidades, pois ela era a única mulher do mundo, ou, como eu adorava pensar, a única e pequena mulher.

Jack London, in O Lobo do Mar

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